BABEL

de Letizia Russo
direção Alvise Camozzi
com Carolina Abras e Rodrigo Fregnan
 
Sesc Pinheiros 2010
 
concepção e produção Substância Produções Artísticas
 
Ambientado em um futuro fictício, Babel é a história de um amor impossível entre uma bailarina sem um braço e um homem, que se torna seu proprietário.
Babel é o imenso mundo-condomínio onde vivem Falena e Boccuccia. Enquanto Falena vive no 538º andar, Boccuccia é obrigada a viver e trabalhar no 22º na parte baixa, dançando no Sha-Mát, um night club do quadrante inferior.
Eles vivem uma controversa relação de interdependência, obcecados pelo desejo de tomar a N.A.V.E, sonho comum de libertação, proibido e inacessível. No passado, eles participaram juntos de uma ação fracassada, na qual ela perdeu o braço e também seu namorado, Ferro, irmão de Falena.
A nova vida em Babel traça novas perspectivas: para ele, a de enriquecer, possivelmente com a política ou o crime, ou ambos. Ela, a de tornar-se proprietária da boate onde é obrigada a se exibir. Um novo encontro com a N.A.V.E. (Neurologica ad Apparitiones Visionesque Essentia, ou seja, “substância neurológica para gerar visões e aparições”) os levará numa viagem onírica e, talvez, sem volta.
“Babel é uma pergunta sobre o presente. É uma história pequena, pequena, sobre dois personagens pequenos, pequenos, pouco conscientes como seres humanos e, ao mesmo tempo, condenados à humanidade pela sensação de que, ao seu redor, algo de invisível e imbatível respira e vive e se reproduz no lugar e às custas do mundo... É a projeção da sensação de mastigação e digestão lenta que o mundo nos provoca.”   Letizia Russo
 
 
Peça 'Babel' faz incursão pela ficção científica
 
MARIA EUGÊNIA DE MENEZES - O ESTADO DE S. PAULO
15 Outubro 2010
 
Texto da dramaturga italiana Letizia Russo recusa os clichês do gênero
 
No futuro, tudo será exatamente igual. Só que um pouco pior. Babel, peça da italiana Letizia Russo que entra em cartaz hoje no Sesc Pinheiros, pretende-se um retrato desse devir hipotético. Sem apelar para androides ou seres evoluídos, a autora lança-se à ficção científica, gênero difundido na literatura e no cinema, mas ao qual a dramaturgia ainda parece pouco afeita.
 
O texto convoca apenas dois personagens para apresentar um mundo em que o controle sobre os seres é absoluto. Homens podem ser comprados uns pelos outros, precisam ter dinheiro para se eleger a cargos públicos e não têm a liberdade de escolher onde moram. Um enredo que bebe diretamente em Philip K. Dick, o autor que inspirou o Blade Runner, de Ridley Scott, e também acolhe rumores dos filmes de Andrei Tarkovsky, em especial Solaris e Stalker.
 
Em sua composição desse quadro, o diretor Alvise Camozzi - compatriota de Russo que trocou Veneza por São Paulo - nos expõe apenas o que se passa dentro de um cubo branco. É aí que acompanharemos os diálogos entre Falena (Rodrigo Fregnan) e Boccuccia (Caroline Abras). Em situação privilegiada, ele mora num andar alto de Babel, a imensa cidade-condomínio que dá título à história. Do lado oposto, Boccuccia é uma bailarina que, após perder um braço, precisa se mudar e ocupar um apartamento na parte mais baixa: espaço reservado para aqueles (gordos, deficientes...) que escapam aos "padrões de normalidade".
 
De novo. Não é a primeira vez que o diretor monta uma obra da dramaturga. Em 2009, ele escalou o ator João Miguel para protagonizar Só, peça que resgatava as memórias de um homem, que reencontrava o amor da juventude. Em Babel, as reminiscências do passado cedem lugar a um pretenso futuro. Mas, se a temática é distinta, muito da dicção particular da dramaturga, nos lembra o encenador, ainda está presente. "As relações de tempo e espaço dentro do texto são questões muito fortes para ela."
 
Assim como já demonstrava em Só, a escrita de Russo dispensa a pontuação. Em Babel, não há vírgulas ou interrogações. Apenas pontos finais. Outro traço distintivo de sua ficção é a maneira de utilizar os tempos verbais, rejeitando o subjuntivo. As cenas são curtas. Flashes de cinco momentos na trajetória dos protagonistas, que são interrompidos, na encenação, por incisivas intervenções sonoras.
 
A maior ambição da dupla, em todas as passagens, é conseguir escapar de Babel para tomar a "nave" - instância de libertação, que pode ser um lugar geográfico ou apenas uma dimensão imaginada. "É uma reflexão sobre como enxergamos a utopia hoje", pontua o diretor.
 
Para contrapor-se a essa aura, Camozzi dá aos diálogos um tratamento naturalista, como se estivéssemos diante de um drama convencional. "Reforço um jogo entre opostos, provocando um estranhamento entre o clima do texto e as falas naturalistas."
 
Opostos também são Falena e Boccuccia, ele sinaliza. "O que se dá é um conflito de poder mascarado de relação amorosa. Eles estão sempre tentando interditar o desejo do outro."
 
 
frame do filme Solaris de Andrei Tarkovski (1972)
BABEL
 
de Letizia Russo
direção Alvise Camozzi
com Carolina Abras e Rodrigo Fregnan
cenografia William Zarella Jr.
iluminação Guilherme Bonfanti
música Henrique Iwao
figurinos e visagismo Marina Reis
tradução Rachel Brumana
assistência de direção Thaís de Almeida Prado
direção de produção Rachel Brumana
Sesc Pinheiros - São Paulo
Apoio Oficina Cultural Oswald de Andrade
fotos: Ana Fuccia e Bruno Nicko
(...) pode-se concluir que o sol, ou seja lá o que for que lança luz sobre esse lugar, no momento da imagem está no zênite, pode ser que o SOL esteja lá sempre e NA ETERNIDADE: que ele se movimente, não se pode provar pela imagem, as nuvens também, se é que são nuvens, flutuam talvez no lugar, o esqueleto de arame sua amarração numa tabuleta azul manchada com a tirânica inscrição CÉU, num galho de árvore um pássaro, a folhagem encobre sua identidade, pode ser um abutre ou um pavão ou um abutre com cabeça de pavão, olhar e bico apontados para uma mulher que domina a metade direita da imagem, sua cabeça divide as montanhas, o rosto é suave, muito jovem, o nariz longo demais, um inchaço na base, talvez de um soco, o olhar no chão, como se não pudesse esquecer uma imagem e ou não quisesse ver outra, o cabelo comprido de mechas, loiro ou cinza esbranquiçado, a luz dura não diferencia, a roupa um casaco de pele esburacado, cortado para ombros mais largos, sobre uma camisa fina e gasta, provavelmente de linho, da qual em certo ponto da manga direita desfiada e muito larga um frágil antebraço ergue uma mão á altura do coração, ou seja do peito esquerdo, um gesto de defesa ou da língua dos surdo-mudos, a defesa vale um horror conhecido, o golpe empurrão estocada aconteceu, o tiro disparado, a ferida não sangra mais, a repetição cai no vazio, onde o pavor não tem lugar, o rosto da mulher torna-se legível, se a segunda suposição for correta, um rosto de rato, um anjo dos roedores, os maxilares moem cadáveres de palavras e detritos de fala, a manga esquerda do casaco dependurada em farrapos como após um acidente ou agressão de algo dilacerante, animal ou máquina, curioso que o braço não foi ferido, ou as manchas marrom na manga são sangue coagulado, o gesto da mão direita de dedos longos vale uma dor no ombro esquerdo, o braço tão solto dependurado na manga, porque ele está quebrado, ou uma ferida na carne o paralisou, o braço está cortado no pulso pela borda da imagem, a mão pode ser uma garra, um coto (talvez com sangue ressecado) ou um gancho, a mulher está até os joelhos sobre o nada, amputada pela borda da imagem, ou ela cresce do solo como o homem sai da casa e desaparece nele como o homem na casa, até que a movimentação interminável se instala, rompe o limite, o vôo, o motor das raízes chovendo pedaços de terra e água subterrânea, visível a cada olhar, quando o olho VIU TUDO pestanejando se fecha sobre a imagem (...)

Heiner Muller, “Descrição de Imagem”
Tradução de Christine Röhrig e Marcos Renaux
BABEL
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