O simulacro, a morte e a falta


Uma voz simuladamente humana nos assegura, de tempos em tempos, que a arte está morta, e continuará assim. A voz é o espectro do simulacro, cuja função primordial é criar um invólucro para conter a vida, para sufocá-la, e impedir que cresça e germine. A mortificação da arte acontece em tempo real, ao se reproduzir o vídeo. E, em potencial, aconteceu em um período muito anterior. A existência possibilita a sua morte. A possibilidade de existir, antes da existência, aponta para a futura desaparição. A arte nasceu para a morte, por isso é possível existir e significar.

Os fragmentos de filmagem, que compõem cada cena,coagulam-se em um fluxo não linear. Este fluxo retira a narrativa do campo da razão, estabelecendo uma linguagem que se aproxima perigosamente dos domínios não mapeados do desejo. Ou, a imersão no estado puro da imagem, enquanto dado sensório pré-cognoscente, conformado em frames.

Os frames, como figura, não guardam relação direta entre si, nem com seu fundo. Ou antes, as relações são dedutíveis por um exercício de análise acurada dos elementos figurativos que compõe cada quadro. O que, em outras palavras, refere-se a uma derivação sígnica que parte do destaque e ressignificação de elementos atomizados.

A partir desta derivação podemos propor uma leitura que se origina da constatação de que o cavalo, os carros e os cães estão em movimento, apoiados sobre suas quatro patas/rodas. O quatro, o seu simbolismo visual, contém a ideia do repouso (quadrado), do estático. Mas, o movimento ocorresobre o inerte, criando um contraponto. O movimento no vídeo é ilusório, ou antes, é uma representação do deslocar sobre um espaço físico, sua alegoria mimetizante. A inércia é a própria morte, travestida em movimento, em vida.

Este cavalo, estes carros e estes cães estão condicionados em uma relação objetal. Indiferente quanto a suas naturezas, seres vivos ou não, são, antes de tudo, posses. Este possuir indiscriminado, este apontar e requerer, é como um destacar de pequenas partes do mundo. É o que torna possível relacionar-se com seu ambiente. É o reflexo da própria alienação do sujeito, que se vê apartado do que o cerca ao mesmo tempo em que sente não se possuir por inteiro. Como partes de si mesmo que precisam ser apontadas, destacadas e definidas para se reacoplarem ao seu ser e dar uma momentânea sensação de integralidade.

A imagem de fundo revela a sombra de uma cabeça humana, como uma figura fantasmática nas paredes da caverna em que Platão foi confinado por nossos contemporâneos. A percepção é antecipada por uma imagem oriunda de uma tela de TV que nos coloca em expectativa quando à próxima atração, em uma espetacularização refletida do olhar. A antecipação televisiva cria um encadeamento do significar que altera a percepção para o prejuízo de uma nova leitura. Resta a recuperação de um significar anteriormente adquirido e massificado, que ocupa o lugar do sentido idiossincrático. Não há surpresa, apenas o saciar paliativo de uma falta com um objeto emprestado.

A qualidade das imagens, tanto das figuras como do fundo, aproxima-se do que se define como baixa resolução. Esta qualidade técnica refere-se ao domínio tecnológico enquanto promessa de uma manutenção vivificada da imagem. Mas, o fato da pobreza da qualidade das imagens conclui sua insuficiência em dar suporte a este atributo prometido.

O registro sonoro de fundo compõe-se de sons mecânicos e não humanos. Repetitivos e inarticulados. É o discurso da máquina, do não vivo que se movimenta, da morte deambulante. Ainda o simulacro como possibilidade de existência, embora postiça.

A voz, que anuncia a morte, é afável e educada, como um reconfortante placebo oferecido por uma máquina, já que é da natureza das máquinas intermediar as relações entre os humanos. Relações que, se fossem presenciais, aparentemente seriam impossíveis e desconfortáveis, talvez por razãoda consciência por parte dos humanos de que não são mais seres naturais. Ou, são seres de uma natureza construída por conceitos originários de uma compreensão nascida do pensamento racional, o que não se sustenta na experienciação fenomênica.

O título ”reorgs ad hoc”, além do significado possível (reorganizações para este fim), é um anagrama para ‘HORSE-CAR-DOG’, elementos objetais reconhecíveis presentes no vídeo. Este significado possível, que é apreendido, é a compreensão final do processo de se reorganizar as letras. O título aplica-se a si mesmo. A reorganização das letras destes substantivos conduz-se como uma referência para uma recodificação, em um nível elementar,que aponta para o vazio ao propor uma leitura não associável, que se dobra ao redor da própria ausência de um significado intrínseco. O vazio que envolve o vazio, definindo a falta como o estofo da coisa em si. O que também aponta paraa impossibilidade, ou inutilidade, de se definir o próprio projeto, já que o título e a obra quedam isolados em si mesmos.

Esta proposição videográfica é a testemunha suposta de uma violência. O reino imposto da morte entregue sob o véu da banalidade visual. O corpo insepulto da arte perpetuado, em queda, dentro do abismo binário do sentido da falta.

reorgs_ad_hoc
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Proposição videográfica sobre arte, simulacro e existência.

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