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Como salvar o Natal - crónica

Como salvar o Natal
 
Crónica por Beatriz Rodrigues
 
Nas duas últimas semanas tive oportunidade de fazer voluntariado ao serviço da Cruz Vermelha num conhecido centro comercial da minha cidade, Coimbra. Durante esse tempo, muitas vezes me congratularam pelo facto de estar como voluntária dessa instituição, por estar a ajudar a “salvar vidas”. Na verdade, o meu voluntariado consistiu apenas em embrulhar presentes de compradores apressados e sem paciência para fazer os seus próprios embrulhos em casa. Em troca, as pessoas contribuiriam com o que pudessem para a Cruz Vermelha. Mas a ideia de estar a salvar vidas parecia-me poética, pelo que nessas ocasiões em que me congratularam, em vez de explicar a natureza do meu trabalho com a Cruz Vermelha, sorria e agradecia. Até porque pensando bem, até poderia estar a salvar alguma coisa: o Natal.
Nessas horas que passei em pé a sorrir para compradores por vezes não muito simpáticos tive oportunidade de ver todo o tipo de presentes. Ao fim de algumas horas, conseguia já associar o tipo de presente que me passavam para as mãos à personalidade de quem os tinha comprado. Por exemplo, a maior parte dos homens simpáticos de meia idade compram garrafas de vinho para oferecer aos seus amigos e familiares. Os mais carrancudos pediam-me com frequência que embrulhasse chocolates, a prenda fácil, escolhidos por serem os mais baratos ou os que aparecem nos anúncios de TV. Eram esses homens, os carrancudos, que me diziam que poderia escolher o papel de embrulho e a cor do laço, que lhes era “indiferente”. Enquanto embrulhava aquelas caixas de chocolate escolhidas sem cuidado, pensava no quão calculista se tornou esta época do ano. Oferecer porque “fica bem”, “porque me ofereceram a mim”. A caixa de ferrero rochers oferecida à avó para não aparecer de mãos a abanar na noite de natal perde todo o valor por estar vazia de sentimento, de carinho, de ternura.
Por outro lado, são por vezes os presentes mais humildes que mais sentido têm. No último Sábado, uma senhora de muita idade, claramente com poucas posses, chegou-se a mim, sorriu e perguntou-me se eu poderia embrulhar o seu presente, acrescentando baixinho que não podia contribuir com dinheiro. Respondi que sim, que não havia obrigatoriedade, e que teria todo o prazer em fazer-lhe um bonito embrulho. A senhora retirou então de um saco uma embalagem de shampoo e colocou-a em cima da banca. Fiquei à espera que a idosa retirasse o presente que queria que embrulhasse, mas olhando para a sua expressão ansiosa percebi que o presente era precisamente o frasco de shampoo. “É para a minha filha, é o shampoo preferido dela”, disse. Senti muita vergonha por assumir que uma embalagem de shampoo não poderia ser um presente. Aquele shampoo, sabia-o eu, não custaria mais do que um euro e meio, mas o amor e cuidado com que claramente tinha sido escolhido partiu-me o coração. Aquela senhora, que tanto afeto parecia nutrir pela sua filha, iria oferecer-lhe um shampoo na noite de natal, porque não tinha posses para mais, mas não tinha vergonha disso. Com o pouco que tinha comprou aquilo que lhe pareceu mais adequado e estava satisfeita com o resultado. Quando finalmente terminei o embrulho, a senhora desejou-me Feliz Natal e afastou-se devagar.
Cliché ou não, o curto encontro com esta idosa relembrou-me que o importante no Natal não é o que damos, mas como damos, a emoção que o presente transporta. Lembrou-me também que foi para conviver com pessoas como aquela idosa que me inscrevi no voluntariado da Cruz Vermelha há quase um mês. Porque havendo tantas causas para contribuir, pareceu-me que salvar o Natal seria uma causa nobre. Posso não ter salvo vidas, posso não ter feito diferença na vida de muita gente, mas naquele momento em que a senhora levantou os olhos cansados e os posou nos meus, sorrindo, senti que tinha salvo um Natal, o daquela família.
Como salvar o Natal - crónica
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Crónica sobre a minha experiência de voluntariado com a Cruz Vermelho durante a última época natalícia. Reflexão sobre os valores fúteis que rege Read More

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