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Lembranças da Bonzolândia

Lembranças da Bonzolândia

*** Este artigo foi publicado originalmente em Espanhol em El Gran Otro ***

Existem artistas que são em si mesmos uma obra vivente. Getúlio Damado é um desses. Há décadas que transforma lixo em arte e a sua própria vida é uma ode ao Rio de Janeiro. O seu ateliê é um ponto obrigado em qualquer passeio pelo bairro de Santa Teresa e em conversa com El Gran Otro ele nos fala com sotaque carioca como é que se vive a vida em Bonzolândia.

Antes de mergulhar na vida e obra do Getúlio, achamos conveniente oferecer uma pequena introdução ao bairro de Santa Teresa, já que os dois estão tão relacionados que parece impossível falar de um sem nomear o outro. Vamos lá:
Santa Teresa

O bairro de Santa Teresa está num morro que se eleva sobre o centro do Rio de Janeiro. Trata-se, como todo lá, de um lugar de fortes contrastes. As mansões dos séculos XVIII e XIX convivem com favelas e prédios precários, o luxo com a carência, a gentrificação com a insegurança, o mato com a cidade.

Foi esse o primeiro bairro no qual morei quando cheguei no Rio. Trabalhava e morava num hotel ecológico que estava povoado por bonequinhos feitos com pedaços de coisas quebradas: de madeira eram os pés e braços, um pedaço de garrafa era a roupa, duas tampinhas eram os olhos, um pedacinho de plástico a boca e assim. Os bonequinhos estavam, literalmente, pela casa toda: nos banheiros, na cozinha, no jardim, nas escadas. Eram uma presença constante e todos indicavam um mesmo lugar de procedência: Bonzolândia.

“É o ateliê do Getúlio, um artista daqui do bairro, você já vai conhecer ele”, me disseram.

Conhecido como o Montmartre carioca, Santa Teresa é hoje o bairro mais artístico da cidade. Tem um monte de ateliês e pelas suas ruas circula o último elétrico do Brasil, o famoso bondinho amarelo que passa por cima dos Arcos da Lapa. Este elétrico é um dos dois símbolos distintivos do bairro. Já veremos qual é o segundo.

Os mototáxis sobem e dessem desde Glória e Lapa enquanto os turistas tiram fotos dos micos que caminham pelos cabos de luz. Incontáveis histórias se misturam neste morro.

Lá embaixo, por exemplo, está a Escadaria de Selarón, aquela famosa subida cheia de azulejos de cores, e do lado está o Convento de Santa Teresa, que dá nome ao bairro. Conta a lenda que numa sexta-feira, em pleno carnaval, uma freira fugiu para curtir a festa popular, mas voltou, arrependida e satisfeita, na terça seguinte.

Morro acima, onde Santa Teresa confunde-se com outros bairros na espessura do mato, o panorama é menos turístico, mais difícil.

Na época colonial, quando o Rio de Janeiro era o maior porto escravagista do mundo, os negros que conseguiam fugir seguiam trilhas secretas através da Floresta da Tijuca rumo aos quilombos. Muitos desses caminhos começavam nas ladeiras do que hoje é Santa Teresa.

Tudo isso e mais cabe neste cantinho do mundo tão particular. E entre turistas, micos e bondinhos, no centro mesmo deste turbilhão, fica Chamego Bonzolândia, o ateliê do Getúlio Damado. Este artista constitui em si mesmo o segundo símbolo distintivo do bairro de Santa Teresa.

A sua biografia é uma história de derrotas e vitórias, de tenacidade e arte. E assim como os seus bonecos cobram vida desde o descarte, desde aquilo que pode e espera ser reciclado, Getúlio também foi capaz de se reinventar, se levantar de entre as ruínas e se reconstruir como pai, como vizinho e como artista.
De Esperas Felizes e Cantinhos de Céu

Getúlio Damado nasceu em 1955 na cidadezinha de Espera Feliz, Minas Gerais. Aos seus 15 anos, em 1970, mudou-se para o Rio e ali ficou. Serviu no exército, trabalhou na féria e eventualmente conseguiu emprego numa rede de supermercados. Ali achou certa estabilidade, mas quando a rede foi vendida, Getúlio investiu as suas poupanças para virar sócio. Não deu certo e de repente ele se viu sem emprego, sem dinheiro e com filhos para alimentar. Foram tempos difíceis.

Foi naquela época que decidiu investir o que tinha na construção de uma barraquinha de doces e jornais no bairro de Santa Teresa. A barraquinha tinha forma de bondinho e virou de imediato um ponto de encontro. Ali, nos seus tempos livres, começou a criar personagens a partir do lixo. Foi o começo da sua carreira artística.

Getúlio batizou esse fragmento de calçada onde construiu a sua barraquinha como Cantinho de Céu. Perguntamos-lhe como foi esse processo e nos diz:

“Foi a necessidade, a separação da família. A minha mulher foi embora e tive que sustentar sozinho os meus filhos. Foi um momento difícil para mim, mas a arte me acolheu. Continua me acolhendo até agora”.

O bondinho de madeira do Getúlio não tem portas nem fechaduras. Alguns turistas se aproximam com timidez à construção amarela onde o artista, rodeado de amigos, conversa e cria. Não se parece com nenhum outro ateliê. Outros viageiros, pelo contrário, sentem-se atraídos pelas cores e pela alegria que produz esse Cantinho de Céu.

Quem visita Santa Teresa não pode não se sentir atraído pelo ateliê do Getúlio. É um ponto obrigado em qualquer passeio turístico e até aparece nas guias internacionais. Foi o protagonista de vários reportagens na TV nacional e as suas obras já foram expostas em museus do Rio de Janeiro e São Paulo.

“As exposições são muito importantes porque ajudam o artista, facilitam a comunicação com o público e oferecem uma estrutura muito interessante”.

De qualquer jeito, Getúlio não se deixa impressionar por galerias e museus. Se sente bem na calçada, no seu Cantinho de Céu. A diz:

“Eu gosto de fazer as minhas obras com liberdade. Não aceito exclusividade nem para museus nem para empresas nem nada”. E tem razão.

Getúlio teve a oportunidade de percorrer a Europa e sonha com novas viagens. Mas mesmo sendo um artista famoso, a sua situação financeira não lhe permite grandes planos. A pandemia e a queda do turismo não ajudam.

“A arte é a minha vida e o meu trabalho, porque é a minha sobrevivência”. Foi assim que eu alimentei os meus filhos. Eu faço isto com amor”.

O amor é um conceito chave na vida e obra do Getúlio Damado: amor pelos filhos, amor pela arte e pelo bairro. Getúlio faz parte da associação de moradores e também da agrupação que reúne os artistas visuais de Santa Teresa.

“Eu prantei uma semente e cresceu forte. Tenho muitos amigos e graças a Deus não tenho nada para reclamar. Sinto que o bairro é muito carinhoso comigo. Em junho vão ser 35 anos trabalhando direto em Santa Teresa, mas estou cá desde 1970, com sol e com chuva”.

Muitas obras do Getúlio estão acompanhadas de poemas e frases de amor. Tem clientes habituais que selecionam materiais para as suas obras, mas há uma que não se vende, a sua opera prima: o bondinho-ateliê.

Este jornalista espera que algum dia esse Cantinho de Céu seja considerado patrimônio cultural do Rio de Janeiro. Investimento em cultura é o que falta e Getúlio poderia aproveitar uns Reais extra.

“Eu tenho muito carinho pelo bairro. É aqui que começou a minha história com a arte e não tenho nenhuma intenção de morar em outro lugar. Daqui só vou para o andar de cima”.
Como diz aquele samba

Este jornalista lhe pregunta se alguma vez voltou a Espera Feliz e se lá a família sabe que ele é um artista famoso. Diz que a maioria sabe, sim, mas que outros moram no sertão e que tanto faz se ele é artista, piloto ou jogador de futebol. Mas através da TV ficaram sabendo. Getúlio gostaria de visitá-los um dia e organizar um grande jantar familiar, mas por enquanto esses planos ficam para tempos melhores.

O equilíbrio no Rio é sempre precário. Se chove demais a cidade fica alagada, mas se chove pouco fica sem água. O turismo é chave na economia urbana. Essa atividade, porém, já vinha descendo, mas com a chegada do Covid-19 a situação piorou. Muita gente vive na informalidade, do que pode vender na rua. Sem turismo e com a atividade comercial parada, os cariocas olham para cima e pensam, como cantava Martinho da Vila naquele samba, que a vida vai melhorar.

O samba vem ao resgate para nos ajudar a entender essa fê no futuro que tanto carateriza este povo. A coisa está difícil, mas tudo vai estar bem.

“Enquanto de para me sustentar, eu sou feliz fazendo o que eu faço”.

Lhe pergunto se tem algum conselho para todos aqueles artistas que tem medo de viver da arte. Getúlio me diz que primeiro você tem que gostar do que faz e que depois é ter esperança e coragem.

“Na vida você tem que fazer as coisas com amor. O dinheiro sempre vem, porque é a recompensa divina. Eu dinheiro não tenho, mas tenho o orgulho de ser um artista reconhecido. Tenho muitas amizades e uma semente bem espalhada. Já chegarão os tempos de recolher os frutos”.

À distância e de olhos fechados posso sentir o cheiro do mato húmido que percorre o bairro. Me lembro do calor e das Havaianas se destroçando nas pedras da rua, subindo a ladeira. E me lembro do Getúlio e do seu ateliê, desde onde agora, pelo telefone, enquanto esperamos tempos melhores, me diz a seguinte frase, como um presente:

“Para mim a arte é igual ao samba, agoniza mas não morre”.
Obrigado, Getúlio.
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