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Violência contra Mulher


Matéria produzida com a Dra. Bianca Prado, responsável pela Delegacia Especializada de Crime contra Mulher da cidade de Santa Luzia como especial para o mês de Março, mês das mulheres.​​​​​​​ Texto originalmente publicado no Jornal Impresso local "Leia Agora" e também na página do Facebook do Jornal

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

A reportagem do LEIA AGORA conversou com a delegada Bianca Prado sobre a violência doméstica na cidade e quais caminhos as mulheres têm para reverter essa realidade. Confira a entrevista abaixo:

´´O não é não, mesmo dentro de casa. Lembrar que não existe uma obrigação sexual entre marido e mulher. Então a gente também tem que encarar essas mulheres como vítimas de estupro, sim´´

Milena Geovana (*)

Quantos casos de violência contras as mulheres são registrados diariamente em Santa Luzia?
Por dia seria um número meio flutuante. Posso te dizer que por semana a gente tem uma média de 20 a 30 casos novos de violência contra a mulher. Normalmente, na segunda feira, chegamos à delegacia e geralmente há filas de mulheres esperando, machucadas, querendo a guia para o exame de corpo de delito, querendo uma medida protetiva, que não conseguiu no fim de semana com a PM, já que o ideal seria um flagrante. Mas a gente sabe que o flagrante hoje, em termos de violência doméstica, não chega nem a 2% ou 3% dos casos. Então, fica toda uma cifra que vai vir diretamente para a delegacia para a apuração posterior do fato.

Com base nos casos que chegam à delegacia, você consegue perceber similaridades entre eles?
Sim. Podemos dizer que todo caso de violência doméstica começa a dar sinal assim que falta respeito na relação. E aí, muitas das vezes, essa falta de respeito não é entendida pela vítima como sinal de que aquela relação já saiu do normal, para o abusivo, do normal para o processo criminoso. A partir de alguma discussão em que alguém levanta a voz, em que alguém tenta ganhar com a força da voz, já é um sinal de que algo está errado. Muita mulher acha que a violência doméstica ocorre somente quando ela é agredida, sendo que quando ela é xingada, diminuída, quando é empurrada ou impedida em qualquer situação, já temos uma questão de violência.

É possível traçar um perfil de vÍtimas?
Sinceramente, é muito difícil traçar um perfil de vítimas.Temos vítimas em todas as classes sociais, em todas as profissões e em todos os cantos do mundo. Todo lugar no mundo tem mulher sofrendo. Mulher bem instruída, mulher sem instrução, mulher que muitas vezes tem uma imagem de ativista e dentro de casa também sofre. Então a gente não consegue traçar um perfil de vítima nem um perfil de agressor. O que eu consigo dizer é que conseguimos perceber naquela mulher uma fragilidade na auto-estima. É uma mulher que por algum motivo está com um problema na própria autoimagem, como ser humano mesmo. Assim em algum momento ela abre as portas para que um corpo estranho, vamos chamar assim o agressor, cresça em cima dela.

Podemos dizer que a violência contra as mulheres ocorre mais entre mulheres de classe inferior e que vivem em áreas periféricas?
Sim. Não é porque aconteça mais com elas, mas eu costumo dizer que violência doméstica de rico termina no consultório do psicólogo e no cartório com divórcio. Violência doméstica de quem não tem muita condição chega é na polícia mesmo. O acesso que eles vão ter é na polícia, não vão ter como discutir esses problemas em outra esfera. Então a cifra da polícia é muito maior dentro das comunidades de baixa renda. Isso é inegável, mas não quer dizer que só exista lá. É o que chega pra gente.

É comum a mesma mulher aparecer na delegacia mais de uma vez para denunciar casos de agressão?
Infelizmente, sim. Nesses meus seis anos de delegacia das mulheres, eu vi casos de vítimas que apareceram com diversos boletins do mesmo agressor, e vítimas que apareceram com vários boletins de agressores diversos. Tem mulher que parece que a fragilidade psicológica é tão grande que ela não troca de companheiro, ela troca de agressor. Elas saem de uma relação doentia para outra relação doentia. Da mesma forma que há mulheres que demoram a perceber que estão em uma escala progressiva dentro daquela relação doentia.

O que faz as mulheres não denunciarem seus agressores?
Além do medo do próprio agressor, a vergonha perante a sociedade de se assumir como uma vítima. De achar que a culpa é dela. Porque muitas vítimas ainda têm esse pensamento de achar que se colocaram nessa qualidade de vítimas e que têm culpa em relação a isso. Mas, principalmente, muitas não denunciam por causa da dependência econômica. A gente sabe que em boa parte dos casos é o agressor que mantém o lar, que bota o leite das crianças na mesa, é quem sustenta. Mas nesses casos sabemos que se ela tiver um jeito de sair dessa dependência econômica, ela vai sair. Mas a dependência que talvez mais impeça é a dependência psicológica, e essa é a que mais me preocupa. Porque existem casos em que as mulheres são chefes de família, elas sustentam a casa, às vezes o cara não trabalha e ela se permite estar ali naquela condição de vítima diante dele.

O agressor não é apenas o companheiro afetivo. Em quais outros casos uma mulher pode se sentir agredida?
Vamos pensar em cunhado, pai, irmão, filho. São casos corriqueiros. Então quando há esse vínculo familiar, nós vamos trazer aqui para dentro da delegacia de mulheres, para o âmbito da violência doméstica, com base na Lei Maria da Penha. Lembrando que estamos aqui falando do homem agressor e nada impede que a mulher também se torne agressora.

Com base na Lei Maria da Penha, qual a média de pena aplicada nos casos de violência contra as mulheres?
A gente vai ter penas distintas de acordo com o crime. Temos penas de dois anos, três, em média. As mais graves vão ser aquelas de tentativa de feminicídio, feminicídio consumado ou de estupro. Porque também é muito importante a gente lembrar, principalmente para as mulheres casadas, que estupro acontece dentro de casa. Que aquele dia que você fala não para o seu marido, é não. O não é não, mesmo dentro de casa. Lembrar que não existe uma obrigação sexual entre marido e mulher. Então a gente também tem que encarar essas mulheres como vítimas de estupro, sim. Aí a pena é bem maior.

Por que uma mulher que sofre agressão precisa denunciar?
Acho que a resposta para essa pergunta é muito simples: para se manter viva. Para mim não existe graduação de violência. Violência é violência e precisa ser sanada. Então não me interessa se a pena vai ser de três anos. O que me interessa é se eu acabar com aquela situação de violência. Hoje em Santa Luzia nós temos uma delegacia de mulheres preparada para atender a mulher. Depois de muitos anos de briga conseguimos colocar uma assistente social para o acompanhamento. Conseguimos montar também uma sala para as crianças, que é uma brinquedoteca. Conseguimos fechar uma parceria com uma faculdade de Belo Horizonte para o acompanhamento psicológico das vítimas. Isso tudo dentro da delegacia. A vítima chega e vai receber o acolhimento. Sempre falo: você sofreu a violência doméstica fora do horário de funcionamento da delegacia, vai em outra e registra, vai no plantão, vai na militar e registra, mas não deixa de procurar a delegacia depois. Porque vai ter todo o requerimento de medida protetiva, todo o encaminhamento para o acompanhamento assistencial e psicológico. A gente vai poder fazer toda uma escuta diferenciada, todos os investigadores que fazem o atendimento são treinados para uma escuta diferenciada. O atendimento não é uma receita de bolo, cada um é de um jeito. Eles vão conseguir pegar toda a sensibilidade daquele caso e colocar aquilo no papel, em um boletim de ocorrência, em um relato da vítima. A vítima já sai da delegacia, no seu primeiro atendimento, com requerimento de medida protetiva, que em 48 horas está na mão da juíza. A vítima sai com a guia de IML expedida, em caso de lesão, e ela já sai orientada. Então, isso em Santa Luzia eu posso garantir que está lá. Por isso a gente sempre deixa esse apelo. Você pode ir na delegacia? Vá! Se não, nós temos o disque-denúncia, mas se você pode ir, vá, que é muito mais rápido.

Como funciona a medida protetiva?
A medida protetiva hoje está muito mais eficaz que há tempos atrás. Hoje, o legislador garantiu muito mais eficácia para ela a partir do momento em que ele colocou dentro da Lei Maria da Penha que descumprimento de medida protetiva ensejando prisão. Antigamente, mulher saía com aquele pedido. Em alguns dias, ela recebia o oficial de justiça, dizendo que essa medida foi deferida, então ela tinha um papel na mão, olhava para a pessoa e falava: ‘Olha, você tem que ir embora de casa, tá aqui ó! Você não pode se aproximar de mim 400, 500, 600 metros. Você não pode manter contato comigo etc.’ E se ele não obedecesse, ela voltava na delegacia, a gente instaurava um outro pedido, ele respondia por desobediência, mas não era preso efetivamente, ao menos que tivesse uma ordem judicial nesse sentido. Hoje, com essa lei, se ele está descumprindo, qualquer policial vai lá e prende o agressor na hora. E o mais interessante é que não cabe fiança.

Apenas a mulher que sofre agressão pode fazer a denúncia ou alguém próximo a ela também pode denunciar?
O ideal é sempre ela mesma fazer, porque aí vamos poder fazer o boletim para ela, o pedido dela. Mas se por algum motivo ela está impossibilitada, vamos supor que ela está sofrendo cárcere, sendo vigiada de perto, sendo perseguida por esse agressor e ela tem acesso ao telefone: para esses casos existe o disque-denúncia. Costumo dizer que o disque-denúncia está muito banalizado, porque muitas vezes a vítima pode ir até a delegacia, mas ela usa o telefone, e isso acaba congestionando um meio que seria para casos mais graves. Agora vamos supor que eu sei que minha vizinha está sofrendo uma violência doméstica e não está tomando nenhuma atitude. E aí? Eu posso me meter nessa relação ou em briga de marido e mulher ninguém mete a colher? Esse é um questionamento que muitas pessoas me fazem. Costumo falar que em briga de marido e mulher e gente não mete a colher. A gente mete o faqueiro inteiro, porque vamos esperar que esse caso se agrave? E aí vamos supor que sua vizinha está sofrendo esse abuso, você sabe e não está mais aguentando a situação. Nesses casos você pode usar o disque-denúncia. Muita gente fala assim: E o sigilo da fonte? Eu, Bianca, delegada de polícia recebo ligações pelo disque-denúncia todos os dias e eu nunca soube quem denunciou. Então eu dou minha palavra a vocês, o que chega para mim é o número de protocolo e o horário do registro, nada além. Então gente, se o medo de vocês, não apenas em relação à violência doméstica, mas sobre qualquer denúncia é o sigilo, vocês podem ficar tranquilos. Existe total sigilo da fonte.

Quais medidas uma mulher que sofreu qualquer tipo de abuso deve tomar?
Olhe, mulher, agora eu vou falar para você. Se você estiver neste momento sofrendo alguma agressão, ou se você acha que está sofrendo, procure a delegacia. Venha, converse, vamos sair dessa situação que está colocando você menor do que é. A gente está aqui para ajudar você a ficar ampla como cidadã. E quando a gente fala ampla como cidadã, a gente fala muito além do que você se encontra, com todos os seus direitos disponíveis. Eu quero que eles estejam todos garantidos para vocês efetivamente. E efetivamente a gente precisa estar bem, bem psicologicamente, bem fisicamente. Quando a vítima costuma procurar a delegacia achando que está em um processo de agressão, normalmente ela já está dentro dele. Vamos lembrar para vocês que agressão não é simplesmente agressão física. A agressão verbal é tão agressão quanto a física, a ameaça é tão mais séria muitas vezes do que um soco no olho. Eu não preciso que vocês cheguem aqui roxas. Eu quero que vocês cheguem aqui vivas e se mantenham vivas. Então, procurem a delegacia no menor sinal de relação abusiva.

(*) Estagiária sob a coordenação de Flavia Thomazi
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