Vinícius de Souza's profile

Uma breve experiência

Uma breve experiência
Quando Vinícius de Moraes e Baden Powell lançaram Os Afro-sambas, em 1966, certamente estavam deslumbrados com a descoberta de uma nova cultura e espiritualidade em pleno território brasileiro. O disco, ode aos orixás provenientes de religiões africanas, é fruto da viagem do músico e do poeta à Bahia, onde mantiveram contato com a Umbanda. Visto até hoje como um ponto de virada na MPB, o trabalho ajudou a estreitar os laços entre a cultura brasileira e as religiões de matriz africana, contribuindo para uma queda de preconceitos religiosos com essas vertentes – principalmente entre as classes mais altas, que consumiam esse tipo de música.

53 anos depois, a Umbanda é um fenômeno expressivo no país. A religião, há tempos, ultrapassou as barreiras baianas e se disseminou por todo o Brasil – apesar de uma diminuição no número de adeptos nos últimos anos, em decorrência da ascensão das igrejas neopentecostais.

Diante de uma religião tão instigante, um álbum que tanto admiro e um gonzo a ser concluído, decidi que, na noite de 6 de Junho de 2019, eu visitaria um centro daquela que é tida como a primeira religião oficial do Brasil.

Recorri ao Núcleo, que disponibilizava visitas às terças e às quintas-feiras. Eu, que nunca fui de ir à igrejas, me surpreendi com a simplicidade do recinto. O ambiente assemelhava-se a uma sala de estar. Fui recebido por Janaína, que me guiou pela sala principal – repleta de quadros de figuras sagradas da Umbanda – e me apresentou ao grupo, composto por cerca de 15 pessoas. Desde o início, fui claro de que estava lá pela experiência e que não necessariamente me uniria à seita.

Após uma excelente recepção, fui informado de quea noite preparava uma Gira. Meu leigo conhecimento sobre a religião não me permitia saber o que significava, ao que me explicaram que tratava-se do ritual mais importante da Umbanda – o que implica em uma rota de contato com as diversas entidades divinas que abrangem o dicionário umbandista.

Algo que me chamou a atenção foi que, diferente do que eu esperava, não foram utilizados instrumentos para o ato em questão. Uma caixa de som e muitas orações em uníssono foram o suficiente para gerar uma atmosfera muito distante da minha realidade. Em dado momento, me vi arrepiado, vivendo algo que, sem dúvida alguma, possuía muita energia embutida – apesar de jamais ter deixado de observar tudo com enorme ceticismo.

O tipo de Gira abordada era do tipo aberto, que permitia interação de pessoas de fora. Seguindo esse modelo, os presentes aproximavam-se dos médiuns com auxílio de assistentes, a fins de receberem conselhos e ajuda espiritual. Além da espiritualidade, enxerguei nela um viés terapêutico. Nota-se, sobretudo, um grande sentimento de afago para pessoas que encontram-se desamparadas .

Mas foi no decorrer do ritual que, divagando, me atentei a um fato curioso - talvez aleatório, mas de fato curioso: não havia nenhum negro no ambiente. Todos os envolvidos eram brancos; tanto os frequentadores quanto os provedores. Para uma religião de matriz africana, algo parecia estar fora de acordo. Lembrei, então, de outro centro umbandista que havia pesquisado na internet, antes de chegar a este, apenas com pessoas brancas em suas fotos de divulgação. Pensei: seria a Umbanda um vulgar embranquecimento de sua principal matéria bruta, o Candomblé?.

Com base em alguma pesquisa, fui em busca da resposta.

A primeira religião original brasileira, que resgata traços da cultura africana e os miscigena com nossos ritos ocidentais do Cristianismo e do Espiritismo, é também um dos sintomas da cultura escravagista e segregacionista enraizada nas tradições socio-culturais brasileiras. Fundada em 1908 por Zélio Fernandino de Morais, a religião foi uma forma de sincretizar e suavizar as práticas advindas da África por meio do tráfico de escravos – de forma que a elite branca e a classe média pudessem se sentir representadas por elas sem estarem inseridas no mesmo degrau que ex-escravos marginalizados, entre os quais muitos cultivavam suas raízes do Candomblé.

Com isso, a Umbanda foi uma forma de legitimar os rituais candomblecistas, implantando neles a formalidade católica e espantando o estigma - infelizmente atual - de macumba, este que fora criado com base em um abomínio às práticas do Candomblé nas senzalas brasileiras.

Em uma rápida pesquisa realizada após a experiência, descobri que 47% dos adeptos de religiões afro no Brasil, hoje, são brancos. A porcentagem é mastodôntica se levarmos em conta que os negros correspondem a 54% da população brasileira.

Não me sinto no direito ou dever de reivindicar os pretextos de uma religião repleta de adeptos no país – afinal, existe uma linha tênue entre reconhecer uma origem e praticar intolerância religiosa, ainda mais tratando-se de um tema tão sensível quanto a fé alheia. Contudo, vale a reflexão sobre como a classe média e a elite branca apropriam-se culturalmente de tradições de classes com maior vulnerabilidade social. Reflexo disso é um centro de religião afrobrasileira conter apenas pessoas brancas. Reflexo disso é, voltando ao início do texto, um disco intitulado Afro-sambas ser idealizado, projetado e executado por dois homens brancos.

Origens suspeitas à parte, lacunas sociais à parte: no geral, minha experiência com o Núcleo Mata Verde foi positiva e peculiar. A noite me apresentou um mundo completamente diferente; uma filosofia diferente.
Ainda vale frisar como a religião – independente de qual seja sua vertente – quando administrada de forma saudável e não criminosa pelo indivíduo, pode ser um excelente refúgio mental e - por que não? - espiritual. Algumas visões de mundo são, de fato, muito mais complexas do que um punhado de canções dentro de um álbum de MPB.
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Relato da minha experiência com a primeira religião do Brasil.

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