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Cante lá que eu canto cá

Cante lá que eu canto cá

Experimentação para as disciplinas de Design Experimental e Design de Livros, na Especialização em Design Editorial da Uni7 (Universidade 7 de Setembro). O desafio era desenvolver um livro experimental, utilizando técnicas manuais e tendo como referência o texto Cante lá que eu canto cá, do poeta cearense Patativa do Assaré.

Nasceu um livro objeto cheio de referências da cultura popular nordestina. Para quem fica curioso sobre o processo de criação, um QR Code impresso na embalagem e em um encarte, leva o leitor até uma pasta compartilhada na internet onde tudo está devidamente documentado por meio de fotos e vídeos.

As ilustrações do livro foram feitas utilizando carimbos artesanais que foram esculpidos em borrachas escolares. Os textos foram impressos em impressora doméstica e a encadernação foi feita manualmente. Também produzimos uma sacola de tecido de chita e uma embalagem de madeira com uma tampa dividida em duas partes, fazendo referência às portas de algumas casas do sertão. Produzimos também uma jaqueta de papel que impressa em peça única em uma impressora caseira.


Poeta, cantô da rua,
Que na cidade nasceu,
Cante a cidade que é sua,
Que eu canto o sertão que é meu.
Se aí você teve estudo,
Aqui, Deus me ensinou tudo,
Sem de livro precisa
Por favô, não mêxa aqui,
Que eu também não mexo aí,
Cante lá, que eu canto cá.


 
 
Você teve inducação,
Aprendeu munta ciença,
Mas das coisa do sertão
Não tem boa esperiença.
Nunca fez uma boa paioça,
Nunca trabaiou na roça,
Não pode conhece bem,
Pois nesta penosa vida,
Só quem provou da comida
Sabe o gosto que ela tem.
 
Pra gente cantá o sertão,
Precisa nele mora,
Te armoço de fejão
E a janta de mucunzá,
Vive pobre, sem dinhêro,
Trabaiando o dia intero,
Socado dentro do mato,
De apragata currelepe,
Pisando inriba do estrepe,
Brocando a unha-de-gato.
 
 


Você é muito ditoso,
Sabe lê, sabe escrevê,
Pois vá cantando o seu gozo,
Que eu canto o meu padecê.
Inquanto a felicidade 
Você canta na cidade,
Cá no sertão eu infrento
A fome, a dô e a misera.
Pra sê poeta divera,
Precisa tê sofrimento.

Sua rima, inda que seja
Bordada de prata e ôro,
Para a gente sertaneja
É perdido esse tesôro.
Com o seu verso bem feito,
Não canta o sertão defeito,
Porque você não conhece
Nossa vida aperreada.
E a dô só é bem cantada,
Cantada por quem padece.

Só canta o sertão dereito
Com tudo quanto ele tem,
Quem sempre correu estreito,
Sem proteção de ninguém,
Coberto de precisão 
Suportando a privação 
Com paciença de Jó,
Puxando o cabo da inxada,
Na quebrada e na chapada,
Moiadinho de suó.




Amigo não tenha quêxa,
Veja que eu tenho razão 
Em lhe dizê que não mêxa
Nas coisas do meu sertão.
Pois, se não sabe o colega
De quá manêra se pega
Num ferro pra trabaiá,
Por favor, não mêxa aqui,
Que eu também não mêxo aí,
Cante lá que eu canto cá.




Repare que a minha vida
É deferente da sua.
A sua rima pulida
Nasceu no salão da rua.
Já eu sou bem deferente,
Meu verso é como a simente
Que nasce inriba do chão;
Não tenho estudo nem arte,
A minha rima faz parte
Das obra da criação.

Mas porém, eu não invejo
O grande tesôro seu,
Os livro do seu colejo,
Onde você aprendeu.
Pra gente aqui sê poeta
E fazê rima compreta,
Não precisa professô;
Basta vê no mês de maio,
Um poema em cada gaio
E um verso em cada fulô

Seu verso é uma mistura
É um ta sarapaté,
Que quem tem pôca leitura,
Lê, mais não sabe o que é.
Tem tanta coisa incantada,
Tanta deusa, tanta fada,
Tanto mistéro e condão
E ôtros negoço impossive.
Eu canto as coisa visive
Do meu querido sertão.

Canto as fulô e os abróio
Com toda coisas daqui:
Pra toda parte que eu óio
Vejo um verso se buli.
Se as vez andando no vale
Atrás de cura meus males
Quero repará pra serra,
Assim que eu óio pra cima,
Vejo um diluve de rima
Caindo inriba da terra.

Mas tudo é rima rastêra
De fruita de jatobá,
De fôia de gamelêra
E fulô de trapiá,
De canto de passarinho
E da poêra do caminho,
Quando a ventania vem,
Pois você já tá ciente:
Nossa vida é deferente
E nosso verso também.

Repare que deferença
Iziste na vida nossa:
Inquanto eu tô na sentença,
Trabaiando em minha roça
Você lá no seu descanso,
Fuma o seu cigarro manso,
Bem perfumado e sadio;
Já eu, aqui tive a sorte
De fumá cigarro forte
Feito de paia de mio.

Você, vaidoso e facêro,
Toda vez que qué fumá,
Tira do bôrso um isquêro
Do mais bonito meta.
Eu que não posso com isso,
Puxo por meu artifiço
Arranjado por aqui,
Feito de chifre de gado,
Cheio de argodão queimado,
Boa pedra e bom fuzí.




Sua vida é divertida
E a minha é grande pena.
Só numa parte de vida
Nóis dois samo bem iguá
É no dereito sagrado,
Por Jesus abençoado
Pra consolá nosso pranto,
Conheço e não me confundo
Da coisa mio do mundo
Nóis goza do mesmo tanto.

Eu não posso lhe inveja
Nem você invejá eu
O que Deus lhe deu por lá,
Aqui Deus também me deu.
Pois minha boa muié,
Me estima com munta fé,
Me abraça, beja e qué bem
E ninguém pode negá
Que das coisa naturá
Tem ela o que a sua tem.

Aqui findo esta verdade.
Toda cheia de razão:
Fique na sua cidade
Que eu fico no meu sertão.
Já lhe mostrei um ispeio,
Já lhe dei grande conseio
Que você deve toma.
Por favô, não mêxa aqui,
Que eu também não mexo aí,
Cante lá que eu canto cá.




CANTE LÁ QUE EU CANTO CÁ 
livro e embalagem prontos


Cante lá que eu canto cá
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Cante lá que eu canto cá

Trabalho de criatividade em design editorial, com uso de técnicas manuais e de engenharia do papel.

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