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Reportagem - Soterrados, Mariana (MG)

05 de novembro  -  Tragédia em Mariana (MG) 
Parte I

Nada foi poupado. A onda de lama engoliu tudo que via pela frente: pessoas, telhados, árvores, ruas e lembranças. O manso rio do Carmo, que corria entre as antigas árvores de Paracatu, escureceu. À beira dele, Barra Longa, uma cidadezinha de 6 mil habitantes, foi parcialmente inundada. Rapidamente, os rejeitos se alastraram ao longo do Rio Doce e, 17 dias depois, na praia de Regência, em Linhares-ES, o azul do mar transformou-se em marrom, cor pesada de ferro. Sem nenhum alarme e aviso, a lama impactou cerca de 2.220 hectares da área por onde passou. E as sirenes só chegaram à noite.

Naquela tarde de 5 de novembro, Vitor Geraldo de Souza não foi à escola. No número 74 da rua Cônego Veloso, na pacata Bento Rodrigues, o moleque terminava sua última partida de videogame. Eram 11 correndo atrás da bola. Os olhos de Vitinho acompanhavam cada passe e toque na bola. Em posição de ataque, com o controle na mão, ganhou mais uma vez do primo, já apelidado de freguês. A escola em que Vitor cursava o terceiro ano do Ensino Médio fica no distrito de Santa Rita Durão, aproximadamente 10 km de Bento, quase 20 minutos, se Vitinho andasse a passos largos. Com meia hora de sobra para se arrumar antes do começo da aula, um barulho incomum vindo de fora tomou o pouco tempo que ainda lhe restava. “Deve ser briga, não vou lá não.” Continuou jogando, mas a tentativa foi em vão. O barulho era insistente, com muitos gritos. Desesperador.
- Vem Vitor, vem Vitor! — gritaram lá de fora.

Parte II

O tamanho inicial era de cinquenta e cinco milhões de metros cúbicos. A composição era cerca de 90% areia e os restantes se dividiam em resíduos de manganês, óxidos de ferro e argila. Ela estava segura, pelo menos aos olhos da grandiosa Samarco, estava segura. Uma imponente barragem, construída sob medida, era suficiente para hospedar um lamaçal, que não tinha pretensão de sair do vale. Os rejeitos estavam lá e a cada dia, cresciam um pouco mais. Sem estrutura para aguentar, as rachaduras fizeram dos funcionários do dique 1, as primeiras vítimas fatais. No linguajar dos trabalhadores da Samarco, dique 1 é o mesmo que barragem de Fundão.
- A barragem rompeu! – um funcionário passou a notícia pelo rádio.
- Você tá brincando, né? – respondeu Romeu, trabalhador terceirizado da Samarco.
A ligação do rádio falhou. 
Romeu Geraldo Oliveira era um dos 3.517 trabalhadores terceirizados pela mineradora. Números contabilizados no ano de 2014. Por lei, os serviços permitidos para terceirizados são limitados à atividades-meio, ou seja, que não correspondem ao objetivo principal da empresa. Há 9 anos, Romeu trabalhava dentro da mina. Por mês, o encarregado de operações tirava 2.100 reais. Acordava às 5h em Paracatu de Baixo para estar às 7h45 no vestiário da empresa, onde deixava os pertences, no armário conjunto com o mecânico Sérgio*. Outro terceirizado.
O trabalho daquele dia 5 era movimentar uma peça de 70 toneladas. Romeu solicitou a máquina necessária e fez a manobra por 500 metros dentro da mina. Hora do almoço. Às 13h30, voltou a lidar com a peça, que ainda tinha um longo caminho a ser percorrido. 15h15 o rádio tocou. 15h16 o rádio estava mudo e Romeu apenas deu continuidade ao serviço, que se estendeu até o final do expediente, às 17h. No armário, os pertences de Sérgio* ainda estavam lá. Ele trabalhava como mecânico no dique 1 e não conseguiu escapar. Os objetos continuaram no mesmo armário por mais sete dias. Dos 14 funcionários mortos, 13 eram terceirizados.
Os 35 km que distanciavam a Samarco de Paracatu de Baixo fizeram Romeu acreditar que a lama não chegaria até sua família, mas as notícias que começavam a circular diziam o contrário.
- Peguei o carro e transformei um trajeto de 40 minutos em 20.
Iracema de Oliveira, esposa de Romeu, poderia ter tido tempo de recuperar alguns bens, se os 55 milhões de metros cúbicos iniciais não tivessem ultrapassado Santarém, uma barragem de captação de água, com limite de 7 milhões de metros cúbicos, também excedido. Do total, 34 milhões de metros cúbicos foram expelidos ao longo do vale. Impiedosa, a enxurrada dizimou Bento Rodrigues e seguiu o curso do rio Gualaxo do Norte, um subafluente do rio Doce.

Parte III

Antes do anoitecer, dona Rosária Ferreira Duarte se escondia dos últimos raios de sol sob a sombra das árvores, às margens do rio Gualaxo do Norte. Era uma tarde de pesca como tantas outras, em que a advogada abdicava da vida urbana em Mariana e deliciava-se com o sabor da manga direto do pé. Nascida em Piranga, no interior de Minas Gerais, escolheu a cidade para ser seu escritório e Paracatu de Baixo seu lar. Lá, comprou um pedaço de terra e dedicou-se a transformar os 16 hectares em um mundo particular.
- Aqui era meu Shangri-lá.
O tempo parecia deter-se em um ambiente de felicidade e saúde. No subdistrito de Monsenhor Horta, reinava a convivência harmoniosa entre pessoas das mais diversas procedências. Mas, em poucos minutos, o local que muitos escolheram viver tornaria- se àquele que todos gostariam de fugir.
Uma moto anunciou a tragédia. No momento, Rosária não levou a sério a sorte que teve. Correu até o rancho, um dos primeiros terrenos do subdistrito, soltou os cavalos para um pasto mais alto e seguiu em direção à Mariana. Largou móveis, fotos, roupas e troféus de marcha. A maioria dos outros moradores foi avisada às pressas, por helicópteros dos bombeiros e equipes de resgate. Na correria, deixaram para trás os pertences adquiridos com anos de suor.
Após o rompimento da barragem, a lama demorou cerca de uma hora para desaguar no rio Gualaxo do Norte, ganhar mais força e continuar a percorrer sua marcha de destruição. Em Paracatu de Baixo, só a igreja e a escola ficaram de pé.

Parte IV

Horas antes da lama soterrar 207 edificações de Bento Rodrigues, a assistente social Luciana Conceição Gomes, estava a cerca de uma hora de distância do subdistrito de Mariana. No setor habitacional da prefeitura, atendia uma mãe de 10 filhos, dona Nívea, que há tempos pedia por uma nova caixa d’água. No final do expediente, uma ligação no telefone de Luciana repercutiu a tragédia e foi a responsável por reunir funcionários, que não tinham como prever o que seria feito a partir daquele momento.
Era hora de esperar. Aos poucos, as vítimas se encolhiam no alto do Morro do Papagaio temendo por suas vidas. Inseguros, esperavam o rompimento de outra barragem, também sem nenhum aviso. Helicópteros de grandes emissoras sobrevoavam o percurso da lama e ansiavam por imagens exclusivas. Viaturas e ambulâncias aguardavam alguém para socorrer. Só aguardavam, pois a lama impedia o resgate imediato. Naquele dia, a escuridão chegou mais cedo e aguçou outros sentidos além da visão. O olfato reclamava a podridão que chegava às narinas. Ninguém foi capaz de pregar os olhos.
Inclusive Luciana. Mesmo em segurança, era impossível descansar: ficou em alerta o tempo todo na espera da chegada dos desabrigados.
O sol terminara o espetáculo quando os primeiros moradores de Bento Rodrigues e Paracatu chegaram ao complexo esportivo
Enquanto isso na Arena Mariana…
Como uma procissão, vagavam em direção do nada, em busca de fé e explicações. Alguns, separados da família, choravam a incerteza.
Na fila do credenciamento, um nome: Nívea Aparecida da Silva, moradora de Paracatu de Baixo. “Meu patrimônio, senhora? Dez filhos pra criar e uma caixa d’água, sem lugar pra colocar.” Todos eram corpos exaustos se arrastando entre os degraus da arquibancada, onde mães esperavam filhos e jornalistas, informações. “A cidade estava um caos. Tem gente que falava: atingiu só o campo de Bento. Outros, que o lamaçal cobriu o povoado”.
O primeiro inquérito policial referente ao rompimento da barragem do Fundão, concluído em 23 de fevereiro de 2016 pela Polícia Civil de Minas Gerais, confirmou 17 mortes, entre funcionários e pessoas locais. No documento, ainda constavam os nomes de mais duas pessoas — um funcionário da Samarco e um terceirizado da mineradora — contabilizados como desaparecidos, mas também considerados vítimas fatais pela Polícia Civil , totalizando 19 mortos.
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Parte da reportagem multimídia realizada como conclusão de curso da faculdade de Jornalismo da PUC-Campinas sobre o desastre em Mariana, MG - nov Read More

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