A relação entre o humano e sua tecnologia: Johnny Mnemonic
c
— Case — começou a dizer, quase não pronunciando as palavras — ,
está me ouvindo? Vou contar uma história… Há tempos tive um cara. Você
me lembra ele… — Voltou-se e investigou o corredor. — Johnny, era o seu
nome.
[…]
— Unha e carne e confiantes no futuro, era como vivíamos. Na
convicção de que ninguém seria capaz de nos atingir: eu não ia deixar.
Suponho que a Yakuza ainda queria a pele do Johnny, pois eu tinha matado
o homem deles e o Johnny tinha fodido eles. E na Yakuza podem se dar ao
luxo de se moverem tão lentamente, cara, que chegam a esperar anos e anos.
São capazes de concederem toda uma vida pra que uma pessoa tenha mais a
perder quando eles aparecerem pra tirar. Pacientes como uma aranha.

Aranhas Zen.


Quando tive a oportunidade de ler Neuromancer, a primeira parte da trilogia ‘Sprawl’ pela primeira vez, pouco tempo atrás, mal imaginava eu que havia um conto desconhecido que precedia a obra do renomado William Gibson. Os trechos acimas, cuidadosamente retirados da obra principal, remetem diretamente para a primeira motivação em procurar por essa forma de conto tão obscura assim, quando Molly fala de seu ex-namorado e parceiro, Johnny. Tão obscuro que hoje em dia só é possível acha-lo fisicamente na edição comemorativa de 30 anos de Neuromancer no Brasil (Editora Aleph), que não é exatamente barata.

Felizmente, Johnny Mnemonic recebeu uma adaptação para os cinemas, inclusive com roteiro do próprio William Gibson e direção de Robert Longo. O filme, intitulado “Johnny Mnemonic: O Cyborg do Futuro” aqui no Brasil, trazia um ainda jovem Keanu Reeves em seu papel principal, como Johnny, papel esse que certamente o ajudaria bastante a conseguir seu papel futuramente como Neo, em Matrix. É essa adaptação que iremos analisar aqui.

A história

Johnny Mnemonic, filme, que fique claro, não é exatamente uma cópia do conto original. É uma adaptação que conserva seus próprios traços de originalidade. Aqui, Keanu Reeves dá vida ao personagem Johnny — e só Johnny. Johnny é um contrabandista de dados, um traficante cibernético com capacidade de armazenar informações em sua cabeça e transporta-las a partir daí para os seus clientes. A palavra “Mnemônica” vem exatamente dessa habilidade que Johnny tem, de usar sua própria mente para ganhar a dura vida que é viver num mundo cyberpunk do século 21.

“Hello, this is your wake up call”

E assim somos apresentados ao mundo de Johnny Mnemonic. Uma introdução para todo aquele universo que já vemos nas obras de Gibson e em seguida o protagonista acordando. Olha para o lado, vê uma prostituta de quem provavelmente nem sabe o nome como lembrança da noite anterior, a mesma pergunta onde é sua casa. Johnny não sabe responder, na verdade nem mesmo sabe onde é sua casa, pois há muito tempo não sabe o que é ter uma. É um andarilho, vivendo de “lance em lance”, fazendo negócios obscuros com o pior tipo de pessoas. Um homem chamado Ralph contacta Johnny para um desses trabalhos. Era para ser um trabalho comum, roubar informações como ele sempre fazia e leva-la ao seu contratante. Com o que Johnny não contava era que aquele trabalho em específico lhe traria a maior dor de cabeça de sua vida.

“Um homem que sabe demais é um homem morto”

Johnny descobriria da pior forma como isso era verdade. Ao acessar a matrix e ser bombardeado por um excesso de informações da empresa Pharmakon, o mesmo se encontra bem no centro do enorme jogo de interesses das grandes corporações que dominam aquele mundo distópico. Ao passo em que tanto Ralph quanto a Pharmakon o querem ver morto, Johnny escapa da morte quase certa com a ajuda de Jane, uma razorgirl que embora sinalize estar com o mesmo apenas pelo dinheiro que ela pode ganhar, com o tempo acaba se transformando em uma amiga de verdade e poderosa aliada. Após os dois conseguirem eliminar Ralph, contudo, a Pharmakon não deixaria barato ao contactar o seu melhor assassino: “O Pregador”, um assassino e perseguidor implacável da dupla pelo resto do filme, bem como ao mesmo tempo é um seguidor fiel de uma seita messiânica pós-apocaliptica.

O segredo da Pharmakon vem à tona

Após contactarem o médico de Jane, Johnny sente que precisa apagar aquelas informações de sua cabeça o mais rápido possível, ou nunca conseguiria fazer com que a Pharmakon parasse de tentar acha-lo. Ao mesmo tempo, somos introduzidos para a doença de Jane bem como ao fato de que as informações que Johnny carrega na cabeça são nada mais nada menos que a cura para a essa mesma doença. Depois de pensar e hesitar muitas vezes, Johnny decide que não irá mais apagar aquelas informações e sim divulga-las para o mundo com a ajuda de J-Bone, um anarquista líder de uma gangue de ferro-velho, dessas ao melhor estilo “Mad Max”. Se iniciava aqui o encontro final entre o presidente da Pharmakon, Takahashi — um homem que mais parece atormentado pelo passado do que um cara realmente mau, diga-se de passagem, Johnny, Jane, J-Bone e é claro, mais uma grande aparição do Pregador, que dá todo o toque de ação e violência na reta final do filme.

A crítica e o alerta para uma sociedade doente por tecnologia

Quando analisamos Akira lá atrás, vimos que havia uma preocupação alarmista do autor com relação ao futuro do mundo. Em ‘Johnny Mnemonic’, a coisa vai ainda mais além. Aqui é um prato cheio para quem gosta de elaborar teorias da conspiração.

O mundo cyberpunk, tanto de Neuromancer quanto de Johnny Mnemonic não é confiável. As pessoas que lá vivem parece que se tornaram tão individualistas, sem quaisquer percepção de um ideal coletivo que se tornaram frias, calculistas e que fazem tudo por dinheiro. Todo personagem que é introduzido, com exceção talvez daqueles que o autor faz questão de colocar na sua cara que serão aliados — Jane, por exemplo, te dá a estranha sensação de que assim que você virar para trás, será apunhalado da maneira mais covarde possível.

As pessoas absorveram tanta tecnologia que se tornaram doentes e quando eu digo doentes, são literalmente doentes, não apenas loucas como o caso do vilão Pregador. A doença que acomete Jane, a SAM, adoece também metade da população do planeta, segundo um dos personagens do filme. É como se todo eletrônico estivesse, pouco a pouco, envenenando as pessoas e tornando-as doentes, o que traz um debate interessante com relação aos riscos tecnológicos, afinal você certamente já deve saber a essa altura da vida que não há um consenso científico de que a radiação de telefones celulares pode causar câncer. É realmente uma hipótese de risco a ser considerada, afinal os resultados reais destas pesquisas não interessam a todo mundo.

Por falar em interesses do mundo, aqui vem um fator absolutamente interessante e que é responsável pelo que seja talvez o maior teor crítico do filme: as motivações da Pharmakon em não deixar a cura da SAM ser divulgada. Por qual motivo? Simplesmente pelo fato de que é mais lucrativo com que se trate a doença do que curar a mesma. Entrando já no mérito conspiracionista, talvez isso seja o que esteja acontecendo bem debaixo dos nossos narizes, quando topamos com doenças que já deveriam ter sido erradicadas e cujo tratamento é tão caro e capaz de enriquecer algum “poderoso” por trás. É motivo para elaborar uma boa reflexão.

Conclusão

Para quem leu o conto ‘Johnny Mnemonic’, vai estranhar um pouco a existência da personagem Jane, quando na verdade devia ser a Molly, o melhor exemplo possível de “princesa cyberpunk”. De fato, a Molly estaria originalmente no filme, porém os direitos sobre os personagens de Neuromancer estavam com outro estúdio, o que fez com que os personagens conhecidos da obra não pudessem dar as caras por aqui, o que é uma pena. Felizmente, é possível reconhecer figuras familiares dos fãs da obra, como o ‘Finlandês’, médico a qual tanto Molly quanto Jane recorrem sempre que estão com problemas ou até mesmo a existência do “constructo” da dona da Pharmakon, tal como Dixie Flatline que sempre aparecia para Case quando o mesmo conectava com a Matrix. Quem é realmente fã do universo, vai sacar essas referências sutis.

Por fim, “Johnny Mnemonic” ainda é um filme de nicho. O filme tem suas diferenças com o conto, mas isso não o desmerece em nada, podendo ser encaixado perfeitamente com a cronologia de William Gibson. Ele consegue divertir sem ser entediante e dá o tempo todo a impressão de ter sido feito exclusivamente para os mais fiéis seguidores do cyberpunk. Para quem assistiu Matrix, também dá para se considerar um “predecessor espiritual”, dado ser o filme que abriu as portas do gênero para o ator Keanu Reeves e tamanha influência que o mundo distópico de Gibson deu para as irmãs Wachowski.

Autoria do trabalho: Ana Beatriz Rosa, Laura Rosa, Luís Filipe Lima, Rhayra Almeida e Yago Monteiro
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