Filipa Lourenço's profile

Vai mudando, léve-léve

NOTÍCIAS MÉDICAS com a AMI em São Tomé e Príncipe


Vai mudando, léve-léve



Aterramos no verde húmido, quente e acre de São Tomé e Príncipe. De São Tomé à cidade de São João dos Angolares, capital do distrito de Caué, distam 40 km de estrada esburacada e sinuosa. O caminho faz-se de sobressalto, porque tudo é novo, a começar pelo ar que se respira, pelas árvores robustas e estranhas que invadem a ilha, pelas cores que se misturam: o azul, o verde do obô, o castanho húmido da terra ou a cara negra das crianças, chupando uma manga, amarelíssima.
Durante uma semana, NOTÍCIAS MÉDICAS acompanhou uma equipa da AMI — Assistência Médica Internacional na recta final de um projecto de sete meses, onde além da assistência se apostou na formação de agentes sanitários e de activistas comunitários do distrito de Caué, elos “esquecidos” e ainda pouco valorizados num sistema de saúde carenciado a que a AMI dá a mão há 19 anos




O teatro chegou de ambulância. Um homem chama e esbraceja: “Gente vem, iô!” A população de Emolve, no pobre e verde distrito de Caué, entra em pequenos grupos no recinto aberto ao céu onde o teatro se prepara. Sentadas em bancos corridos, as crianças esperam em silêncio. Os actores penduram um lençol que improvisa uns bastidores, vestem trapos, prendem lenços à cabeça, põem óculos escuros e barbas postiças. Alguém topa os disfarces e desfaz-se em gargalhadas.
É a terceira vez que representam a peça nessa manhã. A ambulância, aos solavancos, já os tinha levado às comunidades de Ponta Baleia e de Ribeira Peixe, batida pelas ondas e de onde se avistam as Sete Pedras. Conta-se que foi naqueles rochedos que no século XVI um navio negreiro vindo de Angola se afundou. Os escravos salvaram-se do naufrágio e embrenharam-se na selva densa do sul de São Tomé. Estava plantada a árvore genealógica dos Angolares.
Elísio, travestido de mulher para gozo da assistência, queixa-se, com voz fina, do marido que perdeu a saúde, o emprego e as estribeiras porque abusou do vinho de palma. Jorge Almeida, o alcoólico “Gica”, faz pantomimas, arrasta a voz, cambaleia, cai ao chão ou vai dizendo, choroso: “estou bolilo” [impotente], uma tirada que arranca palmas, gritos e risos às mulheres.
Foi num ambiente eléctrico e de festa que os activistas comunitários das localidades de Emolve, Monte Mário, Ponta Baleia e Malanza passaram a mensagem que o alcoolismo é doença.
Elísio gritava aos espectadores, como um refrão: “Caué é o distrito de São Tomé menos desenvolvido. É um distrito onde se consome muito álcool. Se não deixarmos de beber, ou se não bebermos com moderação, Caué cada vez vai mais ao fundo.”
Calú Fernandes, habitante de Ribeira Peixe, dizia para o lado, no final da representação: “Fiquei ferido no coração…” Não fazia ideia que o álcool desse tanta doença. A mensagem passou.

“Têm que voltar!”

Horas antes, a caminho do teatro, dentro da ambulância que se sacudia ao ritmo dos buracos da estrada, Avelino Formiga, 37 anos, agente sanitário e activista comunitário de Emolve, falava entusiasticamente da equipa da AMI. “Trabalharam bem connosco. Muito bom!” E repetia: “Ivo e Sonia têm que voltar!”
Já estava em contagem decrescente o dia da partida do Enfº Ivo Saruga, 27 anos, e da médica espanhola Sonia González, de 33 anos, depois de um trabalho de seis meses no distrito de Caué, iniciado em Junho. No mês de Outubro, a Enfª Márcia Brandão, 27 anos, juntou-se à equipa para cumprir quatro meses de missão.
São três protagonistas de uma história que tem sido construída há 19 anos pela AMI no distrito mais pobre e esquecido da ilha de São Tomé. Não deixou de o ser mas a mudança vai acontecendo léve-léve [devagarinho].
“Só agora é que a AMI sente que pode começar a investir noutras áreas. No início era só reabilitação e assistência mas agora estamos a investir na formação e na educação para a saúde. Estamos a começar.” Telma Costa, coordenadora da missão, viajou a São Tomé para avaliar um projecto de sete meses com formação de agentes sanitários e de activistas comunitários na área da prevenção e educação para a saúde.
São pessoas como Avelino, Jovino, Trajano ou Fernando Maria, escolhidos nas suas comunidades para ficarem à frente de postos de saúde periféricos onde asseguram cuidados básicos: podem fazer pensos, curar diarreias, acalmar febres, detectar precocemente algumas doenças ou educar para a saúde. É um trabalho que fazem voluntariamente, acumulado com os afazeres do dia a dia. São pessoas simples, sem grande instrução, que fazem pela vida criando porcos, pescando ou produzindo vinho e óleo de palma. A AMI acredita que podem fazer a diferença.

Nos postos periféricos

A viagem faz-se, como de costume, aos solavancos. Uma estrada cor de cacau é escoltada por um verde cerrado, húmido e sufocante, onde algumas flores vermelhas se atrevem a entrar. Às vezes surge o reflexo brilhante de um rio onde mulheres e crianças lavam roupa. Levantam a cabeça à passagem do jipe da AMI, conduzido por Ovídio. Elas acenam, nós acenamos. Estendem-se roupas à beira dos caminhos: é a aparição dos trapos coloridos na selva.
Fazia-se a ronda pelos postos comunitários de Caué que integram a rede sanitária do distrito: são casas baixas, modestas, com pouca mobília — uma mesa, algumas cadeiras, marquesas — com paredes repletas de publicidade a mosquiteiros impregnados ou mensagens de educação para a saúde. Além da AMI, muitas outras organizações fazem trabalhos de construção ou de reabilitação de postos: USAID, ADRA, AWARE…
Os agentes sanitários queixam-se da falta de remédios, de balanças ou marquesas, que o telhado precisa de ser arranjado ou que as cercas de bambu ficaram desfeitas pelas chuvas fortes que varrem frequentemente o Caué.  
Em Monte Mário, Malanza, Ribeira Peixe, Dona Augusta ou Iô Grande as imagens repetem-se: entre montanhas de verde ou diante de um mar onde se inclinam coqueiros, acumulam-se palafitas mais ou menos desengonçadas ou casas de pedra decrépitas, sem saneamento básico, de onde sai, continuamente, um cheiro irritante a fumo. Há correrias frenéticas de porcos e galinhas sobre a lama com as crias no encalço, cães cabisbaixos e famélicos que se arrastam por ali e há crianças semi-vestidas, vivíssimas e alegres, sempre à procura da objectiva. Fazem poses e riem com todos os dentes. “Tira foto, tira foto!” As mães puxam os filhos, os maridos puxam as mulheres: “Tira foto!” Há olhares divertidos — outros até maravilhados — quando se vêem na fotografia.
Na localidade de Dona Augusta encontrámos Fernando Maria, “nome de casa” Aurélio, com uma t-shirt vermelha que não deixa dúvidas sobre a sua função de agente sanitário e de activista comunitário. Trazia no peito, em letras garrafais: “Eu aprendi e posso ensinar-te a prevenir a sida.”
Abre-se num sorriso quando vê o chefe de missão da AMI, Enfº Ivo Saruga, que vem mostrar o terreno, dar uma palavra aos agentes sanitários, saber o que precisam e lembrar que no dia seguinte são esperados no Hospital de São João dos Angolares para receberem os seus diplomas de formação. 
Fernando Maria passa a mão pelo cabelo, toca na roupa e desculpa-se. Queria estar mais apresentável porque é preciso “respeitar o chefe”, atira, divertido, para o Ivo.
O agente sanitário mostra o despido posto de Dona Augusta e vai dizendo, com um ligeiro gaguejar, que “sem formação não conseguimos trabalhar” e que agora é preciso “gravar e aprender” tudo aquilo que a equipa da AMI lhes ensinou. Ivo aquiesce num português simplificado, que já lhe sai assim, sem pensar: “Queremos criar mais prática e ter pouca doença na comunidade.”
Ivo é conciso e directo quando fala do seu trabalho no distrito de Caué: “represento a AMI no terreno, coordeno a equipa, estabeleço o contacto com o Departamento Internacional, faço a gestão do fundo de maneio e contacto com as autoridades locais. Gosto do que faço. Além da chefia há outra vertente que é a de enfermeiro. Nas actividades que tenho feito com os activistas tenho praticado na educação para a saúde que costuma ser negligenciada mas que é bastante importante.”
Fernando Maria é que diz: “É garoto de idade mas homem grande de experiência.”

“Feliz, feliz, não estou, mas partir também não”

É conhecido como “o hospital” mas é, na verdade, um Centro de Saúde com valência de internamento e maternidade. O Hospital de São João dos Angolares é um edifício baixo, pintado de azul e branco, plantado no centro de uma cidade lamacenta. Os corredores estão sempre luzidios, a contrastar com as paredes escurecidas pela humidade e já um pouco escavacadas.
Em frente ao hospital constrói-se um novo laboratório de análises clínicas com inauguração prevista para Janeiro. É uma boa notícia para Luísa da Mota, técnica de laboratório do Hospital de São João dos Angolares, que encontramos perto das 10 horas da manhã numa sala mergulhada na penumbra. “Vamos ter mais material e mais claridade”, diz, satisfeita. Como não há electricidade antes das 10 da manhã, precisa de acender velas na sala onde está.
Mas Luísa da Mota não vai ficar muito mais tempo em Angolares. Vai mudar-se para a capital, São Tomé, onde irá trabalhar no hospital central. “Em Angolares tem muita chuva. Para lavar roupa custa, para secar custa”, queixa-se.
Quem não vai sair de Caué é a Enfermeira-Chefe do hospital, Ana Maria Ferreira. “Feliz, feliz, não estou, mas partir também não. Nós só estamos cá, o meu marido e os meus filhos, porque nos sentimos amarrados a este País e porque achamos que com a nossa contribuição este distrito poderá ir para a frente. Por isso estou cá e dou o meu máximo naquilo que eu puder, mas não me sinto realizada.”
Queixa-se da falta de pessoal qualificado e da fatia do orçamento do Estado, “altamente insuficiente”, que vai para o sistema de saúde, ainda muito dependente da ajuda de vários parceiros nacionais e internacionais, como a AMI. Ana Maria Ferreira é enfermeira há 22 anos, filha de pais cabo-verdianos, nascida e criada em Ribeira Peixe, no distrito de Caué.
Já conheceu todas as equipas da ONG portuguesa que passaram por São Tomé. “Sempre tive boa percepção da AMI porque sempre teve boa gente. Inclusive, a madrinha do meu terceiro filho é da AMI. A maior parte das pessoas da AMI passaram por minha casa e convivemos muito tempo.”
Diz que os postos de saúde periféricos funcionam “mais ou menos” porque a AMI vai assegurando as consultas, no mínimo, uma vez por semana e aplaude a iniciativa de apostar na área preventiva e na formação de agentes sanitários e de activistas comunitários que, quanto a si, “precisam de ter um acompanhamento.”

Caué na TV

Sonia e Márcia espalham os diplomas na secretária. Só falta escrever o nome completo dos oito agentes sanitários e assinar. Os certificados serão entregues daí a minutos numa pequena sala do Hospital de São João de Angolares, sempre silencioso, um pouco vazio de coisas e pessoas.
Sente-se a efervescência dos voluntários da AMI neste dia que vai marcar, simbolicamente, o final de uma etapa. A missão da AMI cumpriu-se: os agentes sanitários foram formados em socorrismo, saúde reprodutiva, doenças sexualmente transmissíveis e planeamento familiar, diarreias e parasitoses intestinais, nutrição e alcoolismo, passaram no exame e espera-se agora que sejam capazes de fazer prevenção e educação para a saúde nos postos comunitários que gerem.
Os agentes sanitários ocupam os bancos corridos e escutam as palavras de agradecimento e de ânimo improvisadas por Sonia, Ivo e pela Enfª Ana Maria Ferreira, que dizia: “O distrito de Caué é o mais pobre em tudo: em recursos humanos qualificados e em recursos financeiros, às vezes pobre também de espírito. Vocês estão munidos deste conhecimento, têm que levar essas informações às vossas comunidades. A AMI também se esforçou muito. Nós ficamos a ganhar se conseguirmos materializar os conhecimentos. Esperemos que coisas destas aconteçam mais vezes.”
É preciso manter uma certa formalidade porque há uma equipa de reportagem da televisão santomense, TVS, a gravar. A câmara vai acompanhando o movimento dos agentes sanitários que se levantam para receber os diplomas e os tão esperados aparelhos de medição da pressão arterial que Telma Costa trouxe de Lisboa para oferecer nesta ocasião. É importante para todos que a televisão esteja lá. Caué, o distrito esquecido, será hoje notícia no telejornal.

Diabetes são formigas na urina

Só no restaurante Nelito, com vista para o mato, perante pratos de fruta-pão, banana cozida, porco bem condimentado, arroz de açafrão e peixe grelhado com molho verde especial, é que a formalidade estala: toda a gente riu e cantou ao despique.
Os agentes sanitários ensaiavam uma música para os voluntários da AMI que estavam de partida. Fernando Maria, sempre de sorriso aberto, explicava o que queriam dizer: a Sonia e o Ivo iam com Deus, eles, em Caué, ficavam com Deus mas queriam que outros viessem para continuar o trabalho que deixaram. Cantam à vez, fazem coro: “Comigo a Sonia éee, comigo o Ivo éee, nós, agentes de saúde do distrito de Caué, ôoo…” Enganam-se no ritmo, repetem, troçam uns dos outros. Chega a vez de Trajano cantar. Os olhos começam a brilhar, emociona-se, mas os outros interrompem-no com risos. “Não é para brincar”, empertiga-se. Continuam a rir e Trajano ri com eles.
“Sempre receptivos e a quererem aprender cada vez mais” foi como Márcia Brandão achou os agentes sanitários durante as formações. “Acolheram-nos com grande entusiasmo quando viram que estávamos ali para estar com eles e para os apoiar”, subscreve Sonia González, afirmando que têm sido “esquecidos e desprestigiados pelo sistema de saúde.” No seu espanhol aportuguesado — trabalha há sete anos num Centro de Saúde do Algarve — Sonia considera que “são as pessoas que, em teoria, mais sabem de saúde na comunidade. Têm um papel importantíssimo na prevenção e na detecção de doenças. Há muita coisa que eles podem fazer.”
Mas reconhece que há muito trabalho pela frente. “Foi o início de uma actividade muito importante para eles e para o sistema de saúde santomense.”
Nunca tinha feito formações mas o entusiasmo dos agentes sanitários facilitou-lhe o trabalho. E contava a história curiosa daquela vez em que lhes perguntou sobre os sinais da diabetes: “e então o Jovino disse que uma pessoa com diabetes via-se logo porque tinha formigas na urina. Estranhei, até que de repente percebi: a urina sai doce e as formigas vão lá…é que aqui urinam sempre na rua, nunca ou raramente numa latrina…”   

“Não faz nada tradicional! Traz para o hospital!”

O Hospital de São João de Angolares, sempre tão silencioso, de repente, estremeceu. Numa sala de consulta ouvia-se um choro discreto mas dali a pouco os gritos eram estrídulos, de arrepiar. O Enfº Nelson ia contando a história: Alexandrino de Sousa feriu-se com um prego e decidiu resolver o problema com um curativo tradicional, enrolando um alho no dedo. O tempo passou, a ferida infectou, piorou e eis Alexandrino, homem feito, a gritar com dores, enquanto o pessoal do hospital o trata à maneira convencional. O enfermeiro sentenciava: “Não faz nada tradicional! Traz para o hospital!”
“Ao princípio é tudo estranhíssimo.” Sonia recordava as primeiras consultas que deu em missão. Adaptou-se com o tempo, já conhece as pessoas, o modo como falam, os problemas que têm. É muito segura, afável, serena e profissional.
Falta pouco para as nove da manhã quando começa a ronda de consultas da equipa da AMI. Sonia González é, neste momento, a única médica do distrito, uma vez que o Delegado de Saúde está temporariamente ausente.
Sentada numa cama da enfermaria, uma mulher segura nos braços um bebé de cabeça desmesurada. Tem um ano e uma hidrocefalia. O mal já tinha sido diagnosticado aos dois meses e a mãe aconselhada a ir a uma consulta de Pediatria, mas em vão. Nunca foi. O bebé ia crescendo, e a cabeça com ele. “Dizem sim, sim, sim, mas depois não levam os filhos à consulta”, comenta Sonia. O caso vai resolver-se. A mãe irá com o filho na ambulância do hospital consultar um especialista na capital.  
Noutra cama, está a mãe com a filha de cinco anos, ainda sem nome. “Inominada” é o que se escreve na ficha do hospital quando as crianças não estão registadas. Neste caso, o nome da mãe, Carmelita, aparece à frente. O Enfº Augusto desabafa, um pouco agastado: “é pouco dinheiro para fazer o registo…” Carmelita nem responde.
A menina, a quem foi diagnosticada uma pneumonia, recebe alta e vai poder fazer o tratamento em casa.
Do internamento passa-se para a consulta externa. Sonia e Márcia recebem os doentes num gabinete cheio de luz onde há um pequeno armário de vidro com medicamentos, uma mesa de madeira, cadeiras, marquesas, uma casa de banho e uma inusitada máquina de lavar, doação de alguém, a quem ninguém deu uso.
Entra o senhor António Francês, 82 anos, queixando-se: “sempre tenho dor de cabeça…” Tem a mão embrulhada numa ligadura. Perguntam o que aconteceu. É um furúnculo, diz. Márcia observa a ligadura, aconselha-o a mudar o penso de três em três dias e mede-lhe a tensão, um procedimento de rotina na consulta. “As tensões estão boas.” Sonia passa a receita num pedacinho de papel. Não é preciso mais que isto. Basta levar a receita à pequena farmácia que está à entrada do hospital.
O senhor António Francês não irá pagar os comprimidos para a cefaleia que Sonia lhe diz para tomar antes do mata-bicho [pequeno-almoço] porque no sistema de saúde santomense pessoas com mais de 65 anos ou doentes crónicos não pagam os remédios. Há também a regra de isentar os que não têm meios para pagar. “Um critério muito vago para a situação em que estamos…”

Picar o dedo

Daniel Quaresma, um ano, entra a chorar. A febre começou na noite anterior. Não se deixa tocar. Sonia e Márcia tentam acalmá-lo. “Dá maminha para ele” dizem à rapariga que o trouxe no colo. Pensam que é a mãe. Afinal, é a irmã. O bebé não se acalma e Sonia vai cantando: “Daié, daié, que choro é esse?”  
Todas as situações de febre implicam “picar o dedo” para fazer o teste rápido da malária. Faz parte do protocolo do Plano Estratégico Nacional de Luta Contra o Paludismo, no terreno há sete anos. É este o princípio: “toda a situação de febre deve ser considerada paludismo se não se demonstrar o contrário.” As campanhas de sensibilização para o uso de mosquiteiros, a pulverização das casas ou o uso de anti-palúdicos têm dado resultados: a malária, que era uma das patologias com maior incidência no Caué, tem recuado nos últimos anos. 
Márcia faz o teste de glicemia a Esperança Afonso, 40 anos. O açúcar no sangue está baixo. Sonia pergunta-lhe se tem possibilidade de ir à capital fazer análises para confirmar se é ou não diabética. “Quando puder, mas não deixe passar meses…”
Uma mãe chega com as duas filhas: Idalina, de 8 anos e Lainy, de um. Tem mais dois rapazes e atira, decidida: “Já não quero mais…está muito caro!” A médica procura o diagnóstico: “Ela puxa asma?” O mesmo é perguntar se tem dificuldades respiratórias. Sonia já memorizou um pequeno glossário de termos médicos em dialecto angolar. Já não é apanhada desprevenida se alguém lhe diz que tem febre por dentro (mal-estar), que ficou moco (bêbado), sacou (vomitou), tomou ataque (teve convulsões) e caiu biongodo (inconsciente) no chão. 
As duas meninas têm bronquite. Sonia escreve a receita no pedacinho de papel e vai explicando a posologia. Dali a momentos confessava que ficava muitas vezes com a sensação de que as pessoas não percebiam. Mas há sempre “o saquinho” que lhes dão na farmácia do hospital. Este pequeno saco de plástico, fornecido pela organização holandesa International Dispensary Association, e que acompanha as remessas de medicamentos, é um auxiliar precioso. Tem desenhos de sóis e luas, de comprimidos partidos ou inteiros, cápsulas ou gotas. As pessoas olham e sabem logo o que tomar e a que horas do dia.

Falta de recursos dói

No posto de Angra Toldo, sucedem-se as maleitas. Há pneumonias, nódulos mamários, desinteria, parasitoses, um caso de má nutrição. Roger é um bebé de poucos meses, de dedos finíssimos, braços e pernas muito magros, barriga inchada, olhos grandes, simpático. Sonia aconselha a mãe a levá-lo à maternidade, na capital. O Enfº Júlio, responsável pela consulta de saúde materno-infantil, chegou entretanto ao posto e espreita pela porta aberta. Inteira-se do caso e assegura que ele próprio irá acompanhar a criança, ali, em Angra Toldo. A deslocação até à capital não será necessária, assegura. O assunto fica resolvido. Para a médica da AMI o importante é saber que Roger está encaminhado e ao cuidado do enfermeiro local. 
É a vez de Carlito chegar com umas pesadas muletas de ferro. Tem uma úlcera no pé e vem ao posto mudar o penso. A Enfª Márcia trata-o, com o pouco que tem à mão. O material que usa não é esterilizado e não pode fazer mais nada do que esguichar “betadine” e pôr uma compressa. Se pudesse, ia dizendo, limpava a ferida com soro fisiológico, usava uma pomada enzimática, fechava o penso, punha uma ligadura…não ter meios é o que mais lhe custa: “eu sei que podia fazer muito mais mas não posso porque não tenho recursos. Isso faz-me sentir mal, impotente. É um bocado frustrante.”
Sonia sente o mesmo: “Aqui impera muito a clínica, é um trabalho bonito, mas é frustrante porque sabes que se podiam fazer mais coisas se houvesse outros meios.”

“A doutora não quer ficar mais um bocadinho?”

Sonia González espera os doentes numa sala acanhada do posto comunitário de Ribeira Peixe, no segundo dia de consultas. Fátima, a agente sanitária responsável, uma cabo-verdiana de olhos verdes e de gestos mansos, vai-lhe passando as fichas de inscrição. Há muitos idosos para receber.
A dois quilómetros dali, no Emolve, há um posto de saúde novinho em folha, reabilitado este ano, com chão de azulejo, boas mesas, cadeiras e marquesas, até autoclave tem, mas Ana Rocha já não tem idade para percorrer essas distâncias. “É longe, não aguento.” Prefere o posto comunitário de Ribeira Peixe. Queixa-se de fraqueza. A médica faz o diagnóstico: bronquite crónica e hipertensão. No caderno de argolas onde a equipa da AMI mantém o registo das consultas, sucede-se o diagnóstico de hipertensão, sobretudo nos idosos.
Há três cadernos diferentes que é preciso preencher: um para o posto, um para a AMI e outro para o hospital distrital. Aí apontam o nome, a idade, o sexo e a patologia de cada um dos doentes. É um trabalho fastidioso mas indispensável para a estatística.
João Capristano, 72 anos, nasceu na ilha de Santo Antão, em Cabo Verde. Fala com voz pausada, tem feições suaves, uns olhos tristes que às vezes se iluminam. Queimou-se há um ano com vapor, numa fábrica. “Foi uma história...” O corpo está repleto de cicatrizes hipertróficas. Levanta a camisa e mostra.
Entra um pouco desconsolado na consulta. Sonia conhece-o bem. Diz que lhe trouxe uma “prenda” da cidade: uma pomada para as queimaduras. “É mesmo léve-léve...é preciso ter paciência, infelizmente não podemos fazer muito mais.”
A médica sabe que os cremes não adiantam mas é o pouco que lhe pode oferecer, além dos comprimidos para aliviar as dores. Antes de sair, João Capristano pergunta, na sua voz cantada: “A doutora não quer ficar mais um bocadinho?” Sabe que Sonia está de partida. “É que lhe queria oferecer uns abacates…”
Desaba uma chuvada quando chegamos ao posto comunitário de Monte Mário, onde está o agente sanitário Jovino Andreza. Corre um autêntico rio de lama. Os porcos e os patos que ali andam à solta abrigam-se debaixo das palafitas. Há pessoas completamente encharcadas a correrem descalças na rua. O posto de saúde comunitário enche-se de gente que foge ao dilúvio. Jovino olha desconsolado para o estado do cercado de bambu do seu posto. Uma lástima. Aponta e diz que é preciso consertá-lo para os animais não entrarem.
A idosa Guilhermina deu uma topada. Tem uma ferida traumática no pé. O tecido já está desvitalizado e tem um aspecto esbranquiçado. Veio descalça e é Jovino quem lhe vai fazer o penso. Márcia não vai interferir. É o agente sanitário que tem de fazer. Faz parte do trabalho da enfermeira da AMI apoiar os agentes sanitários na consulta, reforçar as formações dadas ou tirar alguma dúvida.
Jovino pega em compressas embebidas em “betadine” e coloca fita adesiva. É o que se pode fazer. Márcia aconselha: “tem de andar com chinelo e não pode pôr o pé em água!” Dali a momentos, era ver Guilhermina, no seu corpo frágil e magro, a ensopar os pés, caminhando pela estrada.

Casa cansa

Confirma-se: as manhãs de consultas são desgastantes. Chega-se por volta das três da tarde, com o estômago enganado com bolachas que se comem na viagem, aos solavancos, de posto em posto. Para Sonia e Márcia o dia de trabalho, por hoje, terminou. Chegamos a casa. À casa da AMI, em São João dos Angolares: é de pedra, pintada de cor-de-rosa e branco, escondida por trás de uma cerca de bambu. Tem o essencial para uma estada confortável. Com o tempo, foi sendo melhorada ou consertada. Foram os voluntários da AMI que costuraram os cortinados, que fizeram obras no duche, que construíram um estrado no pequeno jardim, um estendal e até uma casota para a cadela Yuta.
Na estante, o livro “Equador” coabita com os manuais “Anatomia & Fisiologia”, “Principles of Internal Medicine” ou “Diagnósticos de Enfermagem”. No frigorífico, a comida não falta e, nos pratos, aparecem os saborosos cozinhados de Antónia, mulher discreta, mãe do pequeno Sílvio, que rodopia pela casa, esperneia e barafusta, sempre simpático.
A casa tem os seus ritmos: só há luz das 10 da manhã ao meio-dia e das 18 às 23 horas mas muito antes de se apagarem as luzes já está tudo a dormir, porque o dia cansa. Mas a vida de casa também cansa, dizem eles.
Sonia encontrou na corrida uma forma de relaxar. Depois das consultas, por volta das quatro da tarde, é vê-la correr, bem equipada, pela estrada acima. A escrita é outro alento. “Aí sou eu. Esse foi o meu refúgio. Foi uma maneira de escapar.”
Custou-lhe a adaptação à equipa, quando chegou há seis meses. “Foi tudo pacífico mas foi estranho. De repente, estás numa casa, numa convivência forçada. Acho que me adapto bem às pessoas e gosto de conhecer pessoas diferentes mas custou-me um bocadinho.” O que mais lhe tem pesado é a impossibilidade de poder dispor do seu tempo. “Sinto saudades da minha intimidade e da minha liberdade.”
Márcia também sentiu na pele o desconforto, nos primeiros dias: “quando cheguei, a equipa já tinha as suas rotinas, as suas formas de estar e de trabalhar e tive de me adaptar. Senti as tensões acumuladas, a claustrofobia da casa e da ilha. Eu não era o meu verdadeiro eu.”
Para Ivo, lidar com tensões e com a rotina e adaptar-se às equipas faz parte do trabalho de partir em missão. Não dramatiza: “tem de ser feito e faz-se.”

“São Tomé fica longé…”

Mesmo por cima da casa da AMI, subindo por um caminho íngreme, está o paraíso: é a Roça de São João dos Angolares. “Faz-me bem vir aqui”, suspira Márcia. Temos vista para a repousante Baía de Santa Cruz. Vemos uma floresta densa, inominável. Ali tudo é silêncio, ali areja-se a cabeça, encontra-se rede para o telemóvel, dão-se dois dedos de conversa entre tragos de chá ou garfadas num ananás sumarento. Há espanta-espíritos pendurados, cabaças coloridas, um chão de traves que estala, redes para preguiçar, gente boa.
Mas a Roça transfigura-se nas noites frenéticas de bulaué. Tudo começa com um som desgarrado, com um batuque isolado que se escapa. Depois, as vozes vão subindo, juntam-se e misturam-se com os tambores. Os chocalhos começam a rir às gargalhadas, o corpo mexe. Não pára de mexer.
O bulaué é um bicho que nos morde. Quando nos agarra, não larga: sacode, sacode, sacode. As pessoas juntam-se em roda, agarram-se, dançam e cantam sentimentos grandes em frases pequeninas:
“Quando eu for para Portugal,
 aié, mámá, aié, mámá,
 São Tomé fica longé...São Tomé fica longé... São Tomé fica longé...”




“Vou contar outra para vocês...”


Não se sai de São Tomé e Príncipe sem conhecer o senhor Fernando Mendes. Ninguém diz que já vai nos 70 anos. É português, nasceu em Viseu, chegou a São Tomé em 1949 e já não sai daqui. “Quero morrer aqui, é mais quente.” Em 1957 construiu a casa onde nos recebe, em São João dos Angolares, para um jantar amigo.
É um homem afável, generoso. É o “padrinho” da AMI no distrito de Caué — a quem nunca regateou ajudas — e tem 120 afilhados.
Conta-nos as maleitas por que passou: teve paludismo duas vezes, “ia quase morrendo” de hepatite, teve “dores de morrer” com ataques de gota, um ladrão já o tentou matar “vai fazer três anos.”
O seu lema: “o essencial da pessoa é ter saúde. Nascer aleijado é o diabo!” Também ajuda ser poupado e ter trabalho, coisa que não lhe falta. Gere uma roça que “está sempre a pingar dinheiro”, com fartura de cacau, café, óleo de palma, abacaxi e de “todas as frutas”. Insiste: “o trabalho não mata ninguém.”
Há uma história que salta sempre: a sua amizade com Mário Soares, que data da altura em que o político foi deportado para São Tomé, em 1968. Fernando Mendes era o seu “secretário”. As cartas para Soares vinham sempre no seu nome. A PIDE não largava. “Estava sempre aqui.” Nunca cobrou almoços ou jantares a Mário Soares “porque sabia que ele estava a sofrer.” Na altura tinha um restaurante muito concorrido — “tínhamos aqui 100 pessoas” — eleito, em 1971, o melhor de São Tomé. Ainda se recorda do sucesso que fazia a sua sopa de fruta-pão. Histórias não lhe faltam. Eram umas atrás das outras: a história da apendicite forçada, o homem que se casou com um estafermo “por procuração”, a pastelaria lisboeta da mãe Conceição, que voltou a casar aos 75 anos com um arquitecto, neto de Eça de Queirós. E continuava: “vou contar outra para vocês...”




Augusto, o vereador da Câmara
“Os problemas de Caué são tantos…”


Augusto Tavares Semedo, 27 anos, é alto, magro, entusiástico e bem-falante, “genuíno de Caué”, nascido e criado na localidade de Dona Augusta. É professor na escola de Angolares e vereador da Câmara Distrital de Caué, “empossado a 5 de Outubro de 2006”, precisa. Conheci-o numa noite de bulaué, na Roça de São João dos Angolares. A conversa estendeu-se até as luzes se apagarem em todo o distrito. Já estava escuro como breu quando me disse: “Só fiz caso de me enquadrar no elenco do poder local pelo facto de ver o meu distrito nas condições em que está e quero mudar, só que não é fácil. Mas se nós dermos um, dois, três passos, as pessoas podem dizer: eles deram alguns passos, vamos dar-lhes mais tempo para poderem concretizar os seus projectos e os seus sonhos. Na verdade, nós estamos a lutar.”
O que fazem é “ouvir as pessoas”, identificar os problemas do distrito e tentar dar-lhes solução, apesar do orçamento limitado, num mandato de três anos. “Os problemas de Caué são tantos que deu muito trabalho seleccionar os problemas prioritários…”
É preciso reduzir a taxa de analfabetismo, que por aqui é elevada, e garantir o acesso à educação. Fala da necessidade de melhorar a rede de transportes públicos para que as crianças de localidades mais isoladas possam continuar a estudar na capital do distrito. “Muitas crianças fazem a 4ª classe e sentam em casa porque não têm como se deslocar para Angolares. Caué é o distrito menos populoso mas é o que tem maior extensão.” Augusto afirma que a câmara distrital de Caué já pediu apoios a algumas câmaras municipais portuguesas, como Serpa, Ponta Delgada ou Matosinhos, com as quais está geminada. “Nunca nos voltaram as costas.”
O saneamento básico é outra urgência: “temos o projecto de levar latrinas a todas as casas. Para isso, temos parceria com a Cruz Vermelha, que nos vai apoiar na construção de 150 latrinas em Angolares. Também a Unicef nos prometeu 140 latrinas. Paulatinamente, vamos dar passos.”
A energia também falta: “todas as localidades se queixam da energia eléctrica. Sem energia não há desenvolvimento!” Em Angra Toldo as pessoas pedem um espaço para fazer negócio — “iniciámos a construção de um mercado em Angra Toldo este mês” — vai ser preciso reabilitar o secador de cacau e copra da localidade de Dona Augusta — “com esta tempestade que houve desabou mas já metemos lá o carpinteiro, a obra está em curso” — ou a ponte que dá acesso à praia de Ribeira Peixe: “nas condições em que está, não dá. Vamos reabilitá-la.”
Na área da saúde, Augusto aplaude a parceria “China-Taiwan” que tem trazido “grandes benefícios” com as campanhas de pulverização das casas — “havia muita mortalidade por paludismo e agora decresceu” — e não esquece o trabalho das equipas da AMI: “a AMI tem operado no distrito há largos anos e tem trazido benefício porque tem feito obras, como o posto comunitário da Praia Pesqueira e de Dona Augusta, tem dado mão ao hospital do distrito, tem ajudado a população mais carente com algumas roupas ou sapatos. Temos muito que louvar a iniciativa da AMI no nosso distrito.”




A Enfermeira inconformada



Ana Maria Ferreira é enfermeira há 22 anos, fez um curso de Gestão de Serviços de Saúde em Angola, onde foi “várias vezes” convidada para trabalhar, já esteve em Portugal mas decidiu viver e trabalhar no distrito onde nasceu, Caué. É a Enfermeira-Chefe do Hospital de São João dos Angolares.
Fala com um jeito suave mas revolta-se com o rumo de São Tomé e Príncipe. Critica os políticos: “já passaram vários anos, depois as promessas, as promessas, e as coisas não foram feitas. As pessoas quase entraram num conformismo.” Critica a falta de visão: “Caué é o distrito mais pobre e onde tem mais água. Temos grandes rios e não temos uma barragem hidroeléctrica? Temos uma floresta densa. São coisas em que devemos apostar.”
Diz que é urgente resolver o problema do desemprego, que por aqui ronda os 80%, para que as pessoas se libertem “deste marasmo” e escapem à pobreza. Mas isso leva tempo. “Não podemos mudar as coisas de um momento para o outro mas é preciso que se criem as condições para que haja essa mudança. É preciso que haja emprego, é preciso que se melhorem as condições de saneamento básico. Sabemos que há muitas famílias que hoje vivem à base da agricultura. As pessoas plantam mas há pessoas que vão roubar e isso faz com que a pobreza se vá agravando. A pessoa pode ter vontade de fazer alguma coisa mas não consegue avançar.”


Reportagem publicada no semanário NOTÍCIAS MÉDICAS nº2971, de 12 de Dezembro de 2007









Vai mudando, léve-léve
Published:

Vai mudando, léve-léve

Published: