Foram horas pensando, imaginando o que encontraria, que abordagem poderia fazer de algo que não é novo, na verdade, recorrente na história do lugar. Indo de Teresina para Pedreiras me dividia em dois sentimentos: o de profunda alegria, afinal estaria junto a meu pai por ocasião do seu aniversário e a tensão que seria produzir em dois dias uma reportagem sobre a cheia do Mearim, ainda em curso. Na mochila tinha o que precisava, câmeras, inúmeros cartões de memória. A cabeça no entanto, repleta de ideias e quando se tem pouco tempo, isso pode ser catastrófico.

A noite passou voando e não demorou, estava guardando o tênis, levantando as pernas da calça, colocando os pés numa água de aspecto não lá tão agradável, mas era necessário. Fotojornalismo requer proximidade, jornalismo requer contato e isso vai além de uma agenda telefônica, de uma conversa no whats. Estava acompanhado de Acácio, suporte fundamental nas missões pelo Mearim, mas ele não ousou colocar os pés na água.

Pelo menos até o momento, a cheia deste ano se acha longe do que presenciei em 2009 e mais distante ainda do que foi a enchente de 1974. Cresci ouvindo sobre ela durante as conversas de calçada. Os mais velhos contam com detalhes os lugares alcançados pela água.

Entre Pedreiras e Trizidela do Vale, passa o Mearim, rio que banha outras oito cidades maranhenses. Renda para os pescadores, caminho para os devotos de Pedro, que uma vez ao ano leva centenas de fiéis católicos a rampa, como é conhecido um dos pontos de embarque no lado pedreirense de sua margem. Hoje em dia só canoa. E imaginar que dali já escoaram grande produções, destaque para o arroz. As águas parecem ter levado também a fama da região.
Entrei em casas, conversei com moradores, estive em abrigos, voltei com um vasto material fotográfico, audiovisual e com um punhado de perguntas e lições. A cheia pode ser vista pelo aspecto do caos que provoca, ainda que sendo uma dinâmica natural, mas como explicar o risos que registrei num contexto ao qual sempre relacionamos a dor?
O bairro Matadouro é, até então, o mais afetado. Lugar onde o cotidiano acontece, espaço de visível vulnerabilidade social. De alguma forma, o rio Mearim faz saber que este canto do mundo existe. A cheia que inunda, invade e encobre é a mesma que coloca em evidência o tamanho de nossa disparidade social. A enchente lembra do que os governos esquecem durante todo o resto do ano. Ela é os quinze minutos de “fama” de áreas marcadas pela ausência do estado.
Nesse contexto dual padecem idosos, jovens e crianças, centenas delas pelos abrigos improvisados. Maria Clara, sentada no canto de uma cama é uma delas. Num diálogo com ela, a vi implorar para que tudo isso passe. Mais difícil ainda foi saber que o lugar que lhe serve de abrigo é também sua escola. Não é só a cheia que expulsa, a falta de planejamento urbano e vontade política também.
Tendo agora voltado para Teresina, debruço-me sobre o vasto material coletado e por meio dele relembro as cenas que vi ali. Risos de um lado, olhares opacos de outro, sofá pendurado no teto de casa e em meio a tudo isso, percebo que a cheia é a única presença frequente num contexto onde há visível falta do Estado, de políticas públicas para além da cesta básica com direito a foto.

Que imagem poderia resumir a experiência de documentar a cheia do rio Mearim e suas consequências? A de uma mulher, uma mãe num ato de resistência. Esta é Vanusa Ben Silva, quem tem em seu colo a filha Ludmila Monteiro. Elas e os demais membros da família dividem espaço com outras dezenas de famílias, abrigadas no ginásio de esportes da cidade de Trizidela do Vale. Com um ventilador ligado, se queixa do calor intenso durante o dia. Segundo ela, a noite traz alívio. Longe de casa e sem saber quando voltará, é uma das muitas dependentes assistência prestada pelo poder público. Ela segue, tentando tocar sua sina, dividindo vida com a filha e o teto com tantos outros.
Fotografia: Joaquim Cantantenhêde (All rights reserved ©).

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