GELO
Em um pequeno vilarejo ao norte do mundo, numa época em que os antigos deuses ainda eram venerados e caminhavam sobre a Terra, um garoto, enraivado com tais entidades imortais por não terem atendido ao seu pedido de curar sua mãe enferma, foi até a floresta de gelo, uma mata fechada na região dos morros, onde fica o monumento da deusa protetora daquele lugar. Chegando ao local, com os olhos marejados, o garoto, após se lamentar aos berros, iniciou uma série de ataques que, por fim, destruiu o monumento. Após esse ataque, ofendida com o ato do jovem rapaz, a deusa, feita de um gelo tão azul e tão brilhante que iluminou todo o local com uma beleza mitológica e com um olhar tão penetrante, capaz de cortar sua alma, materializou-se logo à frente de seus olhos.
O jovem garoto estava trêmulo, não de medo e sim de raiva, mas uma raiva sem sentido, pois tal diva não possuía culpa alguma na morte de sua mãe, que dizia ao garoto: “Quando chega a sua hora, nem os deuses podem fazer alguma coisa”. Não aceitando as palavras ditas a ele, o garoto, ingênuo, desferiu um ataque que, ao encostar no corpo daquela entidade, como forma de punição, começou a transformá-lo em uma estátua feita de neve, gelo e galhos, deixando-o imóvel, silencioso e frio em meio às folhas secas e neve que caíam ininterruptamente a sua volta.
Muitos meses se passaram, e as buscas que se iniciaram para tentar achar o garoto há muito já haviam se encerrado. Então, em um dia de oferenda pela boa caça, uma jovem caçadora, com beleza nórdica e com um ar de guerreira, foi até a floresta de gelo agraciar a deusa. Após um dia de oração e agradecimento, ao iniciar sua partida de volta para a vila, a jovem viu, em meio a uma pequena clareira, uma silhueta que se assemelhava a uma pessoa. Curiosa, como uma boa caçadora deve ser, aproximou-se para investigar melhor. Ao se aproximar, percebeu que era apenas uma escultura de gelo, algo que não a espanta, já que era costume daquela região as crianças criarem esculturas como forma de diversão. Mas algo chamou sua atenção ao se aproximar mais. Ela reconheceu que as roupas, agora já toda esfarrapadas, eram as mesmas que o jovem rapaz usava no dia em que sumiu. Mas a confirmação de fato se deu ao reparar que havia um bracelete, o mesmo bracelete que ela dera de presente a ele há alguns anos.
Chocada com o que acabara de ver, ela instintivamente o abraçou e reparou que, ao fazer isso, o bloco de gelo, sólido e imóvel, começou a derreter. Na esperança de que o ocorrido libertasse seu velho amigo de sua maldição, a garota iniciou uma prece a Skadi, mas logo reparou que, em vez de libertá-lo, acabou de vez com seu sofrimento gélido, pois, no lugar de voltar a ser um humano, a outrora estátua de gelo tornou-se apenas uma sutil poça d'água em meio à neve.

Autor: Bruno Bulgarelli
O Armário Amarelo

Naquela casa, eles possuíam um armário amarelo onde guardava seus livros. Tal armário, antigo e retangular, com formas retas e sem adornos, era um móvel já velho, tendo facilmente uns 30 anos de idade, mas fora recém reformado, teve suas paredes internas e externas lixadas para retirar o verniz avermelhado que continha antes e pintado de um tom amarelo, tão vivo quanto uma gema de ovo ainda mole. Dentro dele haviam três prateleiras que o atravessava na perpendicular, criando quatro vãos onde pudesse ser armazenado grandes quantidades de objetos, e no caso dele, livros. Haviam livros dos temas mais diversos que iam de biografias de bandas de Heavy Metal à peças de Shakespeare.
Lá haviam sonhos concretizados em palavras e pesadelos narrados. Haviam princesas, dragões, aliens, casais apaixonados, monstros sedentos por caos, assassinos com desejo de sangue, aventuras fantásticas com criaturas místicas e incompreendidas por nossa racionalidade, amantes tomando um café ao pôr do sol, de tudo um pouco.
Porém um coisa terrível assolava aquele armário. Um coisa tão cruel que nem mesmo todas as letras e palavras contidas naquele vasto mar de páginas não poderia retratar o quão devastador era o sentimento que aquele armário emanava quando algum deles o abria para pegar um livro. Um sentimento de total derrota e tristeza. Um fato que poderia ser descrito em apenas três palavras. Palavras essas, que podem destruir todo o resquício de felicidade que há no coração de alguém.
Faltava mais espaço.

Autor: Bruno Bulgarelli
Besouro

Hoje passei um tempo observando um besouro que estava de cabeça para baixo na minha frente. Fiquei pensando se deveria ajudá-lo a se virar, se eu era um sádico por apenas observar todo seu esforço sem fazer nada. Mas de que adiantaria ajudá-lo? Ele jamais saberia que foi uma ajuda, jamais entenderia que eu teria feito aquilo e jamais sentiria e demonstraria gratidão, afinal, é apenas um inseto. Porém, quanto mais ele se esforçava para virar, mais incomodado eu ficava. Poxa! Ele estava usando toda sua energia, todo seu empenho nisso, e eu lá, parado, só observando suas tentativas falhas de obter qualquer resultado. 
Os minutos foram passando e nada dele atingir seu objetivo. Admito que por um instante parei de observar sua tentativa de se virar para olhar meu celular. Mas mesmo enfurnado em meu aparelho, minha cabeça ainda estava no sentimento de culpa de não ajudar aquele pequeno ser insignificante.
Finalmente decidi fazer algo, aquilo já estava me deixando incomodado. Como um simples inseto, com menos de dois centímetros de comprimento podia me deixar daquele jeito? Então com muito cuidado, dei um pequeno toque na sua lateral. Apenas o suficiente para que a curvatura de sua impenetrável armadura orgânica pudesse girá-lo por completo.
Deu certo! Lá estava ele, de volta aos eixos e andando normalmente. Para que em menos de dois segundos, em uma tentativa de alçar voo pela infinitude do céu, ou do cômodo da minha casa, ele perdesse o equilíbrio e voltasse a ficar de cabeça para baixo. Inseto estupido…

Autor: Bruno Bulgarelli
Respiro

Recentemente estava ouvindo uma música, um desses Lo-Fis que encontramos pelo Spotify. Raramente costumo ouvir músicas Lo-Fi e seus afins, mas às vezes, quando não sei o que ouvir, costumo colocar nelas. E hoje, quando eu estava com a mente totalmente atolada, realmente sem saber o que fazer e como fazer, uma dessas músicas me deu a resposta. Em meio a suas leves batidas eletrônicas, entre uma nota ou outra do sintetizador, o artista responsável pela música simplesmente para e dá um profundo e lento respiro, gravando pelo microfone desde a sua profunda puxada de ar, até sua lenta expiração, e então... silêncio total por um ou dois segundos, para que de forma lenta e gradativa possa voltar a tocar sua melodia. Não sei, mas nesse momento, de maneira inevitável, fiz o mesmo e por uma fração de segundos, tudo fez sentido. Nossa, como isso foi bom. Acho que estava precisando de um respiro.

Autor: Bruno Bulgarelli
Contos & Textos
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Contos & Textos

O primeiro de uma série de contos que ando escrevendo em meu tempo livre.

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