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Escultura e sua história

Inga Niara

No alvorecer dos tempos, uma semente foi plantada na terra por uma entidade onipotente que, governava o mundo em sua grandeza régia. A planta que ali iria florescer cuidaria dos ignóbeis seres que, seriam criados por esse mesmo deus. Estes últimos eram os seres humanos. Em seu tempo, a semente brotou em formas laivas e imaculadas, em uma harmonia ingênua. Simples matiz. A pequena semente tornara-se uma linda flor de beleza perpétua. Maior e mais bela que as demais flores, ela foi batizada pelos humanos pelo nome de Inga Niara, a deusa determinada.

A deusa era detentora de um conhecimento invejável e todo seu planturoso corpo abaixo da terra, que esvoaça naquele lúgubre e escuro solo, absorvia os sentimentos e sensações humanas para que estes últimos não se sobrecarregassem da reflexão e sim, da jornada e fé. Uma viagem curta. A vida deles durava muito pouco. Niara os observava.

Avistando a beleza dos seres humanos, Niara questionava a sua própria. Sua verdadeira face jazia abaixo da terra e não acima. As pétalas carregadas de orvalho nada mais eram que uma simples extensão de seu corpo, de suas raízes. Como um rabo inútil e imutável. Como um espelho, através de suas raízes, Niara olhava para os humanos refletidos pela fina camada de terra. Ela os contemplava e acurava, mas sentia pena e inveja. Em suas vidas ridículas e lineares os humanos se desenvolviam e se expressavam, enquanto Inga Niara perpetuava em sua grandiosidade, de forma estática. Seu mundo era de fato um espelho. Nascida com sabedoria e privada de liberdade, ela via nos humanos o oposto. A liberdade daqueles pequenos seres era paga em ignorância.

O tempo soprou sua impaciência.

Mais uma vez, o céu se dilatava em uma tristeza absoluta. Nuvens se debatiam como se não pudessem determinar qual forma tomar. O inverno havia chegado. Não era o primeiro. A repetição se perdurava há séculos. 

Por todo esse tempo, a deusa cumpriu seu papel, sempre observando as pequenas criaturas. Niara percebeu que os humanos se desenvolviam de forma muito rápida, inicialmente em conjunto e igualdade, mas com o passar dos anos eles despertaram desejos individuais, gananciosos e megalomaníacos. A ignorância se aflorava cada vez mais. Os pobres humanos tornaram-se violentos, criaram um sentimento de repulsa e preconceito dentro de si mesmos. Enquanto, alguns sofriam pela diferente aparência, outros sofriam por ter menos força física ou diferentes crenças. Niara viu a pequena grande família dos humanos se subdividir em vários grupos. Grupos que se odiavam entre si. A escuridão tomava conta, como se a noite viesse sem ser convidada. O luto.

Mesmo em seu estado funéreo, o mundo seguia. Alguns pontos iluminados, pontos de compreensão, furavam o horizonte sombrio. Foi quando Niara descobriu a arte. Os seres humanos se expressavam de diversas formas, mas algumas delas exclamavam vida, energia, transcendência e verdade. Ela se apaixonou por uma chamada dança. A deusa era tão afetada pela beleza e pureza da dança que, a mesma inventou sua própria dança. Sua força de vontade ultrapassou sua irrefutável imobilidade. Suas raízes cintilavam pelo solo, de maneira plumosa e bucólica. A nova paixão fez crescer raízes por todo o mundo. Eufórica devido às novas sensações, Inga Niara esqueceu que suas raízes absorviam as sensações humanas. Ao final de seu espetáculo, os humanos jaziam ainda mais impotentes, flagelados e ingênuos. Os diminutos seres perderam totalmente a esperança e depositaram seus votos na fé. A desesperança era tanta que eles desenvolveram significados para além de suas curtas vidas. Aquilo que antes era uma jornada, ainda que linear, tornara-se um período de avaliação precoce para algo grandioso. Os humanos viviam para morrer. Niara chorou.

Percebendo que seu egoísmo havia levado a humanidade a um caminho penoso, de temor e imparidade, a deusa abraçou a angústia e ressentimento. O mundo se envolveu em um manto cinza de tristeza, uma tempestade sem fim, de ilusão e dúvida. Cataclismos de mentiras e decepções. Passaram-se séculos.

Ao fim de seu período de luto, Inga Niara encontrou forças para desfazer o que havia criado. Dançaria novamente, mas de forma retraída e maciça, recolhendo suas raízes e restaurando o mundo ao seu projeto original. Antes que seu último espetáculo iniciasse, Niara foi impedida de continuar. Deus não permitiu. Os ecos celestiais ensurdecedores eram assustadores, mas muito claros. Ele preferia que continuasse assim. Surpresa e confusa, Niara o questionou. Não temente, pagou seu preço. Sua flor, seu caule, suas folhas e suas raízes foram sufocadas por nefastos grilhões, rodeados de chifres pontiagudos. A deusa fora condenada.

Niara havia cumprido seu papel. Era a semente do caos e da ilusão. Suas pétalas de anil tornaram-se carmesim. Sua imaculada forma, agora profana, sustentava com êxito o sentido da vida. A vida por si só. A vida linear. A vida sistemática. A fé.

Contudo, contra a vontade superior, essa era apenas abriria espaço para um novo éon. A eternidade em plenitude. Quando Inga Niara, a intrépida deusa determinada, se rebelou e dançou pela última vez, a dança mais bonita. Bailando fantasticamente, ela uniu todas as suas raízes em um excepcional único membro, projetando-o para além do espelho terrestre. Sua raiz elevou-se até a forma final de sua dança. Uma grande mulher, em seu último passo de dança. Uma deusa determinada. Homenageando os seres humanos e devolvendo a eles todos os sentimentos e sensações retidas, gratificando-os com inteligência e verdade. A ira de deus petrificou Niara. A deusa perdeu para sempre sua liberdade ao entregar aos humanos o verdadeiro sentido da vida. A performance mais linda do mundo dos homens, havia sido realizada por uma mulher. Uma mulher que não se submeteu a ninguém.

O mundo tornou-se um lugar agradável, puro e afetivo. Os pequenos grandes humanos passaram a cuidar uns dos outros e também, a refletir, pensar e se expressar livremente. Contra a vontade de deus.

Hoje, ainda se pode ver a mais bela dança quando, olhamos para o horizonte e a vemos. Contra a luz do pôr do sol, a mulher, Inga Niara.



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