O Mundo Prodigioso de Beatriz
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JOSÉ DIOGO NUNES
FADE IN:
1. EXT. PARQUE INFANTIL - DIA
Estamos num parque infantil rodeado por um grande campo de relva. O parque está deserto.
Um cavalo deslumbrante aparece, lentamente, a pastar no campo. Pasta graciosamente, sem vivalma para o perturbar.
De repente ouve-se UM RISO DE UMA MENINA e BEATRIZ, que não deve ter mais do que sete anos, aparece no parque infantil e encosta-se ao pequeno muro que a separa do cavalo. Observa o animal, a sorrir. Este continua a pastar.
BEATRIZ
Margarida, vem ver! Tu gostas de cavalos!
Uma jovem rapariga adolescente junta-se a ela e põe-se de joelhos para estar à sua altura.
MARGARIDA
É muito bonito.
As duas sorriem enquanto observam o cavalo. MARGARIDA tem um certo olhar carinhoso e maternal para Beatriz.
BEATRIZ
Obrigada por estares aqui!
MARGARIDA
Obrigada eu, por me deixares entrar. Isto é muito bonito.
BEATRIZ
É. Eu prefiro estar aqui!
Margarida põe o braço sobre Beatriz e continuam as duas a observar o cavalo.
FADE PARA NEGRO
Sobre o negro vemos as letras:
O MUNDO PRODIGIOSO DE BEATRIZ
FADE IN:
2. INT. QUARTO DE BEATRIZ - DIA
Beatriz está no seu pequeno quarto. É muito cor de rosa e ela está rodeada de bonecas. Uma delas está na sua mão e a menina escova o seu cabelo sem grande interesse.
A porta abre-se. Uma MULHER está a porta. Atrás dela um HOMEM, nos seus quarenta anos, olha por cima do ombro da mulher, particularmente interessado em observar a rapariga.
MÃE
Olá filha! Este senhor é o doutor Duarte. Tu conheces, vive aqui no prédio, no primeiro andar. Ele vai ter uma conversa contigo está bem?
Beatriz pára de escovar e fica muito quieta a olhar para os dois adultos. DUARTE contorna a Mãe de Beatriz e entra no quarto.
MÃE
(para Duarte, com angústia)
É das poucas alturas em que ela não está a dormir.
Duarte assente com a cabeça e a Mãe fecha a porta, deixando os dois sozinhos no quarto.
Duarte aproxima-se da rapariga que entretanto tinha recomeçado a escovar o cabelo da boneca. O homem pára, reparando numa caneca em cima da secretária. Pega nela e vê café dentro da caneca. Olha para a porta em sinal de reprovação para com os pais.
Baixa-se para estar à altura da menina.
DUARTE
Olá Beatriz! Sabes porque é que eu
estou aqui?
BEATRIZ
O senhor é médico dos malucos.
Está aqui porque acha que sou maluca?
DUARTE
Eu não sou médico dos malucos. Sou
psicólogo. Isso quer dizer que sou
médico de toda a gente. E estou aqui
porque os teus pais me pediram ´
gentilmente para falar contigo.
(pega numa das bonecas)
Eles estão preocupados contigo, sabes
porquê?
BEATRIZ
Não.
DUARTE
Eles disseram-me que tu andas a
dormir muito. É verdade?
BEATRIZ
Talvez. Não sei.
DUARTE
Porque é que andas a dormir muito?
Não te chega dormires à noite?
Beatriz encolhe os ombros.
DUARTE
Os teus pais contaram-me que já não
queres ir à escola, nem ir brincar
lá para fora. Podes dizer-me porquê?
Beatriz encolhe os ombros de novo.
DUARTE
Alguma coisa te anda a fazer triste?
Alguém te anda a fazer mal? Podes
contar-me, não faz mal.
BEATRIZ
Não.
DUARTE
Então porque é que queres dormir
tanto? Tens de ter alguma razão.
BEATRIZ
Eu durmo porque gosto mais quando
estou a dormir.
DUARTE
E porque é que gostas mais quando
estás a dormir?
BEATRIZ
(encolhe os ombros)
Porque é mais feliz.
Duarte fica intrigado e olha em volta. Repara numa moldura em cima do móvel, com a fotografia de Beatriz e de Margarida, muito sorridentes, em cima de um cavalo. Margarida está vestida com o equipamento de equitação. Duarte pega na moldura.
DUARTE
Quem é esta rapariga?
BEATRIZ
É a minha irmã. Chama-se
Margarida.
DUARTE
E onde é que está a Margarida?
BEATRIZ
Já não está. Um carro matou-a.
Duarte fica em silêncio. Olha uma última vez para a foto e pousa-a onde estava.
DUARTE
É por isso que dormes tanto?
Estás triste por a tua irmã já
não estar cá?
BEATRIZ
Mas ela está comigo!
(pára de escovar e olha
nos olhos de Duarte)
Quando estou a dormir.
DUARTE
Queres dizer... nos teus sonhos?
BEATRIZ
Sim. Basta eu querer.
Beatriz olha de relance para os desenhos que fez e que estão colados à parede. São muitos.
Duarte levanta-se e observa-os. Olha para os desenhos mais coloridos. Cavalos, flores, castelos... Beatriz de mãos dadas com a irmã.
DUARTE
O que é isto?
BEATRIZ
São os sonhos que eu tenho.
Alguns ainda não tive. Mas vou
experimentar.
Duarte olha confuso para Beatriz e depois observa os desenhos mais negros. Pessoas a discutir, a serem más, caras tristes, cruzes num cemitério, uma criança a chorar num canto, alguém a ser atropelado.
DUARTE
E isto é o quê?
Beatriz levanta-se e junta-se a ele a observar os desenhos.
BEATRIZ
BEATRIZ
Isto é o mundo real.
Duarte olha de boca aberta para Beatriz, enquanto esta se deita na cama.
3. INT. CASA DE BEATRIZ - SALA - DIA
Duarte aparece na sala, abalado pelo que viu e duas pessoas, a Mãe e o PAI de Beatriz, levantam-se do sofá de rompante, preocupados.
MÃE
Então, doutor? O que é que
descobriu?
PAI
Por favor, diga-nos rápido,
porque já não aguentamos mais.
MÃE
Já não sabemos o que fazer. Ela
só dorme. Só quer dormir. O que é
que se passa com a minha filha?
DUARTE
Por favor sentem-se, isto vai
demorar a explicar.
Os pais sentam-se no sofá e Duarte numa cadeira, de frente para eles.
MÃE
É o quê doutor? É depressão? A morte
da irmã afectou-a muito! Acha que...
pode ser por isso?
PAI
(para a Mãe)
Não. Não se pode ter depressão tão
nova...
(para Duarte)
... pois não?
DUARTE
Bem, não é vulgar, mas é possível.
Mas eu não acredito que seja isso
que a Beatriz tem.
MÃE
Então, é o quê?
DUARTE
Disseram-me que o Q.I dela é
elevado, certo?
PAI
Foram o que os teste disseram, sim.
O que é que isso tem a ver?
DUARTE
Pode ter a ver. Eu acho que a Beatriz
quer dormir porque, nas palavras dela,
"se sente mais feliz".
(pensa um pouco
antes de falar)
Eu acho que a Beatriz tem a
capacidade de ter sonhos lúcidos.
PAI
Sonhos lúcidos?
MÃE
O que é isso?
DUARTE
Basicamente, é quando estamos a
sonhar e nos apercebemos que estamos
a sonhar. Ora, quando pessoas comuns,
como vocês e eu, temos sonhos lúcidos,
o que acontece muito raramente,
acordamos imediatamente.
Mas uma certa...aaah... parcela da
população... consegue ter sonhos
lúcidos e não acordar. Com isto, o
subconsciente e o consciente... Estão familiarizados com estes conceitos?
Os pais assentem com a cabeça.
DUARTE
Pronto. Quando isso acontece, o
subconsciente e o consciente trabalham simultaneamente e as pessoas conseguem
controlar completamente o sonho. O
enredo, os cenários, as personagens. É
muito raro, mas é possível.
MÃE
Mas como é que é possível ela perceber
que está a sonhar?
DUARTE
DUARTE
Eu não sou especialista nesta matéria,
mas é bem possível. O mundo do sonho,
mesmo que nós não nos apercebamos quando
estamos a sonhar, é diferente do mundo
real. Depois de umas quantas vezes o
cérebro habitua-se a ter sonhos lúcidos
e já é automático. O facto de ela ter um
Q.I. maior do que o normal pode ser uma
razão para ela se aperceber facilmente
que está a sonhar. Mas, tal como disse,
não sou especialista neste tipo de coisa.
PAI
Então é isso que a minha filha tem?
DUARTE
Eu penso que sim.
MÃE
Mas porquê que isso a faz dormir tanto?
DUARTE
Bem, visto que a Beatriz consegue
controlar os sonhos dela, ela acabou
por preferir o mundo que ela criou
ao... mundo real.
MÃE
Mas então, isso não é tão mau.
DUARTE
Nem por isso. Eu receio que se a
Beatriz continuar com isto, chegue a
um ponto em que se esqueça de viver
na realidade.
PAI
Como assim?
DUARTE
Ela está a abusar. Qualquer dia não
vai querer fazer nada a não ser dormir.
E assim, pode chegar a um ponto em que
confunde a realidade com o sonho. Que
deseje tanto o sonho que fique para
sempre presa nele. Confunda o que é
mental, com o que é real. Que pense que
o seu sonho é que é real.
PAI
PAI
(muito agitado)
Mas e agora?
DUARTE
Agora temos de a convencer a dormir só
quando é necessário. Não podemos
impedir que ela tenha sonhos lúcidos,
mas podemos reduzir o tempo que ela
dorme. Temos é de a convencer que é
melhor estar acordada.
PAI
E não pode fazer isso?
DUARTE
Eu? Posso tentar, mas o verdadeiro
trabalho vai ter ser vosso.
4. EXT. CAMPO DE GIRASSOIS - DIA
Beatriz corre por entre os girassóis, rindo, como se jogasse à apanhada com alguém. Pára e baixa-se, escondida entre o caule das flores.
Um cavalo aparece. Montado nele, como se emanasse luz própria, está Margarida, que lhe estende a mão a sorrir. Beatriz levanta-se e estende-lhe a mão. As mãos não se tocam porque...
...CORTA PARA...
5. INT. QUARTO DE BEATRIZ - DIA
Os olhos de Beatriz abrem-se. Ao lado dela está Duarte que lhe sorri. Ela senta-se direita e esfrega os olhos.
DUARTE
Olá, outra vez! Estavas a sonhar
com o quê?
BEATRIZ
Com a minha irmã!
DUARTE
Sonhas muito com ela?
BEATRIZ
Sonho sempre. Veio falar comigo
por causa dos sonhos outra vez? Os meus
pais acham mal, não é? Também acha?
DUARTE
Mais ou menos. Não acho que devas parar
de sonhar. Mas acho que devas parar de
dormir durante o dia. Sonha só de
noite.
BEATRIZ
Porquê?
DUARTE
Porque...
(Duarte pensa em como
explicar aquilo)
Porque é demasiado. Dormir muito faz
mal. E sonhar muito também.
BEATRIZ
Porquê?
DUARTE
Porque... Beatriz... por muito que
gostes, não é real. E...
BEATRIZ
Tem medo que eu confunda o que é real
com o que é sonho?
Duarte fica espantado com a resposta da rapariga, inesperada para alguém da idade dela.
DUARTE
Aaah... Sim. É isso mesmo.
BEATRIZ
Eu sei sempre quando estou a sonhar
e quando não estou.
DUARTE
Sabes agora. Mas vai chegar uma
altura em que talvez não.
BEATRIZ
Como é que sabe que não está a
sonhar agora, senhor Duarte?
Duarte é apanhado desprevenido.
DUARTE
Porque o meu cérebro me diz.
BEATRIZ
O seu cérebro diz-lhe que está a
sonhar quando está a sonhar?
DUARTE
Não, mas... eu...
BEATRIZ
Eu sei que estou a acordada porque
me sinto triste. Porque neste mundo
real existe maldade, existe tristeza,
existe morte. No meu sonho não. No
meu sonho eu sou alegre. No meu sonho
eu rio-me. No meu sonho ninguém discute.
Não há crianças más que gozam comigo ou
me atiram ao chão. O meu sonho é um
mundo perfeito. E no meu sonho a minha
irmã está viva.
Duarte fica calado, abalado.
BEATRIZ
Preferir sonhar e não perceber que estou
a sonhar são coisas diferentes.
6. INT. CASA DE BEATRIZ - COZINHA - DIA
Duarte entra de rompante na cozinha e serve-se de um copo de água, perturbado com a conversa.
Entra o Pai, com uma expressão quase zangada.
PAI
Então, Doutor?
DUARTE
A sua filha é um caso muito
particular.
PAI
Seja sincero comigo! A minha filha
é maluca não é? Não me minta!
DUARTE
(indignado)
A sua filha não é maluca senhor
Torres.
PAI
Por amor de Deus. Isto que ela faz
de sonhos ilucidados ou que raio...
só pode ter um parafuso a menos. Acha
que devia ser internada?
DUARTE
DUARTE
(ainda mais indignado,
espantado)
Internada? Senhor Torres não se
atreva sequer a tentar fazer isso. A
sua filha está bem. Na verdade só o
facto de ela conseguir fazer o que faz é simplesmente incrível.
PAI
Incrível? o que ela faz é dormir!
DUARTE
Ela tem as suas razões senhor Torres e
a sua obrigação como pai é compreendê-las
e ajudá-la a ultrapassar esta fase, não
mandá-la para um hospital.
PAI
Mas, como é que eu...?
DUARTE
A mente é uma coisa complexa senhor
Torres. É ao mesmo tempo uma coisa
poderosa e uma coisa muito frágil. E a
mente da Beatriz é... excepcional. Temos
de ajudá-la dando-lhe amor, carinho e
atenção. Ora, com esse facto pouco posso
eu ajudar. Esse é o seu trabalho.
Duarte deixa a cozinha, deixando o Pai, zangado, a digerir o que ouviu.
7. INT. CASA DE DUARTE - NOITE
Duarte está sentado à mesa de jantar. Uma mulher, que supomos ser a sua ESPOSA, aparece com uma travessa de comida. Pousa-a no centro da mesa e senta-se à frente do marido.
Duarte tem o olhar vago, muito pensativo com algo que o perturba. A sua Mulher repara.
ESPOSA
Estás bem?
Duarte levanta lentamente a cabeça para olhar para ela.
DUARTE
Responde-me a uma coisa. Se tu
pudesses viver num sonho e nesse
sonho fosses muito mais feliz do que
algumas ve poderias ser aqui,
preferias viver a sonhar para sempre?
ESPOSA
Acho que não!
DUARTE
Porquê?
ESPOSA
Porque não é real.
DUARTE
E qual é o mal nisso?
ESPOSA
Bem, temos de viver na realidade.
Porque é a realidade que é... real.
Viver num sonho é esquecermos a nossa
verdadeira existência. E isso é o
mais importante. Mas porquê que me
estás a perguntar isso?
DUARTE
Estava só a pensar.
Começam a comer, sossegados.
8. INT. CASA DE BEATRIZ - NOITE
Beatriz está no corredor, dirigindo-se para a sala. Mas pára bruscamente. Os seus pais estão na sala e parecem zangados um com o outro. A Mãe está sentada e o pai em pé, muito agitado.
MÃE
Não fales assim da tua filha.
PAI
Porquê? É verdade! Tu não queres
perceber que a nossa filha é maluca!
Ela é maluca!
MÃE
A nossa filha tem um problema que
pode ser curado. Só temos de tentar.
PAI
PAI
Tentar? Tentar o quê? Tu por acaso
sabes lidar com isto? Ela tem um
parafuso a menos é o que é! E a culpa
é tua!
MÃE
Minha?
PAI
Sim, tua! Sempre fora de casa. Não
dás atenção à miúda.
Beatriz começa a fazer força para não chorar e corre para o quarto.
9. INT. QUARTO DE BEATRIZ - NOITE
Beatriz entra no quarto e salta para a cama, deitando-se a chorar. Fecha os olhos e deixa-se dormir.
10. EXT. CAMPO DE GIRASSOIS - DIA
PLANO SUBJECTIVO DE BEATRIZ
Margarida está no meio dos girassois, com um grande brilho surreal atrás dela, e estende-nos a mão.
MARGARIDA
(fala lentamente, de
forma angelical)
Vem! Eu ajudo-te! Vem! Vamos
brincar! Não precisas de estar aqui!
Vem! Vem...
11. INT. QUARTO DE BEATRIZ - NOITE
Beatriz acorda, sobressaltada. Abraçada a ela está a sua mãe, a chorar.
MÃE
Já passou, filha! Eu estou aqui!
Não precisas de dormir! Eu estou aqui.
Beatriz vira-se e abraça a Mãe a chorar, enquanto esta lhe faz festas no cabelo.
MÃE
Já passou! A mãe está aqui. A mãe
está aqui.
E ficam assim as duas, deitadas na cama, abraçadas.
FIM
Guião vencedor de uma Menção Honrosa no Concurso de Escrita de Argumentos para Curta-Metragem (mais de 300 participantes de todo o país)