João Paulo de Carvalho's profile

Transitório / Transitory

Transitório

Aquarelas feitas em estúdio, a partir de registros das ruas (fotos de celular e esboços no caderno). As cronicas foram escritas a partir das aquarelas, por Fabiano Vianna

Studio watercolors made from street snapshots (mobile photography and sketchbooks drawings). 
Teve dois cachorros. Levava o primeiro – que se apagou há mais ou menos 20 anos, para andar nas mesmas ruas e praças que o atual. A diferença é que a cidade era outra. O velho açougue virou uma loja de celulares, o armazém virou café, a sapataria virou lotérica, a funerária virou Casas China. A maioria das árvores da pracinha foram riscadas e a pitangueira – que ficava carregadaça na primavera, se foi. Alguns moradores (e cães) também sumiram, juntos com os açougues, os armazéns, sapatarias e funerárias. Daqui a um tempo ele e seu cão atual também desaparecerão nas aguadas do tempo. E quiçá outro homem caminhará com seu mascote pelas mesmas ruas e praças, redesenhando o trajeto. Bem-aventurado é o cão, que por não saber da existência de seus antepassados, caminha suavemente, sentindo os aromas das frutas, o cheiro da vizinhança, o rastro de outros bichos. Para o cachorro não existem outros açougues, nem armazéns, nem sapatarias, nem lotéricas. Apenas a fragrância da tinta do presente, a traça-los com a nuança dos dias.
Gosta de caminhar no centro para ordenar as ideias. Enquanto flana, coloca-as em linha. Retas ou sinuosas – depende do dia. Escreve crônicas, resolve parágrafos, engendra títulos, concebe séries de TV imaginárias, refaz finais de filmes que não gostou (ou que gostou, só pelo desafio mesmo). Quando era mais jovem, e ainda trabalhava, planejava suas aulas assim. Entre um banco e outro. É como se as soluções estivessem ali – no canto de um pardal da Osório, nas sombras das tipuanas da Pracinha do Amor, embaixo de uma folha de plátano do Passeio Público, sob as marquises da XV, na vitrine de uma loja da Galeria Minerva, num fragmento de papo entre os senhores da Boca Maldita. Enquanto flana, escreve trechos mentalmente, para depois resolve-los em casa. Às vezes as histórias estão bem desfocadas e se resolvem durante a caminhada. Mas de vez em quando é ele que se sente assim – desfocado, em busca de uma nitidez necessária. Como se fosse um personagem inventado por alguém que flana para ordenar as ideias.
Gostava de contemplar a natureza no meio urbano. Nas ruas – as travessias dos vira-latas, nos cafés – o ziguezague das abelhas, sobre os arranha-céus – a migração dos pássaros. Com o tempo, as árvores, e os jardins se apagaram. O cenário modificou bastante e seu banco habitual – que antes ficava sob a sombra de uma frondosa tipuana, ficou ao sol. Até que o homem desapareceu, e depois também o banco. Só a sombra permaneceu e está lá até hoje. Dizem.
O esquecimento surgiu de repente, como uma espessa chuva de tinta acinzentada – escorreu sua cidade de lembranças. As sacolas cheias de compras ficaram no balcão do caixa, no supermercado. Caminhou confusa em direção ao centro e foi encontrada horas depois – na avenida. Ia e voltava, como um filme em looping e não sabia onde estava. Numa das mãos, um guarda-chuva branco branquíssimo e, na outra enfiada no bolso – moedas, notas amassadas, pedaços de tecidos, agulhas, um carretel de fio dourado. A insanidade é um labirinto de armarinhos circulares costurados na sombra do Minotauro.
Atravessa a tinta se equilibrando entre os brancos. Com a cabeça enfiada dentro do guarda-chuva, viaja olhando para o chão. Impedida de contemplar os prédios, por causa das gotas, aprecia a cidade do ombro para baixo – o sutil desenho formado pelos petit-pavets, os mistérios sugeridos pelos bueiros, as variações de calçados e pés que caminham ao lado, as histórias abandonadas em filipetas rasgadas, os bilhetes de amor que flutuam nas poças. Há uma grande beleza na cidade baixa, que na correria do dia-a-dia deixa de reparar. Enquanto atravessa as avenidas, refina as ideias e diálogos, planeja artigos, redesenha rostos esquecidos, repassa trechos de livros queridos. Rente ao solo, nos labirintos dos túneis e galerias subterrâneas descansam diversas histórias da cidade. Causos que escorrem das cabeças enfiadas em guarda-chuvas da memória dos habitantes de cima.
A espera do último bonde elétrico que circularia na cidade. O homem ficou horas, dias, anos. Sua sombra de nanquim girou de norte a sul, e foi aos poucos diluindo as lembranças, os rostos, as palavras. A cidade mudou, com elas os pontos e o mobiliário. Até que ele percebeu que o bonde não viria, e que na verdade ele era o bonde, a cidade, as palavras e o sol. E assim como os bondes, ele foi
Transitório / Transitory
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Watercolor sketches series

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