Filipe Simões's profile

Contos Esdrúxulos

Barreiras Psicológicas
 
As escadas do prédio pareciam intermináveis. Ou isso ou sou eu que estou ficar velho, perco o fôlego com uns míseros três patamares. No último degrau quase tinha vontade de dar um grito de alegria. Venci-vos, com a breca! Detive-me um instante, ajeitei o fato e bati à porta.
— Mas o que vem a ser isto? — vociferou a porta, indignada — Que mal lhe fiz eu?
— P-peço desculpas. Não queria ser rude.
— Ai não? Então chega aqui e dá-me três pancadas secas e diz que não quer ser rude? Isto só visto! Ainda por cima com os nós dos dedos!
— Bem, eu só queria falar com o senhor que vive nesta casa. Pensei que… normalmente batendo à porta… uma questão de educação…
— Educação?! Valha-me Deus! Parece impossível, não sabe tocar à campainha?
— Ei ei ei, calminha, amiga, a mim ninguém me toca! Não conheço o senhor de lado nenhum, não se atreva a tocar-me com essas manápulas.
— E a mim ninguém me bate!
— Minhas… s-senhoras… peço mil perdões pelo incómodo, mas… será que poderiam chamar o vosso dono?
— Dono?!
— Sinceramente, isto passa das marcas, nunca fui tão insultada na vida!
— Com quem pensa que está a falar, seu desavergonhado?
— É realmente muito inconveniente, eu cá não chamo ninguém.
— Eu também não!
— Então mas… como é que eu… sabem, eu sou novo nisto, não conheço bem o protocolo…
— Pfff
— Pfff
Ainda fiquei ali por uns minutos pensado no que poderia fazer para entrar. Mas não adiantava. Nestes momentos bloqueio sempre.
Ao descer as escadas ainda ouvi um comentário da porta, que não fez muito para fazer segredo.
— Juro-te que se não tivesse presa às dobradiças me atirava para cima dele com toda a força.
Gerações
 
O pai ergueu a mão, estendeu o indicador e vociferou: «Onde estão as minhas pantufas, com mil demónios?!» Do outro lado da casa ouviu-se um estilhaçar agudo. O crianço mais novo quase voou pelo corredor: «Aqui estão, meu pai!» Disse, esticando o braço o mais que podia. ZAC! «Esta é para aprenderes a tratar dos teus deveres, meu patife!»
Na cozinha gritava a mãe: «Lava-me esse chão como deve ser, malvada, olha p'ra isso!» A pequena esfregava com mais força, até lhe ferirem as mãos: «Sim, minha mãe.»
«Dá-me a camisa!» «Limpa-me as alparcatas!» «Traz-me o cinzeiro»
«Tira, põe, leva, traz, limpa, cose, cala, mexe, acende, varre, vira»
«Diacho, mulher, temos de fazer mais um que estes já não dão conta dos recados!»
Os filhos cresceram. Deixaram a velha casa e os velhos que os criaram. O mais novo casou cedo, com a pressa de se fazer homem.
Ergueu a mão, estendeu o indicador: «Onde estão as minhas pantufas?» gritou o pequenote no sofá. «Já vou, meu filho!»
«Quero aquele brinquedo!» «Traz-me um copo de água!» «Leva-me ao acampamento!» «Tenho fome!» «Cala-te! não ouço os desenhos animados!»
Inferno no Céu
 
O sequestro foi terrível. Enquanto trabalhava foi atacado por dezenas deles. E faltava tão pouco, podia ter ficado perfeito. Aliás, tinha tudo para ficar perfeito. Belo, tranquilo, uma obra magnífica. Não há dúvidas de que é um artista.
Apareceram de súbito, de dentes afiados, olhos arregalados e espigões em punho. Gritavam de histeria e batiam uns nos outros.
Entre gargalhadas e patifarias, prenderam-no. Usaram as suas mãos experientes para dar o toque final. Um toque subtil, porém macabro.
Espalharam a ganância. Isso basta-lhes. É esse o motor.
No fim, soltaram-no e mergulharam pelas nuvens. Os malditos parasitas. Aqueles que envenenam a alma, apoderam-se da inteligência e apontam para cima, culpam os céus. São eles a fonte de ignição e estão por toda a parte. 
Ao sétimo dia, não descansou.
Domingo
 
Certa manhã, numa daquelas casas típicas das histórias que se contam às crianças pequenas antes de dormirem, havia uma menina. Lá está, típico.
«Isto é que são horas de levantar?» indagou a típica mãe solteira/divorciada «Não me chateies!» ripostou a menina nada simpática «Olha lá como falas com a tua mãe!» «Pff» «Mau! Logo à tarde quero que vás a casa da tua avó levar-lhe isto.» «Eia, oh mãe!» «Oh mãe nada! Vais e acabou. Não posso ser sempre eu a fazer tudo nesta casa.» «Fogo!»
A menina e a sua mãe almoçaram rabujentamente, trocando sarcasmos familiares. Depois a menina foi aperaltar-se.
«Não penses que vais assim vestida!» balbuciou a mãe estupefacta «Eu vou como eu quiser!» «Se o teu pai te visse assim...» «Fazia o quê?» «Bom, veste o casaco ao menos.» «Pronto.» «Nem te vou dizer o que pareces com isso.» «Olha, até logo.» TRUZ!!! Não houve recomendações de trajectos a evitar porque seriam palavras deitadas ao vento.
A menina lá foi de sobrolho franzido e passo sonoro pelos caminhos campestres. A Primavera estava no pináculo da sua glória, vangloriando-se com estupendas flores que a menina ignorava com empáfia. Todavia, por questões de natureza própria, não conseguia ignorá-las com eficácia, tal era a comichão que lhe avermelhava a pele e os olhos. A certa altura os espirros e a tosse tomaram conta da situação e não havia cá anti-alérgicos que lhe valessem. Um caçador que por ali passava deu com a menina desmaiada e de pronto invocou as autoridades competentes que a encaminharam a ambientes hospitalares estéreis.
A sorte é que já não há lobos para se aproveitarem das meninas indefesas.
Moléstia
 
O Pai caminhava de olhos postos no horizonte, preciso e ousado mas lento. Não esquecia que ao seu lado estava a Filha pequena segurando a mão firme do Pai.
— Por que é que vamos falar com o Senhor da loja, Papá? — indagou a Filha entusiasmada.
— Não é o Senhor da Loja — explicou o Pai — é o Director. O Chefe da Loja. De todas as lojas. O Director da Empresa que comanda as lojas!
— Ah, então é ele o culpado do arroz fazer aquelas bolinhas de sabão saltarem da panela?
— Sim.
Caminhavam ao longo da estrada do campo, entre os Montes de Lata e a Mata do Polipropileno. Ao fundo, já se avistava o Ribeiro Peçonhento. Disse o Pai:
— Vamos atravessar a ponte, Filha, já sabes o que fazer?
A pequena cerrou o punho e esticou o polegar para cima enquanto aspirava uma valente porção de ar. Fez que sim com a cabeça e correram.
Já do outro lado, expeliram todo o ar com estrondo e riram.
— Papá, é verdade que antigamente os filetes andavam no rio?
— Sim, Filha. Há muitos anos os peixes podiam nadar livremente nos rios e nos mares.
— Ah então agora também é proibido? Mas como é que eles aguentavam o cheiro?
— Antigamente os rios não cheiravam mal.
— A sério?!
— Eram feitos de água.
— Água? Mas então não havia muitos rios, pois não? Tu disseste que a água é muito cara e é difícil de encontrar!
— Havia… eu depois explico… é uma história muito complicada. Chegámos!
A astúcia do Pai levou-os facilmente ao topo do edifício onde se sentava o pecunioso Director.
— Que queres, vassalo? — inquiriu o dito magnata.
— Vossa Directoria, venho falar-vos deste arroz que me vendestes — disse o Pai com uma vénia.
— Que tem ele?
— Faz bolinhas de sabão na panela, meu Director.
— É a nova garantia de qualidade.
— Mas, vossa Directoria, isto não é natural! Com todo o respeito para convosco, nós preferimos arroz autêntico.
— Insolente! Como te atreves?! Esse arroz foi produzido sinteticamente através da mais elevada tecnologia, a partir de compostos químicos altamente puros! Comercializamos arroz de todas as cores, sabores e feitios! Incluindo uma réplica fiel do arroz de outras eras! Que queres mais?
— Precisamente isso, vossa Directoria, queremos o arroz que nos deu a Natureza.
— Quem?
— A Mãe Natureza.
— Não te atrevas a falar dessa asquerosa megera na minha presença! Retira-te imediatamente!
— Com certeza, meu Director, desculpai-me a ousadia.
O Pai saiu correndo do edifício levando a sua amada Filha nos braços. Não teve coragem de a colocar em perigo. A Filha fazia perguntas mas de nada lhe valia. Atravessaram de novo a ponte. Mas o Pai não aguentou, teve de se mexer.
— Filha, não podemos permitir isto. Desculpa-me.
O Pai acendeu um fósforo e deixou que caísse no Ribeiro Peçonhento. O fogo seguiu a corrente viscosa até ao rio e depois até à foz. Os oceanos arderam, os rios, as montanhas, as cidades. Tudo ardia numa questão de segundos. As cores eram incríveis e os vapores de uma beleza magnífica.
— Ena! Mas que luz tão brilhante! — disse o Sol com inveja.
Emigração
 
O País estava farto! Ao fim e ao cabo já lá iam uns séculos disto, era tempo de um pouco de paz. A toda a hora é ignomínia, é opróbrio, é perjúrio, é empáfia, é pedantismo é egolatria é zelotipia é o rai' que o parta! Chiça!
Ao princípio, na era dos vulcões, ainda era tudo jovem, cheio de vigor e pujança. Agora o tempo é outro. Faz falta a calmaria e o ócio que a idade já pesa.
E diga-se, em boa verdade, estes humanos não se podem aturar, sempre com as suas lérias e mesquinhezas. E o pior é que andam por todo o lado! É tudo deles, das criaturas que se julgam sabedoras de sua própria sapiência.
Assim é normal, pois pudera! Acaba-se a serenidade.
Já em 1755 houve um pequeno ameaço, mas desta foi de vez. Já chega!
O País ergueu-se então dos seus alicerces, sacudiu-se e foi-se deste planeta.
Houve quem dissesse que tudo não passou de um amuo próprio da velhice.
Os Homens, lá em baixo, olhavam incrédulos.
Os que sabiam nadar.
Ubiquidade
 
«O Senhor está preso!»
Saltaram-lhe para o cachaço, esbofetearam-no, algemaram-no, arrancaram-lhe a roupa e os cabelos e arremessaram-no de cabeça para dentro da viatura blindada das Forças Especias do Governo que se dissipou num ápice.
O folhado de salsicha, agora órfão e levemente marcado pela dentição do criminoso, ficou prostrado no soalho da cafetaria, junto de uma calma poça de café fumegante. «É sempre quem menos esperamos» suspirou o empregado do estabelecimento, não escondendo a mágoa que lhe carregava o semblante. E limpou.
Já sem dentes, ossos quebrados e pele coberta de fluidos ricos em glóbulos vermelhos, o criminoso pedia clemência debaixo dos holofotes que lhe laceravam as vistas. «Não adianta. O sacana foi bem treinado. Livrem-se dele!»
A execução foi uma graça vinda dos céus, acabando com a falta de imaginação dos Agentes Governamentais que esgotaram as técnicas de tortura.
O corpo do criminoso foi depositado na cova com o merecido desprezo. E assim, a Agência Ultra-Secreta Anti-Governamental ficou desapossada do seu Espião mais secreto. Tão secreto que nem ele próprio sabia que tinha sido nomeado para o cargo.
Mas o Governo sim, sabia.
O Governo sabe tudo.
Contos Esdrúxulos
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Contos Esdrúxulos

Contos ilustrados publicados quinzenalmente no jornal regional "O Riachense".

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