Como histórias, via de regra, precisam de um evento desencadeador para existirem, essa começa, de fato, quando um jovem cansado de sua rotina tem a vida roubada de sua condição natural: de um segundo para o outro, a alma de Victor é aprisionada a um grafite de rua. Submetido a uma existência de mero espectador, Victor observa e narra as peripécias do amigo que está sendo alvo de tentações demoníacas, incapaz de ajudá-lo a princípio. O paciente é um romance de mistério e fantasia urbana.


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Prólogo

Estamos no Aurora, no bairro mais promissor da cidade, e eu não tenho nenhuma expectativa além de conseguir um alívio para o estresse na forma de uma bebida destilada qualquer.
— Esse é o clichê dos perdidos — diz a garota que balança as pernas na piscina junto comigo. Uma neblina roxa e sorrateiramente tóxica nos envolve. — Como você lida com isso, sabendo que tudo é questão de escolha e não existe resposta? — Ela se engasga, tentando falar e beber ao mesmo tempo. Fios do cabelo laranja colam na sua língua enquanto tosse e eu dou tapinhas nas suas costas por educação. Então ela se recompõe e termina: — não existe caminho certo.
Eu digo que ela já bebeu demais e tento roubar o copo meio vazio de sua mão, mas essa parte do seu corpo está bem lúcida em detrimento das outras. Me levanto e a deixo sozinha perguntando aonde vou.
Todos seguram algo, enquanto eu sou o único que não avista o garçom ou o open bar. As pessoas se divertem no jardim fluorescente e eu passo entre elas, desajeitado. Conforme avanço pelo gramado, o cheiro doce das máquinas de fumaça se torna mais acre. Alguém aumenta o volume da música e as batidas estremecem a caixa de som.
L sumiu na aglomeração da pista de dança há pelo menos uma hora, tão à vontade como um cachorro esfregando a lateral na perna de desconhecidos. Deixou comigo as chaves de casa e o pressentimento comum de que logo iremos sair correndo.
— Ei — alguém chama. Me viro e é uma das muitas meninas de cabelo preto que estagiam no call center. Na verdade, o cabelo dessa é castanho escuro. — Você é aquele menino da voz grave.

O nome da garota é Isabel. Ela me pediu para chamá-la de Isa, mas eu não gosto de apelidos e só me rendo ao hábito por L. A jaqueta de couro dela range toda hora ao se dobrar.
— Foi mal, não tem nada interessante aqui — insiste ela. Isabel tampa o freezer e desliza sobre o balcão um refrigerante de uva e outro de limão. — Você pode escolher.
Pego a lata verde e agradeço, já planejando ir embora, mas Isabel se acomoda diante de mim e me sinto inexplicavelmente encurralado. Ficamos em silêncio. A iluminação roxa que entra na cozinha através das frestas da janela me faz imaginar um sol ultravioleta suspenso no céu lá fora.
Após beber um gole da lata, ela apoia os cotovelos no balcão e se inclina para frente.
— É sua primeira vez aqui? Parece deslocado.
— Devo ser transparente.
— Tenho um radar para introvertidos — ela fala, rindo de um jeito solidário e ofensivo ao mesmo tempo. — O que você faz no Aurora?
— Vim beber de graça. E, talvez, por sorte, esbarrar em alguém importante que me consiga um trabalho efetivo qualquer.
— Já arranjei alguns contatos por aqui. Basta ser ativo.
— É por isso que você veio?
Em resposta, o olhar dela se perde, talvez em um dos lugares sombrios onde costumo ir de vez quando, sozinho no meu quarto.
— Pensando no apocalipse? — pergunto.
— Tem muita arte de rua... — ela fala devagar, despertando do transe. — ...expressiva nessa área. Sou uma entusiasta de grafites.
—  Ouvi dizer que a prefeitura planeja apagar todos.
— Perda de tempo, sempre vão surgir novos. Você acredita que toda arte tem uma função, Vic?
— Não sei. Preciso mijar.

Quando retorno, Isabel sumiu. Uma lata de cerveja pinga sobre o balcão e uma mensagem desmancha-se num guardanapo: “Eu não gosto quando meus amigos ficam bêbados, pois eu sempre acabo fazendo o papel do guincho”, Amigos? No lado oposto, ela rabiscou o símbolo de anarquia.
Agarro a lata de cerveja e atiro o papel no lixo.
 Um barulho de estardalhaço vem do jardim, seguido por um grito. Meu sol ultravioleta se transforma em uma nave alienígena prestes a abduzir alguém. Largo depressa a cerveja no balcão e abro a porta da cozinha. Me deparo com um sujeito de black-tie agarrando o colarinho de L. O sujeito lembra um cão de guarda, um daqueles dispostos a estraçalhar quem invade o seu perímetro.
O rosto dos dois está muito próximo um do outro e a cena é bastante constrangedora.
— Volta pro esgoto de onde saiu! — grita nervosamente o sujeito de black-tie.
L esboça um sorriso canalha que guarda no bolso especialmente para essas ocasiões. Então diz:
Você beija a sua namorada com essa fossa?
Só então noto a garota que também assiste à cena. Ela se retrai no canto, apertando a bolsa contra o peito. Reviro os olhos. Qualquer elemento surpresa nessa situação é, na verdade, um deslize de atenção meu. 
— Peço desculpas pelo meu amigo — interfiro com meu discurso pronto. — Ele provavelmente não sabia que a moça é comprometida. De qualquer maneira, já estamos indo. Não queremos atrapalhar o resto da sua noite.
Seguro L pelo cotovelo, mas o valentão também não larga.
— Quem é você? — rosna. — Outro penetra.
— A Isabel nos convidou.
— Eu não conheço nenhuma Isabel — retruca. Ele afrouxa os dedos em volta do colarinho amarrotado de L.
— Conhece, sim. É a menina do cabelo castanho. — Aponto para o salgueiro no outro lado do jardim.
L e eu estamos correndo em direção à saída.

Como se os anos avançassem no ritmo da nossa velocidade, tudo ao redor se torna feio e miserável: as casas declinam, as cores somem e as sombras caem sobre nós. A música delirante ainda ecoa na minha mente. Ao chegarmos ao topo de uma curva íngreme, uma segunda rua surge à esquerda. Eu opto pelo desvio, enquanto L segue reto, arrastando a turba de valentões no encalço.
Burro. Ele deveria ter virado à esquerda. A via nos faria sumir de vista por alguns segundos e teríamos alguma chance de escapar.
Os passos se distanciam depressa até se tornarem apenas mais um ruído desfigurado na noite. Me sento no meio-fio para recobrar o fôlego. Paredes de tijolos nuas e calçadas cheias de pontas de cigarro substituíram a paisagem de mansões conceituais do Aurora. Essa é uma parte esquecida do bairro ou fomos longe demais?
De repente, a luz do poste ao meu lado fraqueja.
Sinto um par de olhos deitar-se sobre mim.
Descubro-o imerso na escuridão atrás de uma janela. Olhos de um azul translúcido me encarando e atravessando a pele. A sombra espessa cobre o corpo e as vestes, porém o rosto velho e magro, mergulhado sob cabelos pálidos, se faz visível. Em seguida, tábuas de madeira se sobrepõe, tapando a visão da criatura no casebre.
É quase meia-noite. Tento ignorar o cheiro das sarjetas enquanto a adrenalina ainda se dissipa no meu corpo. Agora me pego temendo que a velha Matinta Pereira seja real. Está tudo bem, o medo faz ver coisas. Lendas sobrenaturais nunca vão muito além de “um fundo de verdade”. Certo? Me lembro das chaves que L me deu e as tiro do bolso. Uma vez, li em um jornal sobre uma mulher que voltava a pé do trabalho para casa e, certa noite, foi interpelada por um homem desconhecido. Ela escapou dele perfurando-lhe o rosto com as chaves que segurava.
Se eu ligar para o celular do L, talvez acabe revelando seu esconderijo por acidente. Não quero arriscar, então me levanto e vou atrás dele. Meus olhos percorrem as fileiras de barracos; todos parecem dormir — mas essa, com certeza, não é uma área desabitada. Alguém usou o espaço como seu caderno de rabiscos, preenchendo as paredes com desenhos, formas e símbolos.
Logo adiante, o chão se torna mais lodoso e várias impressões de solas de sapato aparecem, inclusive as listras ondulantes dos tênis de L. Elas não me levam muito longe; chego aonde as marcas se tornam indistinguíveis e desaparecem, como se alguém as tivesse bagunçado de propósito, minutos antes.
Enfim, vejo um símbolo no muro que me remete a alguma coisa.


Isabel está parada ao meu lado, antes de uma luz me engolir e o mundo se distorcer por inteiro.

...

Já experimentou a paralisia do sono? Você está consciente e enxerga tudo ao redor, porém é incapaz de se mover. Você tem vontade de abrir a boca e gritar, mas seu corpo não atende aos comandos da sua mente; eles estão desassociados. Intensifique a situação ao imaginar o seguinte: seu corpo jaz a metros de distância de você, separado do seu espírito, esse aprisionado a uma matéria fria, rígida — indiferente a todos os seus afetos a pessoas e coisas desse mundo que fazem de você uma existência significativa.
Isabel me olha: um A de Anarquia pichado em um muro sujo de limo. Ao passo em que o rosto dela é, para mim, uma tela em branco. Quem é ela, afinal?
— Eu apenas executo as sentenças de maldição. Seja resiliente, Vic.
— Então você me ouve. Escuta: na verdade, não me interessa quem você é. Só quero ir para casa dormir e fingir que nada disso aconteceu. Prometo que não vou iniciar uma caça-a-bruxas pela cidade. Você pode apagar minhas memórias dessa noite, se quiser; apenas me solta.
— Soltar? Você não está preso. Somente ao seu símbolo. Você pode transitar através dele.
— Entendi. Que tipo de passatempo é esse? Você é uma súcubo ou algo assim?
 — Aceita o conselho, Vic. É tudo o que você tem a partir de agora.
— Meu nome é Victor. Não Vic.
Ela me dá as costas fingindo que não me escuta. Os coturnos respingam lama no que um minuto atrás era o meu corpo.
O paciente
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