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Reportagem Escola Porto Alegre (EPA)

Na rua, na mira das drogas. Na escola, na mira da prefeitura
Eu queria alguém para me amar e me abraçar nas horas difíceis
Abandonado e revoltado, acima de tudo estou sozinho no mundo
Eu sei, podia ser diferente.
As vezes nem sempre teria o bom e o melhor
mas com pouco me agrado
hoje sou felizardo
e me lembrei do pior momento
Da minha vida de esquina em esquina
procurando alimento
Aos seis anos, jogado às traças
dormindo na praça,
quanto tempo mais aguento?
Não tive infância nem adolescência,
mas eu tenho experiencia
e eu sei me virar.
Por que Deus foi tão duro comigo e eu não tenho abrigo?
Queria tanto um lar
Pra ser sincero, eu já pensei em roubar para me alimentar
é tão ruim passar fome
Nas horas vagas consumia drogas,
alucinado por horas que nem lembrava meu nome
sem estrutura, sem mãe e nem pai eu já sofri demais
sempre desamparado
A depressão dormiu em meu coração,
me levantei do chão
e cresci revoltado
muitos tem tudo e não dão valor
o principal é o amor
sem ele não tem felicidade
Não quero carro, dinheiro e nem moto, não
Goste ou não goste essa é a realidade
Eu queria alguém para me amar e me abraçar nas horas difíceis
Abandonado e revoltado, acima de tudo estou sozinho no mundo
Eu não desejo pra ninguém
só Deus e eu sabemos tudo que eu sofri
já ouvi falar de amor, mas só conheço dor
foi isso que aprendi
Eu queria o EPA,
amigo pra estudar, jogar
e todo dia almoçar e tomar banho.
ter uma família que me amasse demais, uma mãe um pai pra não me abandonar.

EPA EU TE AMO
Rua Washington Luiz, 203 - Centro Histórico, Porto Alegre.

      Para quem passa pela frente o lugar não dá pistas do que acontece por dentro e transparece só mais uma escola de ensino fundamental. Por dentro da Escola Porto Alegre (EPA), atrás das portas de madeira pintadas com rostos de mulheres como Marielle Franco, Conceição Evaristo e Elza Soares, as salas de aula da escola oferecem uma oportunidade de reviver.

Euclides

      Ao menos tem sido assim para Euclides de 56 anos. O livro embaixo do braço já virou uma característica. Ele já perdeu as contas de quantos livros leu e releu ao longo da vida. Além da paixão pele leitura, adora ouvir o radinho de pilha nas horas vagas. Diz que na internet tem muita "fake news". "Se ouço no rádio sei que é verdade”, afirma.
      A vida foi dura com Euclides. Até alguns meses atrás não tinha nem casa. Na verdade, tinha. Sempre teve: a rua. Foi a rua que o acolheu por mais de 20 anos. “Depois que me separei da minha esposa comecei a beber muito. Fui parar nas drogas. Vendi carro, casa, perdi tudo. A casa que tinha sobrado, os traficantes tomaram por dívida. Não pude fazer nada”. Foi assim que o devorador de livros foi parar na rua.
      Euclides ainda não tem 60 anos. Mas a quem vê, parece ter 70. Tantos foram os dias e noites de forte calor, chuva e frio ao relento que deixaram seu rosto de aparência serena marcado pelo tempo. O uso de drogas marcou a alma e envelheceu a pele negra, evidenciando linhas de expressão. 
      Hoje o homem de fala mansa e voz baixa não dorme mais na rua. Euclides se agarrou a um projeto da Prefeitura de Porto Alegre que aluga uma pequena casa para ele. A contrapartida é simples: em troca da moradia, ele precisa estudar. Apesar disso, ele afirma que não está na escola por causa da exigência: “Eu não estou preocupado com eles, eu não estou aqui porque eles querem que eu esteja. Eu estou aqui porque quero aprender. Gosto de aprender. Aprender é importante e eu quero reerguer minha vida”.

Maria

      Colega de Euclides, Maria é uma aluna dedicada e muito comunicativa. Ocupa a primeira carteira da frente. Depois que me apresento, a primeira pergunta que ela faz é: “Quer conhecer uma artista negra? Olha aqui, olha”. Em um recorte de jornal guardado com carinho, ela mostra com sorriso a matéria que a mencionam como uma das alunas de um projeto social que oferece aulas de música para pessoas em situação de vulnerabilidade social. Maria é violinista. “No meu primeiro dia aqui a professora disse para a gente procurar sobre artistas negros e eu perguntei por que vou procurar se tem eu aqui? Ela riu e não acreditou. No outro dia abriu o jornal e me viu”, ela conta sem esconder o orgulho.
      Além do tocar, ela varre. Maria conta que varrer é sua paixão: “eu amo varrer. Pegar o carrinho e sair por aí varrendo é minha vida. É o que eu gosto”.
      Euclides e Maria são apenas dois dos mais de 100 alunos em situação de rua ou vulnerabilidade social que a Escola Porto Alegre atende diariamente. Como as deles, a EPA coleciona boas histórias de superação ao longo dos seus 24 anos de existência.

A EPA

      A Escola Porto Alegre foi inaugurada no ano de 1995 por uma iniciativa da Prefeitura de Porto Alegre que objetivava cumprir o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), visando proporcionar o direito à educação a crianças e adolescentes que vivem nas ruas de Porto Alegre e não tem acesso a escolarização formal. Mas foi só em 2009 que a escola adotou o modelo atual que abrange o ensino fundamental completo na modalidade EJA.
      Hoje a escola atende mais de 100 alunos nos dois turnos de funcionamento. Além do ensino especializado, a escola oferece oficinas de cerâmica e de papel reciclado nos turnos inversos e não fecha ao meio dia. No turno da manhã estão as “totalidades” (equivalente a séries) 1,2,3, enquanto no turno da tarde estão as T4, T5 e T6. Maria e Euclides são alunos da T4 (equivalente a 5ª série da modalidade formal).
       Mas a EPA não é uma escola comum. Ela não ensina só matérias como português, matemática, etc. Ela oportuniza uma vida melhor para pessoas socialmente excluídas. Além da estrutura de uma escola tradicional, a EPA também conta com refeições, espaços para os alunos lavarem suas roupas e dispõe de banheiros com chuveiros para que possam tomar banho. Se não fosse por esse espaço, muitos dos alunos não teriam sequer acesso a higiene básica diária. E é aí que está uma das maiores individualidades da instituição. Muito mais que uma escola regular, a Escola Municipal Porto Alegre oferece aos alunos acolhimento, oportunidades e gera identificação.
       A maioria dos alunos da escola estão em situação de rua, mas há também pessoas como Maria e Euclides que vivem em Albergues ou em casas com aluguéis sociais. Por lidar com pessoas que vivem na rua é comum que usuários de drogas também frequentem a escola. Por isso, hoje a escola trabalha com a redução de danos dos usuários que frequentam a escola.
       Para a diretora, Jaqueline Junker, esse é um dos principais diferencias que a instituição oferece. Ela conta que é corriqueiro, principalmente após finais de semana e feriados, que os alunos retornem à escola sob o efeito de drogas e álcool. No entanto, como não podem permanecer na instituição estando sob efeitos de entorpecentes, ela afirma que o desejo de aprender é tão grande que após um período os alunos reduzem o consumo e até param de usar drogas para que consigam estar mais tempo em sala de aula. “Em uma escola tradicional esse aluno seria suspenso ou expulso. Aqui na EPA ele é acolhido”. Aqui só há uma regra quanto ao uso de drogas: na escola não! E todos os alunos da instituição respeitam a regra. Jaqueline trabalha na escola a 19 anos. O que não faltam são histórias e principalmente desejo de mudar a realidade em que os alunos estão inseridos. “Para trabalhar aqui tem que acreditar no projeto”, comenta.

O fechamento

      Em 2014, a escola foi notificada que a Secretaria Municipal de Educação de Porto Alegre (Smed) fecharia a instituição, na época com 19 anos. Junker afirma que o desejo de fechar a escola sempre existiu por parte de comandos anteriores a José Fortunati na Prefeitura de Porto Alegre. No entanto, as gestões anteriores, antes de iniciarem o processo de fechamento, dialogaram com a escola e a EPA pôde provar sua importância e permanecer aberta. A diferença, como conta Jaqueline, é que no ano de 2014 a escola não foi consultada e sim notificada. Dessa vez a Escola Porto Alegre seria fechada.
      A justificativa da Smed é que a carência de educação infantil no centro da capital é muito maior do que a de jovens e adultos e que os alunos matriculados na escola poderiam ser transferidos para Centro Municipal de Educação do Trabalhador (Cmet) Paulo Freire. O que para a diretora é inviável, considerando as necessidades que os alunos possuem e que a EPA aprendeu a suprir ao longo dos seus 24 anos de existência. Além da infraestrutura que a escola tem para o acolhimento do estudante e o trabalho com redução de danos, a escola também tem seu horário de funcionamento cuidadosamente planejado. Os horários de início e fim das aulas foram pensados para que o aluno que dorme em albergues consiga, ao final da aula, chegar a tempo nos albergues distribuídos pela cidade. Assim não precisam escolher: estudar ou dormir na rua?
      Com a ordem de fechamento, no mesmo ano alunos protestaram pedindo que a instituição permanecesse aberta e em 2015 a escola, juntamente com a procuradoria pública, abriu uma ação na justiça contra a Prefeitura de Porto Alegre e a ordem de fechamento.
      O poema mencionado no início desta reportagem é de Emerson, ex-aluno da T6 da Escola Porto Alegre. O poema foi escrito em uma carta que, junto a outras 17, foram anexadas à ação ainda em 2015. As cartas com tema comum, “qual a importância da EPA para sua formação no ensino fundamental?”, serviram de depoimento favorável ao mantimento da instituição.
      O juiz considerou procedente a solicitação da escola e decretou nos autos que não se mostra razoável desamparar uma população em face de outra, e ainda: “Importante mencionar que não se trata de afronta ao Princípio da Igualdade esse tratamento diferenciado, mas sim da necessidade de uma metodologia de ensino e acolhimento distintos das demais escolas públicas, eis que o público da EPA é integralmente composto de pessoas em situação de rua, e que vislumbram na EPA oportunidade de desenvolvimento individual, sendo respeitadas as limitações de cada aluno, suas dificuldades e histórias, em um ambiente livre de discriminações”.
      Porém, assim como na vida dos alunos, para a EPA as coisas não são tão simples. A Prefeitura não desistiu dos seus planos de fechar a instituição e vem recorrendo da decisão do juiz desde então. O último recurso aberto pela prefeitura será julgado ainda este mês, no dia 28 de novembro.
      Hoje, a Escola Porto Alegre representa muito mais que o aprendizado do ensino fundamental. Para os que a frequentam, o local é lugar de convivência, fraternidade, crescimento e pertencimento. A instituição assumiu para si o papel de família. Família que acolhe, que ama, respeita e aceita. No espaço os estudantes são vistos, ouvidos e tratados como iguais. Não são mais os mesmos excluídos da sociedade. Ali eles estão inclusos, fazem parte e constroem juntos uma realidade melhor. 
Reportagem Escola Porto Alegre (EPA)
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