M B's profile

Happy Face [Conto literário]

Conto completo no Wattpad: https://www.wattpad.com/story/149465857-happy-face-em-andamento

Novamente, eu me encontrava no terraço do St. Florence, com a incessante pulsação na minha têmpora que persistia há semanas.
Acendi o sétimo cigarro do dia e, enquanto tragava, minha mente mergulhou em reflexões sobre a morte.

Sim, sobre a morte.

Ela se tornara uma parte intrínseca da minha rotina, ocupando meus pensamentos a todo momento. Os dias se confundiam com as noites, e os plantões eram verdadeiramente exaustivos, levando enfermeiros e cirurgiões a sofrerem espasmos involuntários devido ao excesso de energético. Quando nem mais a cafeína surtia efeito, recorríamos a pequenos choques nos braços com o desfibrilador. Curiosamente, mal sentíamos a dor, mas ríamos. Ríamos por puro cansaço, com risos frágeis e desgastados.

Sem graça.

Minha relação com o trabalho se assemelhava a um daqueles casos tristes e clichês, onde um evento traumático abala sua vida e você se sente compelido, desesperadamente, a tentar aliviar a dor do mundo, e talvez, conseguir aliviar a sua própria, mesmo sabendo que se trata de uma missão quase impossível. Não me encontrava nesse trabalho por amor, jamais nutri tal sentimento por ele, e nunca o encarei com tal devoção. O que predominava em mim era o medo.
Um medo que se misturava com um profundo ressentimento. Mas medo de quê, afinal?

Assim, quando me perguntavam sobre minha motivação para me tornar cirurgião, eu sorria e adotava uma humildade que raramente se vê em cirurgiões, e respondia que havia sido por amor. Sempre pareceu ser a resposta mais simples, porque não há nada de romântico em ter apenas 10 anos e testemunhar sua mãe perder a vida pelas mãos de um profissional negligente. Foi assim que, para aprender a lidar com a dor, escolhi essa profissão.

Mortes todos os dias, por todos os lados.

De certa forma, uma forma gélida e apática, você se habitua. Torna-se natural.
Talvez minha escolha de profissão tenha sido para encontrar uma naturalidade na morte, afinal, quando algo se torna habitual, o sofrimento tende a ser reduzido.
Mas então, certo dia, um homem baixo e rechonchudo, vestindo um terno preto em uma manhã terrivelmente quente de domingo, se aproximou de mim na ala 7 e proferiu:

— Harry, posso dar um fim a tudo isso.

Ele parecia louco, não apenas em suas palavras, mas em sua totalidade.

— Eu posso provar.

Repetia essa ladainha toda vez que eu me aproximava.
Ele foi internado na ala 7 por alguns dias e, sempre que possível, compartilhava comigo relatos intrigantes sobre eventos históricos, alegando ter vivenciado momentos únicos ao longo dos séculos.

Ele me seguia, arrastando-se atrás de mim, com os ombros curvados, enquanto continuava tagarelando incessantemente, todas as vezes em que eu subia até o terraço do St. Florence para fumar.

Suas narrativas incluíam relatos sobre ter vivido guerras, não apenas uma, mas todas elas. Experiências de ter estado, e sentido, a angustia da morte, da perda, da espera, da exaustão, a morte da sanidade, da mente, do físico e do amor, não de uma ou duas, mas de todas as pessoas que haviam passado pela terra.

Afirmava ter sido testemunha de mortes históricas enigmáticas, como a de Tutancâmon, e até mesmo propunha teorias surpreendentes, sobre a morte de Alexandre, O Grande.
Eu frequentemente questionava suas histórias, contestando suas teorias, mas ele respondia com uma lógica e coesão notáveis. Sua vasta compreensão de medicina avançada tornava ainda mais intrigante a nossa conversa sobre a morte e suas intricadas nuances.

Esse homem desafiava minha compreensão, me levava a retornar incessantemente à ala 7, durante cada intervalo, em busca de respostas, na esperança de encontrar falhas e brechas em sua própria teia de mentiras. Mas, ele nunca titubeava, mantinha uma consistência surpreendente em tudo o que dizia. Sua falta de vaidade, arrogância ou autoafirmação, apesar de seu conhecimento extraordinário, só aumentava meu fascínio.

Enquanto fumava meu cigarro, no topo do edifício, o observava falar sem parar. Ele parecia ser um ninguém, tão insignificante em sua estatura, tão discreto em sua aparência e tão modesto em sua forma de se expressar. No entanto, o que mais me perturbou ao longo daquela semana, entre todas as outras questões que eu lhe dirigia, era uma pergunta que ecoava incessantemente em minha mente todas as vezes que ele abria a boca:
Quem era, afinal, aquele homem?

— Você sabe quem eu sou, Harry.

Ele dizia.

"Nunca lhe vi mais gordo." Eu respondia, já irritado.

— Uma vez visitei sua mãe. Neste mesmo hospital.

"Você está fora de si."

Ele sustentava as mais absurdas ideias, afirmando insistentemente, ser a própria morte.
Nunca considerei realmente escutá-lo, pois sua aura parecia constantemente melancólica. Talvez fosse simplesmente um indivíduo incrivelmente solitário e sobrecarregado por transtornos psicológicos, que vagava pelos diversos hospitais da cidade em busca de compaixão. Sua aparente insanidade talvez fosse, na verdade, uma busca infindável por atenção, uma tristeza interminável que ele acreditava merecer atenção.

Porém, em um dia como qualquer outro, enquanto me repetia a mesma ladainha, ele segurou meu braço com firmeza e me puxou para mais perto, com seu hálito nojento, carregado de cerveja barata. Ele me segurou com tanta firmeza que meu cigarro recém-aceso caiu no chão e me fez soltar um palavrão.

— Sala de cirurgia 12, ala 3, Dr. Terrence, cabelos loiros, estatura imponente, arrogante como qualquer outro cirurgião.

O ignorei por uns segundos, me desvencilhando de sua mão gorda e peluda e andei em direção ao portão do terraço para voltar ao trabalho, mas logo uma lembrança repentina me deteve.
Dr. Terrence. O "profissional" que, quando eu tinha apenas 10 anos, enviou minha mãe diretamente para o caixão, deixando-me à mercê de um tratamento negligente do governo e me lançando em um orfanato sujo, repleto de crianças sujas, onde eu constantemente me sentia igualmente sujo.

Sempre que ele tocava nesse maldito assunto, eu lhe virava as costas. Era evidente que ele havia trabalhado naquele hospital anos atrás, e sua amargura o levou a aplicar golpes em pessoas inocentes, aproveitando-se de sua vulnerabilidade. Mesmo assim, eu continuava voltando para a ala 7 para ouvi-lo tagarelar.

Ele tinha o dom de narrar histórias cativantes, histórias que eram ao mesmo tempo surreais, enigmáticas e, acima de tudo, mórbidas. Eu mal havia dormido por duas horas nos últimos três dias, sem tempo para me alimentar ou sequer para pensar, exceto pelos breves momentos em que eu me esgueirava até a ala 7, ouvindo o homem rechonchudo tagarelar incessantemente. Isso, em parte, era uma estratégia para evitar cair no sono durante os exaustivos plantões.

Ah, e como me arrependo por ser tão curioso.

Naquela terça-feira, uma chuva desabava como eu nunca havia testemunhado antes, uma tempestade torrencial que não se assemelhava a nenhuma das minhas memórias anteriores. A ala 7 encontrava-se completamente vazia, com exceção do homem rechonchudo, que, minuto a minuto, ajeitava sua gravata, me observando em absoluto silêncio.

"Você está quieto hoje", comentei.

Ele continuou encarando a TV a sua frente.

"Suas histórias malucas acabaram?"

Ele rompeu o silêncio rapidamente, não me deixando espaço para falar.
— Você costuma ler o jornal, Harry? — perguntou.

Respondi prontamente.
"Às vezes, quando tenho um tempo".

— Leia o de amanhã, neste mesmo horário.

"Para quê?"

Ele suspirou, como se estivesse carregando uma exaustão que perdurava por muito tempo.
— Apenas leia o jornal, Harry. — Foi tudo o que ele disse.

Deixei-o sozinho e aproveitei para cochilar por alguns minutos em uma das pequenas salas no fim do corredor leste antes de retornar ao trabalho.

No dia seguinte, após meu cigarro matinal, ao passar pela recepção, encontrei Karen. Normalmente, ela costumava me provocar quando eu passava por ali, mas desta vez estava diferente. Seu corpo estava rígido, tenso, e ela lia freneticamente uma página do jornal.
— Oi, gatona — cumprimentei.

"Xiu, Harry! Agora não!" Ela sussurrou.

As TVs nos corredores foram ligadas uma após a outra, e os enfermeiros passavam, parando por alguns segundos para assistir e trocar cochichos entre si. Decidi voltar até Karen e, de forma brusca, arranquei o jornal de suas mãos. Ela permaneceu imóvel, fixando o olhar na TV do outro lado do corredor. Segurando o jornal com firmeza, corri em direção à ala 7.
Atravessei a porta como um raio.
“Oi, Harry.” O homem barrigudo estava deitado em uma das macas, segurando o controle e navegando pelos canais da TV.

— O que é isso? — joguei o jornal em seu colo, e ele o pegou delicadamente, sem demonstrar surpresa.

Ele se inclinou misteriosamente e perguntou em um sussurro:
“O que você acha das minhas histórias agora?”

— Como isso é possível?! — perguntei, completamente perplexo.

Ele desligou a TV e se aproximou de mim com a tranquilidade que sempre mantinha.
“Basta me dizer se é isso que você deseja, e eu abandonarei meu trabalho. Estou exausto. Exausto há eras.”

— As coisas que você me contou... Se isso for real... — Comecei a balbuciar.

Ele segurou meu braço com firmeza, puxando-me para mais perto.
“Me escute, Harry. Você é um bom homem. Não posso mais continuar fazendo o que faço. O que você faria se estivesse no meu lugar?”

Não precisei pensar nem por um segundo antes de responder.
— É evidente que você sabe qual seria minha escolha, a escolha de qualquer pessoa sensata!

“Não. Não rotule isso como sensatez. E quanto às implicações? O que dizer da superpopulação, dos desafios econômicos, da pressão sobre os sistemas de saúde, Harry? E quanto ao aumento na desigualdade, no esgotamento exponencial de recursos, nos dilemas éticos e nas drásticas mudanças sociais?”

— Encontraremos uma solução, como sempre fazemos, sempre achamos uma saída! Não seja egoísta!

“A mortalidade é uma parte intrínseca da experiência humana, Harry. A sua ausência traria consigo uma série de dilemas complexos e desconhecidos. Não estamos preparados para isso. O que você chama de egoísmo, eu chamo de necessidade.”

Uma série de pontadas na minha têmpora vinha me afligindo há dias. O homem barrigudo e suado fez uma careta ao observar meu desconforto.

“Talvez seja hora de você descansar, Harry. Você, melhor do que ninguém, sabe que o sono é importante, principalmente para um profissional de saúde.”

Claramente, ele estava se referindo novamente ao Dr. Terrence, que havia literalmente cochilado durante a cirurgia da minha mãe.

— Calado, por favor! Você compreende a magnitude disso? Seria verdadeiramente incrível! Nenhuma vida perdida! Nunca mais! Isso está estampado em todos os jornais. É um marco histórico!

“Eu sei, Harry. Durante 24 horas, nenhum óbito em qualquer canto do mundo. Eu estive aqui, na ala 7, o tempo todo.”

— Você é realmente a personificação da morte.

“Vivo e real, na medida do aceitável.” Ele delineou um sorriso que era característico seu, depressivo e melancólico.

— Eu realmente preciso descansar um pouco, não estou me sentindo bem.

“Compreendo.”

No entanto, antes que eu pudesse pensar mais claramente, fui abruptamente chamado pelo interfone.

"Dr. Harry Fernsby, código T29.3. Repito, código T29.3, ala 12."

— Nem pense em sair daqui!

A morte se espreguiçou na cama e voltou a navegar pelos canais da TV.

"Harry?"

Parei subitamente à porta.
— O quê?

"É realmente isso que você deseja?"

Não precisei hesitar por um momento sequer. Aquilo que antes considerava um milagre, era agora meu desejo mais ardente.
— Sim, é exatamente o que desejo. Chega de mortes.

— Então, que assim seja, a partir deste momento.
Ele piscou para mim.

Corri até a sala principal e, ao chegar, me deparei com um cheiro forte, um odor insuportável de pele humana queimada. Fiquei paralisado, chocado e completamente horrorizado. Parei no saguão enquanto algumas macas eram trazidas pela porta de entrada. A cena era angustiante, carregada de sofrimento humano.

Naquela maldita terça-feira, uma semana após a chegada do misterioso homem barrigudo, um pai, uma mãe e três crianças, todas com menos de 10 anos, foram admitidos no hospital em estado crítico após um incêndio em casa. Mais uma vez, a vida, implacável e cruel, estava tecendo seu sombrio enredo.

"Chamem a unidade de queimados!"


Happy Face [Conto literário]
Published:

Owner

Happy Face [Conto literário]

Segundo conto de uma série literária antológica de drama e ficção científica, homenageando os clássicos da televisão como "Black Mirror" e "The T Read More

Published: