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PINOCCHIO POR GUILLERMO DEL TORO (2022)

PINOCCHIO POR GUILLERMO DEL TORO (2022)

Pinocchio (2022) é, acima de tudo, um lembrete de que mesmo histórias e personagens dos mais aclamados merecem abordagens autorais. Dirigido por Guillermo del Toro e Mark Gustafson, com roteiro escrito por Patrick McHale e Matthew Robbins; já havia sido anunciado há quase quinze anos, antes de sua efetiva concretização. Já idealizada como uma animação em stop-motion, encontrou nesse estilo uma ponte para uma visão mais calcada na realidade; ainda que preenchida por magia antiga. E, como em uma inferência natural, a realidade tende a pesar para o sombrio.
A sua visão não ganharia vida, porém, sem a contribuição do talentoso elenco, que conta com estrelas como Ewan McGregor (o narrador), David Dradley (Geppetto), Gregory Mann (Pinóquio), Christoph Waltz, Tilda Swinton e Cate Blanchett; sem deixarmos de lado a participação da parceria mais antiga de del Toro, Ron Perlman (um dos antagonistas, Podestà).

Enredo

A obra original, criada pelo italiano Carlo Collodi, já se inseria em uma atmosfera tida como “sombria” – anacronicamente, pois a noção de estranhamento é gerada pelas noções atuais de uma abordagem infantil. O pano de fundo do conto é a Itália do século XIX, que passava pelo processo de unificação de pequenos Estados conhecido como Risorgimento. Como em quaisquer movimentos sob esse viés, deu-se por guerras e revoluções, que ampliaram cenários já existentes de fome e pobreza. Mais do que o cenário político e social, a abordagem de Collodi colocava o protagonista em situações consideradas muito violentas, como pegando fogo enquanto dorme.

A trama desta adaptação, por sua vez, é ambientada em uma Itália fascista nos tempos que precediam a Segunda Guerra Mundial, em cuja atmosfera era quase palpável a confluência entre o terror de uma parcela da população e o ufanismo cego – o pleonasmo é intencional – de outros tantos. Em uma vila humilde – e que, exatamente por isso, ainda consegue viver um último respiro de liberdade –, Geppetto exerce altivamente as suas funções de marceneiro e de paternidade com igualdade. A mesma simetria se mostrou quando a vida inclinou-se para a dor, nesse movimento pendular inexorável, que nunca permite à espécie humana desfrutar de um único sentimento por uma longa duração.

Em uma vida categoricamente estagnada pelo luto, Geppetto se entrega à autodestruição física e emocional, e em uma noite ébria esculpe o garoto de madeira energicamente, motivado pelo ódio. Entenda-se, aqui, o ódio como uma força tão poderosa como o amor. Mesmo que o texto não nos diga isso, a intensidade desse sentimento no ato de esculpir nos faz sentir o peso da concepção de um ser vivo.

Como nas adaptações da Disney, a escultura ganha vida por uma fada, fato observado e repassado ao público pelo narrador da história, o Grilo. Tal qual a obra original, esta não se apropria da mentira como recorte dramático, alvo da lição de moral posterior. A partir da magia nascem as duas principais jornadas: a emocional e a material. Esta é um tanto mais direta em sua descrição, pois um ser imortal de madeira seria o soldado perfeito para um regime fascista. Concomitantemente, é uma “aberração” ideal para apresentações circenses – não assustadora o suficiente para espantar o público, mas o bastante para suscitar o encantamento e a curiosidade. Já a jornada emocional apoia-se na relação, em via única, de amor e ódio de criador para criação. No melhor estilo The Last of Us (2023) – que também se insere na temática do “pai solteiro”, a qual permeia uma grande parcela das narrativas de sucesso na atualidade –, aquela criança nunca substituirá a original, cosanguínea; e é exatamente esse o seu valor para conquistar um amor genuíno.

Criador e Criatura

Tal qual Geppetto e seu menino de madeira, Guillermo del Toro esculpiu essa obra com o coração. Qualquer espectador minimamente familiarizado com quaisquer trabalhos pretéritos do cineasta, nota a sua assinatura na adaptação do clássico. Um criador que pretenda produzir algo genuíno deve, como um maestro, saber reger o caos de forma que se transforme em harmonia e passe uma mensagem. Afinal, música é comunicação, tal qual o cinema. Uma orquestra só o é pelo número de musicistas e respectivos instrumentos presentes; da mesma forma que uma obra que intencione fugir da pasteurização do “cinema pipoca” só o é pelo delicado conjunto de experiências de vida e repertórios do autor. Repertórios, no plural, pois só do próprio cinema não se abstraem todas as referências necessárias, que devem ser buscadas em todos os campos do saber.
Faz-se mister essa colocação para que valorize a trajetória de del Toro enquanto cidadão mexicano – cuja cultura vê a morte de forma muito diferente; e cujo idioma, como qualquer outro, traz um ritmo de pensamento diferente do americano nativo – e como de família católica. Em sua criação pesou a influência de sua avó Josefina, católica conservadora, que apenas levava com muita seriedade a culpa cristã, mas a projetava no neto. Desde “exorcismos” a broncas ou uso de artefatos para liberar Guillermo da danação por pecados dos três tempos verbais, o futuro cineasta encontrou nessa rigorosa fé uma jaula invisível que ajudaria a moldar suas idiossincrasias. Não seria relevante para a sua profissão sem, no entanto, apaixonar-se por monstros desde sua experiência fílmica com Frankenstein (1931) – cuja identificação emocional pela obra de Mary Shelley só foi possível por enxergar-se na criatura incompreendida. Afinal, o controle ao qual a criatura era submetida poderia remeter ao que o jovem passava no lar.

A sua relação de cumplicidade com os monstros, dado esse entendimento da incompreensão de que eram vítimas, contrasta com o que realmente dá medo ao diretor: os grandes poderes estabelecidos, cujo uso não raramente se dá de forma irresponsável e antiética; seja no poder do monopólio da violência, político, religioso, ou de quaisquer outras forma de coerção em massa. Esse medo impregna o DNA de toda a filmografia de Guillermo: desde a grosseira arregimentação do governo ditatorial de Franco, na Espanha, como verdadeira vilã de O Labirinto do Fauno (2006); perpassando pela ganância e conquista sangrenta da espécie humana como motivação do antagonista de Hellboy II (2008), Príncipe Nuada. Para que não se excedam os exemplos, o auge de seu reconhecimento como cineasta, A Forma da Água (2017), baseia toda a sua trama na constatação de que um amor entre humana e criatura pode ser mais verdadeiro do que todas as relações quebradas entre a nossa espécie.

Legado

Pinocchio não veio para se configurar como exceção, pois em mundo com fadas que em nada se assemelham às da Disney, o que realmente gera desconforto no espectador é ver saudações fascistas na tela. Mais do que as saudações em si, a convicção nos rostos de adultos e crianças enquanto fazem. Roteiro e direção não se privam de apresentar em tela o ditador Benito Mussolini; e a sua representação talvez se mostre o elemento mais inovador da abordagem de del Toro para o clássico. Se o fascismo é apresentado de forma aterrorizante e incômoda, o filme não se apoia na figura individual do ditador para gerar medo ou uma sensação latente de um vilão maior do que os antagonistas menores, que compõem o quadro de ameaça descrito anteriormente. Pelo contrário, Mussolini é constantemente ridicularizado quando entra em cena; quebrando a já ultrapassada noção de uma história da humanidade contada unicamente por meio de figuras protagonistas, e não pelas populações enquanto protagonistas de si mesmas.

Não precisaria ir tão longe, pois se a macro-história nos conta a ascensão e queda do regime fascista, as infindáveis micro-histórias nos relatam abusos muito mais localizados e, paralelamente, muito mais frequentes. Não há nada mais aterrorizante do que uma ameaça que pode estar em um vizinho, em um funcionário de um estabelecimento que frequente, ou em uma simples pessoa de passagem pela rua. Esse papel é preenchido pelo Conde Volpe, antigo aristocrata que busca retomar a antiga glória – se não na aristocracia, na burguesia – graças ao caráter “exótico” do protagonista.

Todas essas noções de amaça, estranhamento e incômodo ganham, com o stop-motion, espaço para se efetivarem com mais facilidade. O que para uns é um empecilho à tentativa de soar com naturalidade; para outros tem nisso um valor atemporal. Um exemplo paralelo está na busca intencional do diretor/produtor Jon Favreau em utilizar cenas em stop-motion na série The Mandalorian (2019), visando alcançar movimentos estranhos de criaturas alienígenas. Aqui, a técnica favorece ainda mais o estranhamento nas figuras humanas, as quais temos a nós mesmos como comparação, gerando um choque maior do que em relação aos seres mágicos.

O legado de del Toro não se encerra em sua abordagem do fantástico macabro face ao verdadeiro macabro. Qualquer obra madura que discuta a jornada de uma figura vista como monstruosa chega à conclusão de que o verdadeiro monstro está no interior, como supracitado. Portanto, a consequente autoaceitação implica na necessidade de que a figura permaneça igual por fora, para que se entenda por dentro. Quando o desfecho se converte na “cura” da personagem, toda a jornada à qual acompanhamos perde o seu motivo de ser. Afinal, como saber se a autoaceitação é genuína, se a personagem conseguiu o que queria desde o início do enredo? Se há algo que sempre esteve fixo na mente do diretor é a necessidade de manutenção do status quo exterior/material das personagens, para aceitassem ou mudassem o que realmente importa; como ocorreu com Hellboy e Abe Sapien, com o Homem Anfíbio, e com o caçador de vampiros da Marvel.

Na adaptação para a Netflix, no entanto, a aceitação não precisa vir de Pinóquio. Em nenhum momento a sua trajetória foi desenhada para que se aceitasse como criatura mágica, ao contrário da versão concorrente. Aqui, é Geppetto que precisa aceitar o garoto como filho legítimo, uma vez que o sentimento não faz escolhas sob esse tipo de critério – sequer faz escolhas. Dada essa decisão, contemplamos um encerramento agridoce. Dependendo da visão, até mesmo doce, se levarmos em consideração toda a cultura dos mortos mexicana. Parte natural da vida ela é, e o menino de madeira eventualmente enterra o pai, com toda a delicadeza necessária para traduzir a passagem do tempo e o sentimento de saudade – sem nunca deixar de pontuar que a vida segue, e uma jornada só se inicia quando outra acaba.
PINOCCHIO POR GUILLERMO DEL TORO (2022)
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