CRÍTICA: OPPENHEIMER

Toda vez que me vejo pensando sobre o sucesso de Christopher Nolan – não em meio ao nicho dos cinéfilos, mas em relação ao grande público –, é inevitável a constatação de que se trata de um resultado natural da união de três elementos: talento técnico, abordagens para as grandes massas e roupagem intelectual/artística. Deixando de lado o Nolan criador e focando apenas no diretor, sublinha-se a sua paixão pelo cinema enquanto técnica; o que se prova pela delicada relação entre estar à frente no uso de novas tecnologias (como o caso do IMAX, desde 2008) e rejeitar outras enquanto muleta (o caso do CGI). Desde obras explicitamente mais desafiadoras, como TenetInterstellar e Inception, até a famosa trilogia d’O Cavaleiro das Trevas; fica explícita tal paixão ao constantemente criar cenas reais (como a explosão do Hospital, em uma das cenas mais icônicas de improviso da história do cinema, por parte de Heath Ledger) e desejar tratar de ciência com muito zelo pela verossimilhança. A união dessas características marcantes com o sucesso ao realizá-las, por si só, já justifica, ao mesmo tempo, o Nolan autoral e o Nolan talentoso. Complementares entre si, essas são, evidentemente, duas das principais características de um artista que se objetive marcante para a sua geração. 

Contudo, o que realmente trouxe o diretor ao mainstream, além do simples fato de estar à frente de um dos personagens mais icônicos da cultura pop; é a sua constante dúvida quanto à capacidade de o espectador compreender o que está sendo transmitido. O que resulta disso são roteiros cirúrgicos não em relação à duração ou abordagens gerais, mas em cada detalhe e linha de diálogo. Em todos os principais longas do cineasta há toda uma cadeia de personagens criados com o único propósito de explicar – literalmente – a trama para o protagonista e, consequentemente, para o expectador. O caso mais elucidativo a esse respeito configurar-se-ia, no ápice de seu vício como criador, no personagem de Robert Pattinson no terrível Tenet – beirando à caricatura.

Algumas constâncias são observáveis na estruturação narrativa de Nolan: o protagonista é majoritariamente dotado de reais intenções, com personalidade desenvolvida em maior ou menor grau, mas ao menos com reais intenções. Aqueles que o circundam, por sua vez, estão ali calculadamente para dar as mãos ao espectador, de forma que seja garantido, com margem mínima de erro, que as mensagens do filme sejam apreendidas. Não sendo a intenção esmiuçar caso a caso, acrescenta-se ao exemplo anterior o caso de Interstellar, que tem na personagem de Anne Hathaway o comprometimento com a missão, de forma a entregar ao público o desejo do protagonista em retornar à filha. O diálogo mais elucidativo a esse respeito está na cena em que a personagem explica como o amor é, quase matematicamente, uma força motriz que afeta os resultados das teorias com as quais estão lidando. Cabe à – excelente – atriz dar emoção a essas linhas de monólogo, quando o foco deveria ser precisamente a entrega subjetiva de emoção, para lidar com tal recorte abstrato. O objetivo final era, claro, preparar o terreno para o clímax do longa, em que Cooper (Matthew McConaughey) ajuda Murphy a salvar o mundo impulsionado pelo amor à filha. O pior do texto escrito para Hathaway não é sequer o fato de ser explícito, mas o seu aspecto frio. É como se alguém estivesse fazendo uma declaração de amor enquanto fizesse uma lista das principais vantagens financeiras de se dividir um apartamento com um companheiro.

Ora, cinema é imagem. Cinema é som. Nolan sabe disso, não há dúvidas. O uso exacerbado do texto visa trazer à experiência o expectador casual, que intercala a telona com a tela do celular ou com conversas paralelas, por exemplo. Outro elemento da relação do cineasta com o público está na entrega de pequenos prazeres: dar a entender que o expectador compreendeu algo “difícil”. Dois grandes exemplos estão nas conclusões de Inception e The Dark Knight Rises. No primeiro caso o longa se encerra com o peão sem parar de girar; mas, no último segundo, ameaçando oscilar. Ora, os totens indicavam se os personagens estavam ou não sonhando. Qual será o verdadeiro final dessa história? Nolan não se arriscou a deixar em aberto: o totem do protagonista era a sua aliança de casado. Em igual escala, o segundo exemplo nos deixa indignados: Batman morreu ou sobreviveu? Mal conseguimos sentir algum luto, as respostas são dadas: o piloto automático foi consertado. Não satisfeito com esse indício, a cena seguinte consiste no protagonista aparecendo literalmente aos olhos de Alfred (Michael Cane). Não houve nenhuma construção pretérita que preparasse o expectador para a suposição de que pudesse se tratar de uma alucinação do mordomo.

Diante de toda essa exposição, vejo em Oppenheimer a obra mais madura de toda a carreira de Christopher Nolan. Deixando de lado toda e qualquer pretensão de ser pioneiro em determinada abordagem científica na sétima arte, o cineasta volta a sua preocupação à narrativa e aos personagens que constituem as suas teias. No entanto, as características intrínsecas ao diretor permanecem – positivamente – presentes, de forma que não se possa falar que a sua autoralidade foi deixada de lado. Os diálogos explicativos estão presentes no filme, mas o seu uso é justificado em situações realmente expositivas (estamos falando de acadêmicos, cientistas, militantes, políticos). Divagações científicas estão presentes nas alucinações de Oppenheimer, espalhadas de forma equilibrada no decorrer das três horas; e o desejo de criar uma grande cena ganha o seu espaço na explosão atômica do teste Trinity. Dessa forma, Oppenheimer se mostrou a oportunidade perfeita para que quaisquer vícios se mostrassem virtudes, dados os seus usos justificados. Colocar dessa forma, porém, pode dar a entender que a história escolhida foi uma sorte de Nolan. Não é o caso. É perceptível a maturidade adquirida ao longo dos anos, como se cada longa anterior servisse apenas a esvaziar os sonhos de grandeza do cineasta, unicamente para que, desta vez, pudesse colocar os pés no chão e se importar em contar a história de um personagem.

Como em todas as suas experiências pretéritas, o diretor mais uma vez se beneficia de excelentes profissionais, a começar pelo gênio musical de Ludwig Göransson. Se John Williams e Hans Zimmer foram os grandes nomes de suas gerações – ainda que continuem na ativa –, agora é a vez do sueco construir a sua história. Assim como na parceria de Nolan e Zimmer, em Oppenheimer a trilha sonora também é utilizada de forma macro, trazendo grandiosidade na percepção de coisas simples. No entanto, os delicados aspectos micro ganham mais espaço do que em obras anteriores. Ainda no âmbito auditivo, a edição e mixagem de som (agora unificados em categoria única no Oscar) são primorosas, e conseguem roubar a cena em alguns momentos; contribuindo mais para a experiência do que a própria explosão, por exemplo. A fotografia, tanto nas cenas em preto e branco quanto em cores, é impecável – e não decepciona no formato IMAX (este, inclusive, ainda mais recomendado para a experiência sonora, neste caso).

Quanto ao elenco, não se pode diferenciar o seu talento dos respectivos ao restante da filmografia de Nolan – até porque muitos se repetem, como o próprio protagonista. O diferencial, no entanto, é o amparo dos atores e atrizes por um texto que respeita muito mais os personagens e as emoções humanas. Ao contrário de Dunkirk, Oppenheimer sabe inserir os personagens em um panorama maior sem deixar de lado o seu lado humano; não se trata de escolher um em detrimento do outro. Se Peaky Blinders foi o ponto alto da carreira de Cillian Murphy enquanto fama e construção de um personagem icônico para a cultura pop; Oppenheimer é o ponto alto no que diz respeito ao cerne do trabalho de atuação, naquele que é o papel de sua vida (ainda que igualmente sigma). O elenco é demasiadamente vasto, e não cabe a este texto citar todos, mas nomes como Matt Damon, Emily Blunt e Robert Downey Jr. trazem, junto ao texto, o apoio narrativo ao protagonista. Quanto ao último, talvez este seja o seu melhor trabalho como ator desde o seu retorno ao estrelato com Homem de Ferro. Blunt, apesar de representar o papel da esposa, traz camadas e um misto de emoções a Kitty. A personagem oscila constantemente entre ser gostada e desgostada, mas o ultimato é dado na brilhante cena de confrontamento no interrogatório – provando que basta colocar uma ou mais pessoas talentosas em uma sala fechada para criar uma grande cena de tensão e clímax. Damon, apesar do aspecto carrancudo de seu personagem, traz nos detalhes a humanização necessária para nos afeiçoarmos ao responsável por montar um projeto de destruição em massa. Afinal, não importa quem seja o indivíduo, basta entrarmos um pouco em sua cabeça para desenvolvermos empatia. Quanto à mensagem do filme, sobre responsabilidade e ética nos âmbitos científico e político; é consequência. A sua entrega se dá pela atuação de Murphy e pelos questionamentos da investigação armada por Strauss: não existe um personagem cujo objetivo é desenhar para nós que a obra deseja passar essa mensagem.Talvez nem seja o seu real objetivo: o juízo de valor é inevitável para nós.

Narrativas movem o mundo. Todos os dias levantamos de nossas camas devido a elas: a narrativa de estudar para nos tornarmos alguém, de trabalhar para proporcionar um futuro aos filhos; ou simplesmente de fazermos a diferença e eliminarmos o nosso senso de despropósito. A imagem em movimento (de forma passiva por parte do espectador, ao contrário dos videogames) diferencia o cinema das demais artes, é verdade; mas a narrativa é o que permeia todas. Músicas, pinturas, esculturas... Tudo é carregado de histórias, memórias... Não poderíamos deixar de esperar que a biografia do inventor da grande arma do século XX fosse um apanhado das pequenas e médias coisas: frustrações da juventude, sucessos e decepções amorosas, desejos carnais, idas e vindas da amizade, jogos de cintura políticos e a sensação de impotência frente ao massacre de um povo por um líder nazista. A explosão e a subsequente investigação política resultam de todo o resto, e não poderia ser diferente. Tudo o que já fizemos ou fizermos de mais relevante é ou será fruto de cada microexperiência que nos torna tão únicos e, ao mesmo tempo, tão semelhantes uns aos outros. Ao finalmente se dar conta dessa simplicidade, Nolan soube fazer uso de suas grandiosidades, ao lado de outros excelentes profissionais, para fazer da cinebiografia de um cientista uma obra memorável e o auge de sua carreira – se não comercial, como em 2008, ao menos artística. E, graças ao fenômeno "Barbenheimer", esse auge não passou despercebido; havendo vencedores de todos os lados. Estamos vivendo um momento histórico na sétima arte.

Por L. G. Unger
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