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Reportagem literatura de cordel

Rima, poesia e arte na corda bamba
 
A literatura de cordel está na vanguarda da arte popular do nordeste, mas qual é a sua origem e por que deve manter-se viva?
 
 
 
 
É quase impossível ser brasileiro e não ter assistido, ou ao menos ouvido falar, do filme O Auto da Compadecida, dirigido por Guel Arraes e lançado em 2000. A obra traz as aventuras de João Grilo e Chicó em Taperoá, no sertão paraibano.
 
Sucesso de público, o filme baseia-se numa peça de teatro, produzida pelo professor, escritor e dramaturgo paraibano Ariano Suassuna. Mas o que quase ninguém sabe é que a inspiração para a obra mais notória de Suassuna veio da literatura de cordel. Ele foi inspirado por dois textos de Leandro Gomes de Barros, o mais antigo cordelista brasileiro. O Dinheiro, também chamado de O testamento do cachorro, e O cavalo que defecava dinheiro foram os dois cordéis responsáveis por garantir uma parte da envolvente comédia de Suassuna, que mistura fé, resistência no sertão e humor. 
Não é de se espantar que cordéis serviram de inspiração para uma obra com as características de O Auto da Compadecida. Semelhante à obra de Suassuna, a literatura de cordel, desde quando começou a aparecer no Brasil, no século 17, foi usada principalmente para falar dos causos do dia-a-dia: humor, lamentação, romance, natureza, dentre outras tantas inspirações. E o próprio Ariano não se cansava em elogiar e defender a cultura popular como um objeto indispensável no desenvolvimento intelectual e histórico.
Além de ser a raiz da obra de Ariano Suassuna, a literatura de cordel também influenciou a telenovela Cordel Encantado, exibida pela TV Globo, em 2011. A narrativa também é vivenciada no sertão nordestino e pauta a vida na seca, religiosidade e cangaço.
 
As obras citadas são importantes para a valorização da história e realidade nordestinas. E ainda mais para a valorização da literatura de cordel, como analisa Demis Santana, cordelista há quase 30 anos, lembrando a época em que a novela era exibida: “Foi um tempo muito bom. Quando a novela estava passando, a literatura de cordel ganhou mais espaço nos eventos, mas acabou a novela, fechou-se o espaço”.
 
Demis lamenta o desinteresse em relação à arte popular e o pouco incentivo dado à cultura raiz do nordeste: “As pessoas não reconhecem o que é próximo de si como uma cultura importante. A não ser que isso apareça na televisão na internet, atraindo milhares de seguidores”. 
 
Embora o incentivo à cultura popular seja pequeno, o cordelista conta que fez diversas apresentações através de convite em universidades e instituições públicas, além de algumas em empresas do setor privado, como em uma das edições do Prêmio Braskem de Jornalismo. Ele também fez diversas participações em edições da Bienal do Livro em Alagoas.
Atualmente, no cenário nacional, o poeta e cordelista Bráulio Bessa alcançou destaque nacional após apresentações semanais no programa Encontro com Fátima Bernardes. Isso aconteceu depois que começou a divulgar vídeos através de redes sociais, com visualizações que ultrapassam 250 milhões. Ele tem dois livros publicados: Poesia com Rapadura (2017), e Poesia que Transforma (2018).
 
 
 
ORIGEM PORTUGUESA 
 
Os cordéis têm sua origem em Portugal. Eles foram criados por volta do século 16, depois que os relatos orais começaram a ser impressos. O nome cordel se dá em razão da forma como eram expostos à venda: pendurados em cordéis (varais ou barbantes). Quando chegou ao Brasil, entre os séculos 17 e 18, se popularizou com mais força no Nordeste do país, região que até hoje concentra o maior número de repentistas, como são chamados os cantadores de viola. Seu principal objeto narrativo à época eram as histórias folclóricas, que eram passadas de geração em geração.
 
O efeito rimado é muito comum em composições que falam do nordeste, ou que são produzidas aqui, seja nas canções, poemas, textos cordélicos e até em livros que fazem parte da história da literatura, como o livro Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. O livro pauta a seca, a pobreza, a falta de trabalho, entre outros. Temas que também estão presentes em muitos cordéis, servindo de inspiração para seus escritores.
 
É importante dizer que o cordel também influenciou na criação do repente e da embolada. São estilos de improviso feitos em dupla onde a rima geralmente predomina e o objetivo, na maioria das vezes, é desafiar o oponente. No caso de Caju e Castanha, que são uma dupla musical muito conhecida no Nordeste, é mais comum que abordem um tema para dividirem a evolução das rimas, sem competição.
 
Esses são assuntos que estimulam a estudante Giovanna Silva, graduanda do curso de História da Universidade Federal de Alagoas. “Sempre gostei muito de tudo o que é ligado ao estado. Li um cordel pela primeira vez ainda no ensino fundamental. Foi um presente de uma tia que foi ao Juazeiro do Norte. Ela sempre trazia uma lembrancinha de lá pra mim”, conta. Sobre o incentivo a esse tipo de leitura, Giovanna lamenta: “Acho que seria melhor para a própria cultura local se as escolas e prefeituras criassem projetos com esse tema. A única vez em que vi alguém lendo um cordel na escola foi no 3º ano do ensino médio, em um evento que falava das cidades alagoanas. Mas é muito raro”, diz. Lembrada da novela Cordel Encantado, ela fala de como se sentiu quando a obra foi exibida na TV: “Eu tinha de 11 pra 12 anos na época. Eu amava a novela, principalmente porque abordava essas questões ligadas ao sertão, à simplicidade. E aqui em Ibateguara [cidade alagoana situada na zona da mata], você precisava ver. Dava a hora da novela a rua ficava vazia”, ri, complementando: “E não tinha esse negócio de ser homem ou mulher, não, viu? Todo mundo assistia a novela dos cangaceiros, como eu ouvia muito na época”.
 
Ela não é a única a cultuar as riquezas locais. A estudante de culinária Alice Pinheiro, também tem uma paixão antiga por cordel. Ela conta que a avó trazia os livrinhos como lembrança de algumas viagens e recorda dos momentos em que seus avós colocavam Cajú e Castanha, grandes nomes do repente, para tocar: “Era muito engraçado. As rimas, a coisa toda. Eu cresci com isso em casa, então é quase inevitável você não se envolver com esse tipo de conteúdo, principalmente quando está ligado à sua cultura”, comenta. Diferente de Giovanna, Alice teve mais acesso a elementos ligados à cultura e folclore locais na escola. Ela recorda que, quando criança, desfilou vestida de Guerreiro, o famoso personagem do mais tradicional folguedo alagoano, em um desfile cívico de seu colégio. Alice complementa ligando seu amor à cultura como um tributo do incentivo que obteve dentro de casa: “Meu avô, na época do São João, fazia aquelas fogueiras enormes. Nossa! Era muito bom.”  
 
 
 
Arte popular em telas
 
Com o objetivo de manter a tradição cordélica e apresentá-la às crianças, a jornalista e cordelista Maryana Damasceno produziu um livro chamado O Marinheirinho do Pontal, que conta a história da menina Larissa, que descobre os segredos da Lagoa Mundaú e do Fandango, folguedo natalino, que faz parte da cultura popular alagoana. Ela conta que sua obra foi fruto de um edital do governo alagoano, através da editora Imprensa Oficial Graciliano Ramos, e celebra o incentivo: "Acho esse tipo de iniciativa superimportante pois, além de valorizar escritores e ilustradores alagoanos, também promove a cultura local para as crianças. Afinal, é assim que se transmite e mantém uma cultura, passando para as próximas gerações", declara.
Para trazer o cordel para os meios digitais, ela resolveu criar um espaço no Instagram para publicar algumas criações, além de fazer registros de outras características nordestinas, como culinária, turismo, entre outros. A página se chama Poesia e Cultura Nordestina, e também conta um pouco do processo de desenvolvimento de Maryana como cordelista. Ela começou a criar cordéis em um trabalho na faculdade e aproveitou a engenhosidade para manter a tradição. Inspiração artística não foi problema: "Eu, desde criança, sempre gostei muito de ler e escrever, e também fui bastante incentivada a isso".
 
E quando se fala em criação, é importante lembrar que, tradicionalmente, os folhetos de cordel sempre tiveram suas capas ilustradas por xilogravuras, obras criadas por talentosos e hábeis artistas visuais, que se dedicavam a traduzir, em uma imagem, o tema de cada história. Acredita-se que sua origem seja chinesa, onde se reproduzia uma imagem talhando uma base de madeira. Mas no Brasil é uma herança portuguesa e foi desenvolvida nos cordéis impressos. 
 
Como arte popular, a xilogravura não ficou para trás no desenvolvimento em meios digitais. Alguns artistas trabalham criando xilogravuras em plataformas digitais para impressão e venda de quadros, como o artista pernambucano Bacaro Borges. Ele cria imagens de elementos característicos do nordeste e transforma em belíssimos quadros que podem ser visitados através do seu perfil no Instagram.
 
 
Texto de Jefferson Vicente
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