Enne Flicts's profile

casas soterradas

Estou descendo a rua de bicicleta, é fim de tarde e logo ficaria noite não fosse a impressão de que o tempo está andando para trás. O barulho da cidade diminui aos poucos, é silencioso feito atirar pedras em lago. Pinga e ondula. Diante dos meus olhos, uma fileira de casas se combina e se descombina entre os mesmos moldes de telhas, paredes, portas e varandinhas. Suas cores, que parecem de açúcar, variam entre ciano, rosa-claro, violeta e amarelo. 

Algumas das casas, têm suas paredes de madeira revestidas por lazúli, às vezes apresentam portas alaranjadas e maçanetas sutilmente abrilhantadas por um tom de verde-limão fluorescente, que, como bumbum de vagalume, também é amarelo. Neste momento, não consigo distinguir se a rua é asfalto ou se a rua é terra, porque as casas, que com certeza eram de madeira, poderiam facilmente derreter que nem caramelo numa panela quente ou flutuar como nuvens de algodão doce. Elas se embaralham ao infinito e de modo algum, nunca mesmo, repetem as combinações.

Como normalmente acontece em descidas, os pedais e os pneus da bicicleta conversaram com a ladeira e descobriram sua pressa, que era confusa, porque continuamos descendo a rua inclinada em uma velocidade de rua plana. Janelas circulares preenchiam o topo das casas e eram divididas por uma fibra quase invisível que se ligava também aos triângulos dos telhados e aos retângulos das paredes. As cores, as formas e as linhas, levavam a uma distante e profunda direção que eu apenas tentava acompanhar. 

Uma substância líquida e translúcida envolve as casas, na primeira vez em que a vejo, ela sobe sorrateiramente as escadas da varandinha, cobre toda a extensão do chão e como se encontrasse uma barreira, para a poucos centímetros acima da soleira da porta. Na casa seguinte, o envelope d’água está a mais ou menos ¾ abaixo da maçaneta brilhante, a varanda inteira está submersa e tenho a breve impressão de que ao invés de subir, foi a casa quem desceu. Como se ouvisse minha dúvida, a próxima trouxe a confirmação e, de uma a outra, mergulharam pouco a pouco para dentro dos silenciosos blocos d’água. 

Continuei descendo a rua e assim como as casas, a água também foi aos poucos indo embora. Quando cheguei ao que parecia ser o último momento, aquilo que antes era um bloco, agora era apenas uma poça. A bicicleta finalmente parou e pude colocar os pés no chão empoeirado. Diante de mim encontrei no fim da rua, cavalos, carroças e pessoas, bancas de feira e fumaça de comidas, ocupando toda a encruzilhada. O cheiro era tão convidativo quanto as cores das saudosas casas desmaterializadas, mas antes que eu entrasse, uma mulher agarrada à mão de uma criança se aproximou de mim, segurou o meu pulso e suplicou angustiadamente “por favor, você saberia me dizer como sair daqui?”. Sua voz era úmida e mofada, de imediato eu não sabia o que lhe responder, até que de repente minha boca simplesmente proferiu: “desconhece a lenda dessa cidade? Essa é a Rua Infinita, é impossível sair daqui”. Apenas nesse instante pude perceber que os olhos da mulher formavam um profundo e extenso caracol e, a criança ao seu lado tinha o mesmo olhar, e, as pessoas que antes estavam de costas, se viraram e olharam para mim, da mesma forma, um redemoinho rodopiando ao infinito.
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