Gabrieli Schlickmann's profile

Crônica | O dia mais longo do ano

~história de quando eu (Gabrieli), João e Flávio cruzamos o Paraguai ilegalmente sem saber, contada sob meu olhar.

22 de março de 2021: o dia mais longo do ano

— vamos à Bolívia com o Flávio?
— vamos!

e foi assim, de repente, que mudamos nossa rota e nossos planos por alguém que conhecíamos há duas semanas. quando chegamos em Foz, não sabíamos o que nos esperava. 

planejávamos continuar o mochilão pelo Brasil, mas decidimos nos entregar ao que estávamos vivendo naquele momento. a ideia inicial era cruzar o Paraguai e chegar na Bolívia no dia seguinte. 

muito simples, né? não. 

nosso último dia de voluntariado - e de caipirinha grátis - no Tetris Hostel Container foi num domingo. segunda-feira levantamos cedinho e nos despedimos das pessoas que foram nossa família por 21 dias. já tínhamos horário marcado no laboratório, às 8h, para fazer o PCR. 

com os mochilões nas costas, atravessamos a cidade e pegamos o primeiro ônibus circular de Foz à Ciudad del Este. sentados nos bancos do fundo, chacoalhávamos mais cada vez que passávamos por um buraco novo. para compensar, o motorista colocou um sertanejo de fundo. se tínhamos até trilha sonora, o que poderia dar errado? 

enquanto passávamos pela Ponte da Amizade, achávamos que já sabíamos o caminho de cor, devido aos vários pulinhos que demos até o Paraguai nos dias anteriores. só achávamos mesmo.

mal chegamos na rodoviária e já estávamos dentro de outro ônibus. no Paraguai, você não precisa ir até às passagens porque elas vêm até você. e foi exatamente assim que aconteceu com a gente. em um minuto escutamos o motorista gritando "Asunción! Asunción! Asunción!" e no outro já estávamos a caminho da cidade.

sem passagens compradas, sem dinheiro local, sem internet, sem entender o idioma e sem comer desde o café da manhã (claro que nossas mães só souberam disso quando chegamos em casa). assim foram as seis horas de viagem.

chegamos em Asunción e fomos direto ao guichê comprar a passagem que nos levaria à Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, como havíamos planejado no hostel. mas… sabe aquela frase "duas cabeças pensam melhor que uma"? tá errada.

mesmo com três cabeças pensantes, o vendedor nos deu a notícia que nenhuma delas tinha pensado antes: viagens internacionais estavam canceladas devido à pandemia.  

é nesse momento, quando tudo dá errado, que você se pergunta: "por que eu tô fazendo isso?". e você não sabe a resposta. 

muitas vezes a gente realmente não sabe a resposta e tem vontade de desistir. sente falta do conforto e do falso controle sobre o que pode acontecer. foi assim pelas três horas seguintes. 

ansiedade. desespero. raiva. angústia. 

durante os perrengues, nos deparamos com alguns sentimentos que não estamos acostumados a lidar. a cada minuto sentíamos vontade de fugir... mas aonde ir quando se está a mais de 1,2 mil km de casa? 

sentíamos como se nada, absolutamente nada, pudesse dar certo. 

depois que o desespero passou um pouco, conseguimos (finalmente) trocar nossos dólares pela moeda local, o guarani. por sorte, havia um cambista na rodoviária.

nesse momento também começaram as discussões. qualquer coisa era motivo de explosão. ou você saía de perto, ou levava bomba. 

Flávio, o mais esperto, saía a cada dois minutos pra fumar um cigarro - ou cigarito, como ele falava. foram, pelo menos, uns cinco dentro de uma hora (é sério).

não aguentávamos mais olhar um para o outro, mas precisávamos fazer alguma coisa. compramos shipa - uma rosquinha paraguaia semelhante ao pão de queijo brasileiro - e um chip local. esse foi um graaande passo pra quem não conseguia sair do lugar.

em seguida, reservamos um Airbnb próximo à rodoviária. a ideia era passar a noite em Asunción, descansar e conversar sobre o dia seguinte. afinal, por que fazer hoje o que se pode fazer amanhã, não é mesmo? 

tudo parecia estar se encaixando até, depois mais um cigarro, Flávio voltar com a grande pergunta: "por que não pegamos o ônibus que chega mais próximo da fronteira e depois tentamos alguma carona?". e foi assim, de repente, que mudamos nossos planos novamente. 

o ônibus saía às 21h e tinha previsão de chegada em La Patria às 6h da manhã do dia seguinte. ainda não sabíamos muito sobre essa cidade, mas o vendedor nos afirmou que teria uma infraestrutura ótima. postos de gasolina, casas de câmbio, hospedagens e caronas. tudo que precisávamos ouvir pra voltar a respirar em paz. 

sentados no chão da rodoviária, junto às nossas mochilas, esperamos dar o horário. 

demorou. demorou muito. 

no ônibus sentamos nas últimas poltronas, ao lado de três rapazes venezuelanos que iam pra mesma cidade que nós. eles haviam saído do Brasil há poucos dias.  

não sabíamos o que era pior: a estrada ou o ônibus. foi assim, como se estivéssemos em cima de uma britadeira, que passamos as nove horas seguintes. 

chegamos em La Patria cedinho e tudo o que o vendedor tinha nos passado era… adivinhem? 

sim… era mentira. 

a cidade era um ponto no meio do nada. tinha uma rótula, dois postos de gasolina, várias galinhas soltas e três estradas que pareciam levar a lugar nenhum. 

fomos até o posto procurar carona. muitos caminhões que transportam gasolina passam por ali a caminho da Bolívia. 

no meio de tanto azar, encontramos Daniel querendo voltar à La Paz, sua cidade natal. ele precisava de mais pessoas para dividir os custos da carona que tinha conseguido com o dono do posto de gasolina. no total, foram 500 mil guaranis. 

como não vimos NENHUM caminhão indo até à fronteira, embarcamos na carroceria. já longe da cidade, percebemos que Flávio havia esquecido nossas shipas ao lado de uma calçada. não comíamos há mais de 24h.

depois de muito estresse, o vento gelado no rosto acalmava nossas angústias. naquele momento, o mundo parecia ser nosso. só nosso. 

a vegetação nos acompanhava ao longo da rodovia, pássaros voavam e VÁRIOS caminhões de gasolina nos ultrapassvam. sim. vários. mas nada nos abalava porque tudo estava dando certo. foram assim as três horas até a fronteira. estávamos finalmente chegando à Bolívia! 

avistávamos a aduana mais a frente e nossos corações batiam mais forte. o motorista do carro parou no primeiro posto de controle de imigração antes da fronteira. como de costume, o policial veio até nós e solicitou nossa documentação e nosso selo de entrada no país. 

— selo? que selo? —  respondíamos enquanto olhávamos desesperados uns para os outros. 

— aquele que vocês pegaram na aduana quando saíram do Brasil e entraram no Paraguai.

se vocês prestação no início do texto, sabem que aqui deu merd* novamente.

não. não tínhamos esse selo.

tentamos justificar ao policial o porquê dessa situação durante muuuuito tempo. sem sucesso. e não bastava não termos o selo, ele ainda suspeitou que uma identidade fosse falsa. 

apresentamos todos os documentos que tínhamos: identidades, passaportes e CNHs. sim, a esperança é a última que morre. 

Daniel também tentou ajudar. explicou que éramos mochileiros e precisávamos cruzar a fronteira.

mais uma vez nos perguntávamos: depois de tantos perrengues para chegar até ali, ainda teríamos que voltar? 

também não é assim. sempre tem uma saída… ela começa com "pro" e termina com "pina".

ouvíamos que os policiais da fronteira eram corruptos, mas nunca tínhamos visto isso pessoalmente. nossos amigos nos aconselharam ir com roupas velhas e falar que não tínhamos dinheiro. e foi isso que fizemos. 

— eu posso ajudar vocês… — ele disse enquanto olhava para nós. 

isso foi suficiente para entendermos o recado. 

Daniel tirou 70 mil guaranis e implorou para que pudéssemos passar. o policial guardou o dinheiro no bolso e permitiu que seguíssemos viagem. 

estávamos em choque. isso realmente havia acontecido. 

o motorista nos deixou em frente à aduana. estávamos só a alguns passos da Bolívia. 

exaustos, fomos até à imigração. faltava pouco agora. 

João foi o primeiro. informou ao agente da imigração que queríamos dar saída no país. mas para dar saída, você precisa dar entrada.

— selo, por favor —  o agente disse.

era o início de mais uma saga. 

apesar de quase não entendermos o que ele falava, a palavra "selo" se tornou entendível em todos os idiomas possíveis. já pensamos até em tatuá-la no braço, para nunca mais esquecê-la.

cruzamos o Paraguai inteiro ilegalmente sem nem mesmo saber disso.

você deve estar pensando: "nossa, como eles são tansos"... saiba que concordamos.

informamos ao policial que não tínhamos o selo. ele apontou o dedo para um papel colado na parede. precisávamos pagar uma multa de aproximadamente 250 guaranis para regularizar a nossa saída. só tínhamos 100 dólares em mãos, o resto estava tudo no cartão.

— por persona — complementou. 

era isso ou voltar ao Brasil. esse foi o grande surto coletivo, que se estendeu por cinco horas.

não tínhamos dinheiro suficiente para pagar a multa.

tentamos trocar os dólares com um cambista que estava na fronteira. ele propôs ao João que o acompanhasse até uma casa para fazer o câmbio. lógico que ele não foi (somos tansos, mas não tanto). 

depois de muito tempo pensando e indo de um lado para o outro, voltamos a falar com o agente da imigração, explicando sobre a situação. trocando ou não o dinheiro, ainda não teríamos o suficiente.

— eu vou ajudar vocês… — disse ele, fazendo com as mãos o sinal universal do dinheiro — … se vocês me ajudarem. 

Flávio, sem pensar duas vezes, ofereceu tudo o que tinha na carteira: CINCO dólares.

o agente, um pouco irritado, falou que não teria negócio. 

ficamos sem selo, sem dinheiro e sem esperança até...

João ofereceu um celular antigo, mas ele não aceitou. juntamos 30 dólares e colocamos em cima da bancada. ele pediu que escondêssemos o dinheiro dentro do passaporte, para que ninguém visse. 

com o selo de saída do Paraguai em mãos, só tínhamos que dar entrada na Bolívia. 

fomos até a salinha ao lado conversar com o agente boliviano. apresentamos todos os nossos documentos e os PCRs, mas ainda faltava preencher um formulário disponibilizado pelo governo do país.

já estávamos esgotados.

Daniel tentava traduzir o que não entendíamos, mesmo não sabendo português. a tradução era de espanhol para espanhol. não fazia sentido, mas nos mantinha mais calmos. 

diferente do agente paraguaio, o boliviano nos auxiliou em tudo: mostrou o formulário que deveria ser preenchido, explicou como preenchê-lo e ainda deu algumas dicas para evitarmos maiores problemas. mal sabia ele todos os que já havíamos enfrentado...

falando em problemas, agora temos um para vocês: Gabi, João e Flávio ficaram das 10h às 15h na imigração. se em uma hora Flávio fuma cinco cigarros quando está nervoso, em cinco horas quantos cigarros você acha que o Flávio fumou? (esperamos que você tenha respondido 25). 

durante todo esse tempo, Daniel conseguiu uma carona que nos levaria até Villamontes, a cidade mais próxima da fronteira.  

depois de muitos cigarros, surtos e discussões, conseguimos nosso ESPERADO selo de entrada. esse sim, está guardado até hoje.

descobrimos, na prática, que não precisamos do selo se ficarmos a uma distância de até 30km da fronteira com o Brasil (o que não era nosso caso).

não podemos voltar ao Paraguai durante um ano, ou teremos que pagar a multa que ficou para trás. e olha… a gente não quer ir isso não. 

dia 22 de março de 2021 durou dois dias e nos ensinou que se está ruim, ainda pode piorar. 

esperamos que se algum dia você for ao Paraguai ou à Bolívia, escute nossas vozes em sua cabeça dizendo: "NÃO ESQUEÇA O SELO!". 



Crônica | O dia mais longo do ano
Published:

Owner

Crônica | O dia mais longo do ano

Published:

Creative Fields