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Entrevista: Agnelo Figueiredo

Pragmático, talvez mesmo implacável, não esconde nem dissimula as suas opiniões. Fala preto no branco, sem medos. Após 25 anos de experiência nestas lides educacionais tem ideias bem claras e definidas. Defende, claramente, o modelo de autonomia pedagógica a todos os níveis. O diretor do Agrupamento das Escolas de Mangualde falou connosco acerca do estado da Educação em Portugal: passado, presente e futuro.
 
Qual é para si o problema central que durante a última década tem vindo a afetar a educação?
Durante anos e anos, a seguir à revolução, fomos construindo um edifício muito centrado em ideias românticas, de esquerda sobre a educação. Por outro lado, ao nível dos direitos dos trabalhadores, fomos construindo um edifício altamente protetor da função docente. Na última década temos vindo a assistir à desmontagem de todo esse edifício.
 
A “escola democrática” sofreu grandes alterações?
Claramente. Aquilo a que se chamava escola democrática não o era verdadeiramente, era uma democracia de professores, uma escola corporativa. Era democrática internamente. Tem-se tentado levar a escola mais para a comunidade. Isso vê-se com a criação de um Conselho Geral que já tem uma larga participação da comunidade. A escola deixou de ser tanto dos professores.
 
Exato. Os pais devem ter um papel cada vez mais significativo na promoção da qualidade do ensino.
Claramente. Embora a posição dos pais seja um pouco antagónica daquilo que é a letra da lei. A Lei vem conferindo aos pais maior capacidade de intervenção. Têm quatro membros no Conselho Geral, têm um grande peso na administração. A alienação dos pais em relação ao quotidiano escolar dos filhos é um fator determinante nos seus resultados escolares? Sim. O problema é que grande parte dos pais aliena a sua participação. Desinteressam-se, desligam-se da escola, abandonam os garotos. Mas é um afastamento que é inversamente proporcional ao ano de escolaridade. À medida que os alunos vão crescendo os pais vão-se desligando do seu percurso escolar.
 
Um estudo recente prova que existe uma correlação acentuada entre o nível de escolaridade dos pais e o sucesso académico dos alunos. Verifica-se?
Rigorosamente. Os pais mais escolarizados tendem, em casa, a estabelecer padrões de comportamento e metas para os filhos que os outros não fazem. Essa é a grande diferença.
 
Que medidas devem ser aplicadas de forma a tentar envolver os pais na escola?
Não sei… a lei tem vindo a fazer exatamente isso, dar capacidade de intervenção aos pais. Transformar isso em realidade é difícil. As escolas fazem as mais diversas iniciativas para cativar os pais, mas raramente são bem-sucedidas. Quer queiramos, quer não, a cultura não se muda por decreto. Temos uma cultura de afastamento que vai demorar gerações até que se altere. É um processo inter-geracional.
 
Os apoios materiais e económicos do Ministério da Educação e da Ciência (MEC) existem na prática?
Podemos colocar isso ao nível do ASE (Apoios Sociais Socioeconómicos) que tem a ver com o rendimento dos agregados familiares. Temos uma grande percentagem de alunos que são apoiados financeiramente com refeição, transporte, livros escolares, Temos outras medidas de incentivo aos bons resultados, as bolsas de mérito.
 
É legítima a existência do cheque-ensino exclusivamente aplicado no ensino privado?
Não sou contra o principio do cheque-ensino, mas… Das duas uma, ou o Estado avança com o cheque-ensino e o universaliza (e acaba com os contratos de associação das privadas) ou então não avança. Acho que as escolas não devem ser financiadas automaticamente, mas pelo número de alunos que têm! Públicas e privadas! As escolas que concorram entre si, é bom. Agora, não podemos ter um sistema misto, ambivalente. Ou estamos todos em igualdade de circunstâncias e todas as escolas trabalham para ter alunos porque o dinheiro vem com o aluno ou então abóboras. Voltemos ao Estado centralizado! As duas é que não!
 
Não será o cheque-ensino uma medida que serve para “disfarçar” o financiamento dos privados?
É uma questão que tem de se colocar. Da forma como está a ser implementado tem todos os condimentos para poder ser atacado por essa via. A medida em si é boa, a forma como está a ser implementada não é a mais correta. O MEC afirma que a implementação do cheque-ensino no âmbito da privada serve para promover um ensino de qualidade.
 
Estará a dizer, indiretamente, que a pública não tem qualidade?
O discurso oficial baseia-se numa coisa muito importante: a liberdade de escolha. É um valor supremo. Se não tenho dinheiro para escolher a escola privada e, o Estado me der um subsídio para o garoto tanto melhor. A ideia pura como ela é colocada é defensável, agora na prática… Pode trazer distorções. Pode encapotar o financiamento da escola privada.
 
Nota uma tendência dos pais privilegiar o ensino privado? E porquê? Os pais são burros?
Não! Se os pais procuram o ensino privado é porque este granjeou uma imagem de serenidade, disciplina, competência, ausência de conflitos, por oposição à escola pública. A pública tem hoje uma imagem muito degradada, onde há indivíduos com toxicodependência, com episódios de violência, indisciplina. Na privada não! São “santinhos”, aquilo lá é Deus com os anjos! E os pais querem proteger os seus filhos. Compete à escola pública virar isto do avesso.
 
De que forma se pode inverter esta lógica e melhorar a credibilidade do ensino público?
(sério) A escola pública precisa de ter maior autonomia, ser capaz de definir as suas regras internas, sem intromissão das direções gerais e das secretarias de estado e do raio que os parta! Se as escolas pudessem contratar os professores com base nos seus próprios critérios… A autonomia começa ao nível da seleção dos professores. Porque é que uma escola não pode contratar os professores que entende? Os professores são como os melões? Compramos o melão, abre-se e afinal não presta… isto não pode ser! A escola deve poder recrutar, e deve fazê-lo segundo os critérios, sem intromissão do Estado Central. E aqui é fundamental “partir a espinha” dos sindicatos.
 
Porquê?
Eles têm sido o maior obstáculo ao progresso da escola pública. Têm funcionado como forças de bloqueio, conservadoras no sentido da manutenção do status do antigamente. A autonomia de que fala está prevista no novo estatuto das escolas privadas.
 
Exatamente. Não deveria a escola pública ter direito a essa mesma autonomia?
(exaltado) Nem mais! Como é que querem criar igualdade de circunstâncias se a privada tem instrumentos de flexibilidade que a pública não tem? Não há nenhuma igualdade! O sistema está viciado à partida.
 
Esta autonomia não contribuirá para o fim definitivo do paralelismo pedagógico?
O paralelismo pedagógico não é um valor em si. Hoje, as escolas têm de trabalhar cada vez mais para atingir metas. O caminho que seguem para atingir as metas não é relevante. E verificam-se muito bem, temos um instrumento regulador, os exames.
 
Que métodos é que a escola pode utilizar para que os alunos possam atingir essas metas?
Isso não interessa nada a ninguém! Cada escola deveria poder definir os seus. Chegamos aos exames, os alunos tiveram uma nota da treta, alto! Aí sim, haveria lugar a intervenção, inspeção, podia haver sanções.
 
O custo das escolas privadas deveria ser suportado pelo Estado?
Defendo um sistema em que o dinheiro segue o aluno. Se financiar alunos em vez de financiar escolas acabo com o problema do financiamento. É um processo transparente e à prova de qualquer crítica. Haveria algumas exceções, teria de haver um esquema de discriminação positiva das pequenas escolas, nomeadamente do interior.
 
É legítimo que esse dinheiro siga para os privados?
Quem quer por os filhos a estudar em privadas está à partida ciente dos custos que isso acarreta. Não quero fazer qualquer tipo de distinção entre públicas e privadas. Não interessa aqui de quem é que é a iniciativa de criação da escola. A escola existe, tem as portas abertas e recebe alunos, o resto não nos interessa. O Estado não deve ter a pretensão de ter todas as suas escolas abertas, mesmo aquelas que estão ao lado de privadas que lhes roubam os alunos. E eu pergunto: se os pais os querem na privada a que propósito não os devemos deixar ir? Fechem a escola pública! Porque não? Qual é o problema? É preciso coragem para fazer isto? É, claro que é. Mas estar a duplicar despesas é que não! Mas é legítima a construção de colégios em locais nos quais as escolas públicas são mais do que suficientes? É o princípio constitucional da liberdade de iniciativa. Porque é que eu não posso abrir uma escola onde eu quiser? Isso é completamente absurdo. Se alguém quer arriscar e abrir uma escola num sitio onde já há dez, então que o faça, o risco é dele! Agora, não esteja é à espera que lhe vão pagar por isso! Mas não é isso que acontece… Porque temos uma perversão que são os contratos de associação. Acabem lá com a porcaria dos contratos. O Estado que financie cada aluno e está feito. Qual é o problema?
 
Como vê a atribuição de créditos horários a agrupamentos que obtenham melhores resultados através do chamado Indicador da Eficácia Comunicativa?
Muito interessante, é uma medida que estimula as escolas a trabalharem para metas muito objetivas. É inteligente por parte do governo.
 
Essas horas devem ser empregues nos agrupamentos com menos recursos e meios envolventes problemáticos e empobrecidos de forma a poder desenvolvê-los?
Não. Primeiro “puxa-se pelos cordelinhos” e depois o prémio. O contrário não, era desperdiçar dinheiro. Defendo sempre o contrário, premiar o esforço feito.
 
Uma das possibilidades de uso destas horas é o destacamento de professores de necessidades educativas especiais.
Não necessariamente. A escola tem liberdade para usar os créditos como entender.
 
Mas a falta de docentes especializados em educação especial nas escolas a nível nacional é efetiva.
Essa questão dos professores do ensino especial é muito sensível e que levaria a outra discussão. Qual? Não é um problema com a dimensão que lhe querem dar. Vou levantar um pouco mais o véu: temos um sobre diagnóstico de crianças com necessidades educativas especiais.
 
Será?
Sim. Muitas vezes, acabamos por atribuir o estatuto, com recurso à CIF (Classificação Internacional de Funcionalidade) a crianças que demonstram apenas dificuldades de aprendizagem, são dificuldades de outras causas que não handycaps físicos e psicológicos.
 
Mas para os verdadeiros casos existentes, os recentes cortes na contratação de docentes tiveram reflexo no apoio individualizado especializado dos alunos?
Eu só posso falar pela minha escola, os professores não estão sobrecarregados.
 
A Escola Secundária Felismina Alcântara alcançou este ano uma posição excecional no ranking.
Não foi só este ano.
 
Certo. Mas assistimos a uma passagem da posição 129ª para a 75ª. Qual é o segredo?
É o enfoque nos resultados. Conseguimos, ao nível do secundário, que os professores focalizem nos exames e que interiorizassem que devem trabalhar para metas e que devem incutir rotinas aos alunos em prestação de provas.
 
De que forma os resultados dos rankings – privadas no topo - refletem os resultados das políticas do Governo?
Não vejo isso assim. Faço uma crítica à partida: não devíamos ter rankings de públicas misturadas com privadas, é uma falácia. Não estão em igualdade de circunstâncias, não podem ser colocadas nas mesmas listas. É uma perversão. Não fico nada preocupado pelas privadas ficarem à nossa frente, é natural, têm tudo! Ver aí um instrumento da política governamental não vejo. Os media sempre vincularam o discurso de que as privadas é que é bom e as públicas estão cada vez mais longe. Não haviam de estar, coitadas? Não têm as mesmas armas. Não se pode comparar o que não é comparável. Serão uma arma contra as escolas públicas? Não, isso deve ser desmitificado. O ranking é muito importante para a escola pública poder melhorar. Isso permite-nos fazer benchmarking, compararmo-nos com as escolas da região, que têm características semelhantes às nossas. Não entram aqui privadas.
 
O contexto é importantíssimo. Que papel assume o meio escolar e familiar no contexto educacional atual?
Sem as famílias não fazemos nada. A escola sem a família pouco acrescenta. Com a implementação dos mega agrupamentos alterou-se ainda mais o contexto.
 
Quais os obstáculos de gestão que se colocam?
No nosso caso o processo foi muito turbulento e contestado. Criou feridas, que ainda se mantêm abertas. Tínhamos três escolas em Mangualde, que eram completamente diferentes. Por um decreto governamental unificamos tudo.
 
Este modelo de uma agregação vertical tem-se revelado, a curto prazo, vantajoso?
Sou suspeito porque sou diretor (ri-se), mas tenho dados reais para apresentar. Nós gastamos, atualmente, menos 4 milhões de euros por ano do que quando as escolas estavam sozinhas. Na componente financeira, um agrupamento tem vantagens que são iniludíveis. Basta pegar num papel e lápis e fazer contas!
 
O agrupamento tem alguns constrangimentos?
Tem. Ao nível da dimensão, do afastamento da direção relativamente à sala de aula. Tenho muita dificuldade em chegar à sala de aula.
 
Teve também consequências em relação ao nível de docentes contratados.
Claro.
 
É legítima a existência de uma prova de acesso à profissão de docente?
É um assunto ao qual não ligo nada. Não? Porquê? É uma coisa que não tem interesse nenhum. Que professores novos vão entrar no sistema? Resposta: nenhum! As escolas estão cheias, tem professores excedentários, o número de alunos está a diminuir, a malta não tem filhos. Para quê uma treta de uma prova de acesso à carreira? É uma pura perda de tempo.
 
Em relação ao burburinho da criação de uma ordem de professores. É legítima a sua existência?
É, acho que é. Era importante a existência de uma ordem deontológica de professores. Teria era de ser uma ordem que funcionase, não com os sindicatos, que é o que a associação pró-ordem faz, infelizmente. Uma ordem não é um sindicato! A ordem trata de questões do exercício da profissão, é uma instituição respeitada, com grandes pergaminhos que trata de problemas importantes da classe, que regula, inclusivamente, o acesso a essa classe. Regula o acesso à profissão. Mas se a ordem não atuasse como sindicato… Era interessante. Mas uma verdadeira ordem que definisse um estatuto profissional, o acesso à carreira.
 
A situação precária dos professores tem sido muito reivindicada. É verdade. A Greve continua a ser um instrumento de revindicação legítimo na luta dos professores?
É claro. A greve é sempre um instrumento de luta por melhores condições. O que posso contestar é os motivos pelos quais tem havido greve. Temos feito greves por razões absurdas. E o estado muitas das vezes não responde a estas manifestações. Claro. Nalguns casos não pode, e por uma razão muito simples, não há dinheiro!
 
Congelamentos de carreira, cortes salariais, grande percentagem de professores desempregados. O ambiente gerado diminui o empenho dos docentes na manutenção de um ensino de qualidade?
Claramente. A malta está triste, está agastada e desgastada. Mas isto tem uma cambiante muito interessante, tendemos sempre a descarregar as nossas frustrações naqueles que estão mais próximos. Quem acaba de levar pancada são as direções das escolas.
 
E os alunos não sentem essas repercussões?
Ainda não chegamos a isso. Os professores mantêm uma postura profissional, embora estejam reativos. Estão particularmente descrentes de mudanças. Quando o Conselho Pedagógico avança com uma medida que vai provocar melhorias, os professores reagem reativa e negativamente.
 
Vê por parte dos seus alunos desejo de continuar os estudos e apostar numa formação superior?
Humanísticos tendem todos a seguir cursos.
 
Mas tem-se notado um decréscimo do número de alunos que dão entrada nas universidades. Poderá o acesso ao ensino superior voltar a ser um privilégio?
Admito que sim. Acredito que por detrás disso esteja a crise financeira. Não é um problema de educação, mas das condições económicas das famílias.
 
E descrédito do ensino superior?
Também. Tem aumentado muito a percentagem de licenciados desempregados. Antigamente via-se um curso superior como hipótese de emprego, mas hoje é muito grande a fatia de licenciados que não consegue arranjar emprego compatível com as suas habilitações. Isso desvaloriza um curso superior.
 
O seu agrupamento dá resposta à necessidade de empregabilidade a nível de diferentes cursos profissionais?
Quando lançamos um curso profissional temos a preocupação de encontrar parceiros na comunidade que podem facultar a parte da aprendizagem em contexto real de trabalho. Estamos a criar oportunidades aos jovens de contactar com empresas. Entra sempre a capacidade individual de cada um. Quem é bom tem mais possibilidades de quem não é.
 
Em todo lado.
Exatamente. As empresas têm esse tipo de seleção. Não são como as escolas que têm de receber tudo.
 
A escola hoje continua a ser uma instituição que tenta a todo o custo a promoção de uma educação de qualidade e o sucesso escolar e educativo dos alunos?
É, claro, sem dúvida nenhuma. A escola procura em primeiro lugar resultados académicos. Mas aquilo que nos move é sobretudo criar cidadãos, homens e mulheres que amanhã sejam capazes de intervir na sociedade.
Entrevista: Agnelo Figueiredo
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Entrevista: Agnelo Figueiredo

Entrevista sobre o estado da educação em Portugal - diretor das Escolas de Mangualde, Engnheiro Agnelo Figueiredo

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