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CRÔNICA - Que Te Mate o Deserto

QUE TE MATE O DESERTO
Rafael.

Abri os olhos e fui recebido pelo açoite ofuscante do último sol da manhã.
O calor era intenso, quase violento. E o quase durou apenas alguns segundos. Deixou de ser quase quando meu cérebro confuso se alinhou às sensações do corpo desidratado.
O sol estava próximo de mim – bem mais próximo que de costume. Não havia sombra alguma por perto. Cerrei os olhos para enxergar através da nuvem densa da poeira que impregnava em minha pele tornando tudo ainda mais ardido. Senti falta daqueles segundos em que o calor era apenas quase violento. Não havia nada em volta. Absolutamente nada! Nada além do vazio. A imensidão do vazio cruel e ressecado que jazia solitário, amargurado, rabugento depois de ter dado fim a toda vida que outrora, em algum momento desafortunado, tenha cruzado seu caminho infeliz.
No lugar da saliva, havia areia nas frestas da minha boca – entre os lábios e a gengiva, debaixo da língua, em torno da garganta. Entre os meus dentes, a areia rangia, raspava, arranhava... Aliás, só havia areia. Aonde quer que fosse. Apenas areia...
Não fazia a mais vaga ideia de como havia chegado até ali. Ou melhor, fazia, sim – uma breve ideia. Limitada e costumeiramente rasa. Só que era áspero demais para admitir. Jamais, em nenhum momento dessa vida exageradamente longa, prestei a menor atenção nos caminhos que trilhei. Na certa, caminhei até lá. Meus pés doíam, eu devia ter andado muito sem prestar atenção. Mas por que aquele lugar? Qual era o propósito? Havia um propósito? Devia haver. Mas quem quer que tenha tentado me dizer, agora fazia parte da poeira.
Só era possível ouvir a respiração indiferente do vento ocupando toda a imensidão tomada por um alaranjado encardido; e sob o som incisivo e delicado do vento, apenas o som do meu fôlego se esvaindo. Àquela altura, nem mesmo meus pensamentos eram audíveis. Era só o som pesado do vento, insuficiente, sobre meu fôlego.
O sol cortejava meu caminhar desolado; paciente e irredutível, ele fitava meus passos como o olhar gigantesco de algum pássaro carniceiro cuja única esperança vinha da morte, e apenas acompanhava os últimos passos de sua refeição fedorenta. Notei que meu corpo curvado era a única projeção de sombra que havia. Uma sombra deformada e dispensável, já que não poderia me servir de abrigo e tampouco serviria de abrigo para mais ninguém. Inútil. Inútil e só. Único. O único detentor de tudo que me restava.
Quando caía a noite, todo o assédio do dia se convertia em friagem. O frio era debochado como um palhaço e a todo o momento se debruçava, inconveniente, sobre meus ombros e sussurrava em meus ouvidos a mesma incógnita sem graça: frio ou calor? E tocava minhas costelas com as pontas geladas dos dedos. Gargalhava sem parar. Não precisava de pausas para buscar o ar, apenas gargalhava abrindo o máximo que podia os lábios cianóticos que se revelavam sob a maquiagem craquelada e quase desbotada, e jogava todo o peso do corpo por cima do meu.
O palhaço voltava noite após noite. O nariz vermelho sempre escorrendo, os cabelos sem nenhum resquício de beleza, com a gargalhada infame e o peso morto do corpo me acuando contra o chão não importava o quanto eu fosse capaz de me encolher. Ele esteve lá por anos – todos os anos que me restaram – e quando partia pela manhã, o mesmo dia quente voltava do princípio. Quente, árduo e violento.
A cada dois passos eu me perguntava o motivo pelo qual continuava andando. Qual era o caminho? O que havia à frente? Havia aonde chegar? Porque todas as manhãs – todas as malditas manhãs – eu acordava no mesmo lugar do princípio. Escalpelado pelo sol que escalava impetuoso até o topo do céu, retalhado pela areia áspera, sozinho e completamente perdido. Qual era o propósito? Havia um propósito?
Certo dia, um dia qualquer jogado em algum canto da vida que findava, pude me reconhecer impresso no chão. O chão era apenas a superfície passiva onde repousavam os detritos de tudo aquilo que fora consumido pela inércia. O solo era morto, nada crescia. Nada se podia esperar. Até mesmo suas fissuras eram idênticas às que surgiam em meus calcanhares ressecados. E as pedras de barro seco esfarelavam tais como meu sorriso...
Aquele era o lugar da chegada. Não havia mais para onde seguir. O trajeto havia passado rápido como um sopro e simplesmente não fiz questão de me atentar ao caminho ou conduzir a direção. Aquele, definitivamente, era o lugar da chegada.
Por fim, eu era o rei caminhando por cada canto do meu reino erguido solenemente sobre a devoção cega e a adoração absoluta por minha vontade única e irrevogável. Tudo que existia ali fora conquistado por mim; e do mesmo modo, tudo que não existia mais. Reguei os frutos daquela terra com meu suor e meu sangue. Lutei com tudo que possuía e escrevi meu nome em cada farelo da realidade.
Diante da maior de todas as revelações – a principal resposta para a única pergunta a qual por tantas vezes me recusei a fazer – reparei em uma árvore solitária contrastando com a névoa avermelhada do horizonte. Ao me aproximar, a árvore gigantesca me ofereceu o conforto de sua sombra. Sentei-me no chão e recostei em seu tronco largo. As cascas se desprendiam com facilidade e grudavam no suor em minhas costas. Permaneci alguns minutos de olhos fechados, controlando a respiração estreita. A sombra, a valiosa sombra, era tudo o que a grande árvore poderia me oferecer. Olhei em direção à copa e os galhos quebradiços desenhavam milhares de caminhos acentuados que seguiam rumo ao clarão do céu, mas, por algum motivo, paravam abruptamente. Não havia nenhuma folha. Nem ao menos uma única folha seca caída ao redor. Como poderia haver? O que poderia haver por ali, tão vivo quanto minha condenação à minha vontade? Nem uma única gota de água ou seiva. A sombra, a última sombra, era tudo o que a grande árvore poderia me oferecer.

FIM
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