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A Bela Arquitetura em Hegel (2020)

A BELA ARQUITETURA EM HEGEL

Thomas Butler, 2.sem 2020



“Para Hegel, tudo que é real é cognoscível. O mundo é dilacerado entre dois extremos: de um lado, as coisas, do outro, a Ideia absoluta. Ao homem, cabe o trágico destino de ponte entre as coisas e o espiritual: ele é uma espécie de campo de batalha entre a Natureza e Deus.”
(Suassuna 2018, p.85-86)

Introdução

            A arquitetura é uma das Artes Particulares de Hegel. Ela se encontra na base deste sistema, sendo a ‘arte originária’ - a que dá início a interiorização do Espirito em direção ao Absoluto, ao conhecimento concreto em detrimento ao conhecimento abstrato da natureza, quando pela primeira vez um povo transcende as questões meramente exteriores, do cotidiano, e infunde Espirito na matéria bruta. A arquitetura, deste modo, é a mais ligada ao sensível, e, também, a mais ligada a ideia de utilidade de todas Artes - esta sempre terá uma destinação prática, seja abrigo, seja mirante, seja via etc. Todavia, na filosofia de Hegel, as Ideias, os Conceitos, como Arte e Belo são um ‘autofim’ – algo que é, como parte do Absoluto, considerado em si mesmo e para si mesmo, recusando a noção da utilidade. São totalidades universais que não tem outra finalidade que não a Religiosa: a da contemplação mesma das questões mais abrangentes sobre a existência humana. Logo, como compreender a Bela Arquitetura? Para tanto, examinaremos os conceitos de Belo, de Arte, para depois compreender a Arquitetura, e como essa pode ser e se torna Bela.

O Belo

            O Belo em Hegel está estritamente atrelado tanto a Ideia, ao Absoluto, quanto ao conceito de Verdade. Pode-se dizer que a beleza é a exteriorização sensível da Verdade. A Verdade, por sua vez, seria o Absoluto, A Ideia, considerada em si, enquanto universalidade, existindo somente na interioridade do humano. diz Hegel:

“Existe uma diferença entre a Verdade e a Beleza. A Verdade é a Ideia enquanto considerada em si mesma, em seu princípio geral e pensada como tal. Porque não é sob sua forma exterior e sensível que ela existe para a razão, mas em seu caráter de Ideia universal. Quando a Verdade aparece imediatamente à consciência na realidade exterior, e a Ideia permanece identificada e unida com sua aparência exterior, então a Ideia não é somente verdadeira, mas bela. A Beleza se define portanto como a manifestação sensível da Ideia.”
(1954, p.206 apud Suassuna 2018, p.83)
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Assim, compreendemos que o Belo é a Verdade representada através da matéria; é “o infinito representado através do finito”, “a Ideia representada através do sensível”. O que nos leva a questão: o que é a Ideia, o Absoluto, para Hegel? Afinal, sem essa compreensão tanto a Verdade quanto o Belo carecem de suas fundações.
O Absoluto para Hegel é um tipo de expressão do Divino, é a “(...) ultimate reality that we can come to know trough pure thought processes alone”[1] (Stanford 2020). Ou seja, é o que nos deparamos com através do Espírito – esse, a parte do ser humano que se ocupa com as questões universais. São as indagações mais abrangentemente ontológicas que o humano se depara quando se aventura nas entranhas de sua subjetividade, de sua interioridade: quem somos, por que somos, como somos etc. O Absoluto é o tudo em si e para si: é “O todo formado pelo conceito, [que] agarra conceitualmente [be-greift] tudo em si” (Han 2019, p.77). Assim considerado, existe apenas como universalidade, como Ideia; não possui manifestação sensível e só é passível de ser acessado através da razão interiorizada, da subjetividade contemplativa: do Espírito. Assim, percebe-se que a Verdade é o Absoluto universal tornado conceito particularizado. Diz Hegel:

“(...) só a Verdade é conceituável, pois só ela se fundamenta no conceito absoluto, ou, mais exatamente, na Ideia. Ora, sendo a Beleza um certo modo de exteriorização e representação da Verdade, por todas as suas faces ela se oferece ao pensamento conceitual (...)”
(Hegel 1954, p.206 apud Suassuna2018, p.83)

            Belo, então, seria aquilo que consegue expressar no sensível parte dessa totalidade do Absoluto – parte essa que denominamos Verdade - e,  em uma forma, uma exterioridade, na qual se é  possível perceber o Espírito, para depois retorna-lo à razão, à interioridade, à subjetividade, aonde pode ser novamente apreendido em sua Forma plena; na interioridade, a Forma sensível não constringe a Ideia, que lá pode tomar sua magnitude completa. Afirma Han a respeito desse fluxo entre totalidade e unidade para Hegel: “No conceito, tudo está in-cluso, in-begriffen. Belo é essa reunião, essa congregação no um que permite “centenas de singularidades retornar de sua dispersão para se concentrarem em uma expressão e uma figura” (2019, p.77). Belo é aquilo que consegue paradoxalmente imbuir o ilimitado no limitado, sendo passível que, ao apreciá-lo, que do limitado se extraia o ilimitado – pois ali está exteriorizada o Espirito. O belo é, na linguagem de Hegel, em si e para si: não se submete a nenhuma funcionalidade:

“O belo é um autofim. (...) Não se submete a um para que, nenhuma conexão de uso externa a ele, pois está ali sua própria vontade. Repousa em si. Para Hegel, nenhum objeto de uso, nenhum objeto de consumo, nenhuma mercadoria, seriam belos. Falta-lhes a independência interior, a liberdade que diferencia o belo”
(Han 2019, p.82).

O Belo é uma ponte material ao imaterial: É a qualificação de algo sensível com essa qualidade transcendental de nos permitir extrair as mais profundas reflexões sobre o existir da mais bruta matéria, que intrinsicamente nada teria de Espiritual – mas, que é infundida com o Espírito pelo Homem, pelo artista que encontra a forma adequada à expor a Verdade, que permite à intuição extrai-la do sensível. Às Formas que o belo pode tomar, denominamos de arte.

Arte

            Na teoria de Hegel, teríamos três etapas para o Absoluto: A arte, a religião, e a filosofia. A arte é o primeiro intermediador da subjetividade humana em direção ao Absoluto – cabe a ela espiritualizar o sensível. Não é, todavia, sua morada definitiva, que seria a religião, na qual o Absoluto é mediado pela representação interior e já pode dispensar a forma sensível como invólucro. A esta cabe a “captação interior daquilo que a arte faz contemplar como objeto exterior” (Suassuna 2018, p.85). A arte ainda sofre da ‘dor de parir o infinito no finito’; já na reflexão religiosa, a forma não tem constrições, não tem limites, não é física, e assim tem a possibilidade de se apresentar em toda sua magnanimidade, se mostrar em toda sua universalidade, e por isso, em sua particularidade. A filosofia, seria como uma “síntese entre as duas” (Suassuna 2018, p.85).
            A arte por excelência expõe no sensível conteúdo religioso, pois este seria o Espiritual. Ela se hierarquiza da forma mais ligada à matéria, ao sensível, à menos: É classificada, em ordem, em arquitetura, escultura, pintura, música e poesia. É uma progressão em direção ao mais adequado ao Espírito, ao Absoluto, e por isso, é também uma progressão em direção às artes mais ligadas aos sentidos teóricos – visão e audição -, que permitem “o interior dos objetos vir a ser para o interior mesmo” (Hegel 2017, p.76). Ou seja, são aqueles sentidos que, para Hegel, conseguem adequadamente transmitir o conteúdo Espiritual, que não são excessivamente dependes e ligados ao material – como o tato, com o qual “o indivíduo singular e sensível, relaciona-se meramente com o singular e sensível e com a sua gravidade, dureza (...) mas a obra de arte não é algo meramente sensível, e sim o espírito como ele aparece no sensível” (Hegel 2017, p.75). É somente com a audição e visão que conseguimos nos distanciar do sensível pelo qual o espírito nos é apresentado, e compreendê-lo como tal.
            Paralelamente, de acordo com Hegel, o início da arte se dá quando um povo se distancia das questões mais materiais, conseguindo desenvolver práticas para além do quotidiano, da sobrevivência, e encontra na matéria “um ponto de referência para seu próprio espírito”: o sujeito começa a moldar o e exterior em sua própria imagem, sendo assim “uma atividade que define ela mesma o espírito como um sujeito em busca de si mesmo” (Tolle 2017, p.27). Logo, representa o momento em que o humano primeiramente consegue fazer com que das informações naturais, não humanas ou humanizadas, brutas, fossem sorvidas à consciência conteúdo espiritual; e que esse processo fosse exposto na matéria – interioriza-se o externo e volta-se a exterioriza-lo: o exterior é interiorizado e depois o interior é novamente exteriorizado, imbuindo matéria bruta de Espírito. Pois representar artisticamente é um ato que requer que o humano extraia, dentre a infinidade de estímulos que a natureza provém, aquilo que é Verdade, e o represente à sua maneira, efetivamente humanizando o natural na Forma, na matéria, fazendo surgir, inauguralmente, do fato natural indiferente um produto do Espírito. Diz Hegel:

“(...) a arte arranca à aparência e a ilusão inerentes a este mundo mau e passageiro daquele verdadeiro Conteúdo dos fenômenos e lhe imprime uma efetividade superior, nascida do espírito. Longe de ser, portanto, mera aparência, deve-se atribuir aos fenômenos da arte a realidade superior e a existência verdadeira, que não se pode atribuir à efetividade cotidiana (...)”
(Hegel 2001, p.33)

Arte, então, é a maneira primeva que o humano encontrou para do natural extrair a Verdade, e no sensível exteriorizar essa Verdade. Com isso, distingue-se a Ideia do Ideal: “A ideia é a própria realidade, a essência profunda da realidade”, o “Ideal, que é a Beleza, [é] a Verdade exteriorizada no sensível e no concreto” (Suassuna 2017, p.83). Esse Ideal, “justamente por ser manifestação do infinito na finitude e na rigidez da forma sensível, dirige-se a intuição” (Tolle 2017, p. 27). Mas, Hegel nos alerta que não é qualquer expressão no sensível que é arte, que nos comunica o Forma o Absoluto na matéria: “A beleza como obra do espírito [Geistwerk] (...) necessita inclusive para os seus inícios já de uma técnica formada, de múltiplas tentativas e de exercício” (Hegel 2017, p.67). Não é o singelo rabisco da criança, o esboço das proporções do homem, a pedra rudemente talhada, que transmitirá o belo, a Verdade no sensível, ou seja: que será arte. Essa, logo, compreende uma maneira de se vislumbrar as questões do Espírito através da intuição, desde que cumprida a necessidade de uma adequação da forma ao conteúdo.
Como observa-se, a arte, assim como o Belo, em Hegel é algo conceituável. Racionalista, insere a arte e o belo dentro do Sistema  das Artes Particulares, o qual é radicalmente submetido a intenção originária do filósofo de responder a seguinte questão: “qual é a necessidade que moveu o espírito a produzir obras de arte e como cada uma das artes é uma consequência específica desta necessidade” (Tolle 2017, p.17)? Vemos então que a preocupação é compreender a arte enquanto si e para si; tomada como conceito, como parte das buscas do espírito. Não intenta, sua filosofia, predizer o porvir; a questão é compreender as transformações do Espírito ao longo do tempo, como esse chega e se manifesta no seu presente.
            Para circunscrever arte como conceito, Hegel radicalmente rejeita qualquer finalidade utilitária que a Arte possa ter – se porventura o tiver, é, no máximo, aspecto secundário. Explica Hegel:
           
“(...) a arte se particulariza da seguinte maneira. A totalidade simples é o ideal, o belo. Num primeiro momento é um sujeito espiritual em sua autonomia infinita inteiramente por si mesmo. Ele, enquanto sujeito, deve ter diante de si uma natureza inorgânica, tal como cada homem, cada ser vivo, tem diante de si uma natureza inorgânica. Esta natureza inorgânica não é apenas aquela com a qual o ideal se relaciona de modo prático, mas também de modo teórico. É um entorno, uma envoltura exterior; para que seja digno do ideal, deve ser belo”
(Hegel in Caderno de Aschenberg apud Tolle 2017, p.46)

            Ou seja, a Arte existe como parte do Absoluto, sendo sujeito em si e para si, considerado autonomamente, considerada em seu princípio geral e pensada como tal. Mas, toma forma com o sensível, e portanto, “A arte procura pois, de acordo com Hegel, inserir o espírito naquilo que é material” (Suassuna 2018, p. 174).
            Para tornar-se arte particular ela “deixa sair o seu Conteúdo na existência [Dasein] efetiva para uma existência [Existenz] determinada, torna-se uma arte particular, e por conseguinte apenas agora podemos falar de uma arte real e, com isso, do início efetivo da arte” (Hegel 2017, p.87). Ela transita de sua existência como totalidade, parte do absoluto, e imbui-se no sensível, na particularidade. Mas, justamente por essa sua natureza ontológica, possui um caráter ambivalente: “(...) a Arte é “uma forma mais direta de atingir a Ideia (...). Mais direta, porém mais grosseira e simples, inferior, portanto, à religião e a Filosofia, porque, ao contrário delas, tem “que pedir formas à Natureza (...)” (Suassuna 2018, p.173).Ou seja, ela “(...) nos abre os horizontes das manifestações dessas potências universais, tornando-as aparentes e sensíveis...” (Hegel in Esthétique, p.42 apud Suassuna 2017, p.173), mas, constringida ao sensível é impossibilitada de revela-las em toda sua potência, infinita enquanto Ideia, enquanto parte do Absoluto.
Mas não é porque ela é ‘limitada’ que tem seu valor reduzido ou deixa de ter um papel importante na filosofia hegeliana ou para a condição do homem:  “O conflito inerente à condição humana [de ponte entre o sensível e o espiritual], só no Absoluto se resolve; mas a Beleza é uma das armas mais poderosas de que o homem dispõe para superar a angústia e o seu destino trágico” (Suassuna 2018, p.86).
Com isso, vejamos então como Hegel entende a Arquitetura, a primeira de suas artes particulares, aquela que dá início à espiritualização do homem, e assim, edifica essa nossa condição de trágica ponte entre o efêmero e o que sempre será.

Arquitetura

            A arquitetura, para Hegel, constitui o início da arte. Se utiliza da matéria bruta como ela se apresenta no exterior, na qual o espírito dá o primeiro passo em direção ao sensível, configurando-a como “forma onde conhece a si mesmo” (Tolle 2017, p.42). O humano, antes puramente exterioridade, principia sua jornada a se tornar um ser espiritual, interiorizado e subjetivo, através da arquitetura. Essa todavia, é demasiada ligada ao sensível, à matéria bruta, e, por conseguinte, o “conceito fundamental da arquitetura autêntica consiste no fato de que o significado espiritual não se encontra exclusivamente na construção mesma, que desse modo se torna um símbolo autônomo do interior, mas que este significado, inversamente, já adquiriu fora da arquitetura a sua existência livre” (Hegel 2017, p.139). Na ‘arquitetura autêntica’, o Espírito não está exclusivamente na sua expressão sensível, como nas outras artes, mas também pode estar dentro de seu invólucro. Como visto pela adjetivação de ‘autêntica’, não é toda arquitetura que cumprirá esse conceito fundamental. As que o fizerem, fazem quando acolhem em si obras de arte de “maior alcance” (Hegel 2017, p.139) Espiritual – como a escultura e a pintura -, quando o homem acessa sua subjetividade, seu Espírito, no espaço definido pela arquitetura, e quando seu invólucro, o edifício propriamente falando, torna-se símbolo desta migração do Espírito ao interior. Todavia, em cada momento do Espírito desta arte, ela assume diferentes características dessa que Hegel chama de autêntica. E mesmo assim, quando na sua expressão de maior alcance Espiritual, ainda é limitada. 
Percebe-se o porquê de sua conceituação como ‘princípio’ da Arte: A arquitetura, é uma arte do exterior para o exterior, e “pela limitação da matéria sensível que escolheu para si, ela é simbólica segundo a sua natureza” (Tolle 2017, p.33-34). Ou seja, como símbolo, apresenta pelo menos um ponto de tangência entre conteúdo e forma – não se limitando, necessariamente, a um. Por causa dessa limitação, será apenas aparentada ao espírito; a forma arquitetônica é inábil para encontrar uma Forma adequada ao conteúdo Espiritual, que ainda não lhe é inteiramente consciente.
            Essa surge, para o pensador, no dito da Torre de Babel; seria a primeira vez que uma construção não existiria por seu aspecto puramente funcional – e.g. um teto para proteção contra o sol, paredes para proteção contra vento e frio, piso para regularizar o chão etc. -, representaria, como se fosse, um empreendimento espiritual: “O surgimento da arquitetura está associado a uma mudança radical na organização dos povos, pois o elemento espiritual sai da mera inconsciência abstrata do sujeito mergulhado na natureza e realiza o primeiro passo em direção ao conhecimento concreto” (Tolle 2017, p.48).  O conhecimento concreto, Absoluto, principia, tendo uma representação exteriorizada, que atesta ao fato; a comunidade, como coletivo, agora não mais lida apenas com o imediato, com a sobrevivência e o cotidiano, mas tem acesso à subjetividade, e à meios de a exteriorizar. 
               Um monumento, a Torre representa o deslocamento de massas humanas a uma nova localidade, e um esforço coletivo para que se construa algo de tamanhas dimensões. Mais do que uma edificação com fins práticos, esse edifício é primeiramente simbólico; a utilidade que houver é secundária: a Torre de Babel se “torna um referencial externo, a manifestação exterior do vínculo” desta comunidade que a construiu, algo que , segundo Hegel, “só pode ser explicado pelo sagrado” (Tolle 2017, p.43). O coletivo foi movido pelo Espírito. Vê-se, então, na gênese da arquitetura, a gênese também disso que será característico da arte, que é a representação do Absoluto, das buscas do Espírito nos confins de sua interioridade, na exterioridade – o Belo. Não só pedra empilhada: um monumento ao Divino.
Para que se transcenda a mera construção e venha à tona a arquitetura, há necessidade da rejeição da funcionalidade, da submissão à uma finalidade mundana, e da transformação desta em autofim - assim como são o Belo e a Arte - a despeito do fato que

“(...)a Arquitetura, além de procurar, como as outras Artes, a criação da Beleza, possui sempre um objetivo de destinação prática e dependente, mais do que qualquer outra, de condições alheias à vontade livre do artista, pois a obra a fazer, o prédio a construir, deverá servir de moradia, de templo, de fábrica, etc., de modo que nela, até as condições sociais da comunidade interferem, de maneira mais direta e forte, no trabalho de criação.”
(Suassuna 2018, p.241)

Essa manobra de “(...) rejeição do princípio utilitário tem a função de submeter a arquitetura ao conceito de arte, segundo qual cada um dos gêneros deve ter existência autônoma” (Tolle 2017, p.44). Essa contradição de termos leva a uma das aparentes dificuldades de caracterizar a arquitetura como Bela, como parte das Artes. Como vimos antes, a arquitetura é limitada por sua natureza simbólica, mas, atinge seu potencial quando abriga em si o Espírito e se torna símbolo autônomo deste. Mas, são em diferentes momentos do Espírito humano, ou seja, em diferentes épocas, que a arquitetura exterioriza em si e para si partes desse potencial. Nos é instrutivo, então, compreender a divisão que Hegel faz da arquitetura em Simbólica, Clássica e Romântica – esta última momento em que a arquitetura finalmente expressa seu conceito fundamental.
A Arquitetura Simbólica ou Oriental – isto pois é a dos egípcios, persas, indianos...- é a primogênita – como visto com a Torre de Babel. Ela, assim como as artes simbólicas num geral expõem “apenas significados abstratos, ainda não essencialmente individualizados em si mesmos [na sich selbst], cuja configuração imediatamente ligada a eles é tanto adequada quanto inadequada” (Hegel in Cursos de Estética II, p.37 apud Tolle 2017, p.47). Das três categorias que a arquitetura recebe de Hegel, a arquitetura simbólica é a que mais incorpora essa inadequação para exteriorizar o Absoluto. Ou seja, ela exterioriza excessivamente significados ainda muito ligados ao natural e a natureza, que Hegel chama de conhecimento abstrato, em oposição aos conhecimentos do Espírito, do Absoluto, que ele chama de conhecimento concreto. Explica o filósofo:

“Os significados, a saber, que são tomados como conteúdo, permanecem, como no simbólico no geral, por assim dizer, representações universais informes, abstrações elementares da vida natural, diversamente particularizadas e embaralhadas, misturadas com pensamentos da efetividade espiritual, sem ser reunidos idealmente [ideel] como momento de um sujeito. Esta ausência de vínculo os torna extremamente múltiplos e mutáveis, e a finalidade da arquitetura consiste apenas em tornar visível para a intuição ora este, ora aquele lado, simbolizá-los e permitir que se tornem representáveis por meio do trabalho humano.”
(Hegel 2017, p.101)

Assim, vê-se que por simbólico, entende-se que essa arquitetura incorpora a natureza mesma do símbolo, de poder expor uma multiplicidade de significados, e, assim, seu conteúdo ser pouco determinado à intuição; esta que ora extrai uma parte do significado Espiritual, ora outro diferente, a partir da mesma exterioridade sensível – a Forma aqui não é plenamente adequada ao conteúdo. Logo, compreendemos por que a “(...) ausência de aspiração pelo belo que caracteriza a arquitetura oriental (...)” (Tolle 2017, p.54). Por ainda estarem carentes de estarem propriamente ligadas à concepção de Verdade, às Ideias do Absoluto com sua Forma abstrata e simbólica, das quais a intuição não consegue imediatamente nem plenamente extrair o conteúdo Espiritual à subjetividade, não é possível, para Hegel, definir a arquitetura Oriental, aquela que ele chama de Simbólica, como Bela: o conteúdo religioso aqui não possui Forma adequada. Todavia, para o mérito desse momento do espírito, Hegel compreende-a como uma expressão autônoma:

“(...) uma obra arquitetônica que deve manifestar um significado universal para os outros não existe para nenhuma outra finalidade senão a de expressar em si mesma este superior, e por conseguinte é um símbolo autônomo de um pensamento pura e simplesmente essencial, válido universalmente, numa linguagem existente por causa de si mesma, mesmo que seja inaudível para os espíritos.”
(Hegel 2017, p.99-100)

Mesmo que a multiplicidade de significados possíveis prejudique que o absoluto seja plenamente e claramente exposto no sensível, a arquitetura simbólica é dotada desse intuito de representar o infinito no finito, e tem isso como sua finalidade – não qualquer possível uso funcional da construção mesma. Ela almeja comunicar a Verdade, mesmo que não de forma plenamente adequada. Logo, é autônoma.
Ao passar de simbólica à clássica, a arquitetura sofre uma mudança, pois agora intenciona à beleza do ideal clássico. Para tanto, ela serve ao absoluto: “(...)agora [na arquitetura clássica] o espiritual, seja por meio da arte, seja em existência viva imediata, existe por si mesmo isoladamente da construção, e a arquitetura se coloca a serviço deste espiritual, que constitui o significado autêntico e a finalidade determinante” (Hegel in Cursos de Estética III, p.64 apud Tolle 2017, p.52). Para a arquitetura ser bela ela perde sua autonomia como arte, tendo o Espírito como inquilino de seu interior: “(...) o espiritual seja por meio da arte, seja em existência viva imediata, existe por si mesmo isoladamente da construção (...)” (Hegel 2017, p.139). Lá, o Absoluto está presente em outras formas, sendo estas a iconografia religiosa, o culto, ou o humano e sua subjetividade; ou seja, a construção é apenas invólucro e o Espírito migra ao seu interior. Diferentemente da arquitetura simbólica, da clássica podemos dizer que é bela. Isso se dá pois, apesar desse caráter ‘utilitário’, este não é sua única finalidade: “(...) como arte, porém, ela possui a determinação do aprazimento [Gefälligkeit]” (Hegel in Caderno de Hotho, p.222 apud Tolle 2017, p.54).
Todavia, “(...) a arquitetura perder nesse estágio a sua autonomia como arte” (Tolle 2017, p.52) no processo de se tornar servil. Assim como sua peça fundamental, a coluna, que “(...) não tem nenhuma outra determinação a não ser a de sustentar (...)” na qual “(...) importa sobretudo que a coluna conserve em relação à carga que repousa sobre ela o aspecto de conformidade a fins e, por isso, não seja nem forte demais, nem fraca demais, nem apareça comprimida uma junto à outra, nem se erga tão alto e leve nas alturas, como se apenas jogasse cmo a sua carga” (Hegel 2017, p.146),  a arquitetura clássica se atém demasiadamente ao conhecimento abstrato; ou seja, sua Forma expressa muito mais os fatos naturais – a gravidade, os momentos fletores, a integridade da estrutura etc... -, e o desafio de os vencer: na exteriorização da coluna,  “(...) é expresso o princípio correto da coluna” (Hegel 2017, p.155), não  conhecimento concreto, Espiritual, do Absoluto. Mas isto também tem seu benefício: “Os gregos caracterizavam-se pela conformidade a fins correntes, por completude artística na nobreza, na simplicidade, bem como na ornamentação leve de suas decorações” (Hegel 2017, p.168). Por essa nobreza, “poderíamos dizer sem receio que o homem encontra sua justa medida na arquitetura clássica” (Tolle 2017, p.55).
Todavia, como Hegel reitera múltiplas vezes, o conteúdo religioso é o conteúdo próprio da arte. Na arquitetura, é a romântica, a catedral gótica, que alcança essa vocação em sua mais possível plenitude. Esta pode ser entendida como se fosse uma ‘síntese’ da arquitetura oriental e a clássica – apesar de Hegel insistir que não se trata de uma “(...) fusão das Formas arquitetônicas do oriental e do grego” (Hegel 2017, p.172): assume para seus fins a autonomia que se expressa no monumento oriental e a servilidade que se expressa no templo grego (Tolle 2017, p.56). Ela encontra em si a Forma adequada para o conteúdo Espiritual, religioso, sendo, diferentemente das outras arquiteturas, voltada ao interior: a coluna que separa planos na clássica é integrada na parede em um invólucro total, que se curva abobadado em direção aos céus, e a luminosidade é reduzida. São templos do recolhimento em si, da interiorização, do espírito, os quais suas Formas, seus invólucros, simbolizam esse recolhimento em si. Seu interior também recebe o olhar o artista, tanto quanto o exterior, pois nele se realiza tanto o culto, quanto outras diversas atividades da comunidade – casamento, batismo etc., quando as artes de maior alcance estão lá presentes e integradas ao templo. Dentro da catedral gótica, ilumina não a luz abstrata, mas a luz concreta; a arquitetura aqui encontra sua mais elevada expressão do belo, pois interior e exterior simbolizam ao humano a elevação sobre tudo que é singular e finito, em direção à totalidade e ao infinito – ao Absoluto: a catedral gótica

“(...) tem e indica uma finalidade determinada, mas se eleva em sua grandiosidade e repouso sublime acima do que é meramente conforme a fins, em direção a infinitude em si mesma. (...) Do outro lado, a particularização [Partikularization] superior, dispersão e diversidade ganham justamente aqui primeiro o espaço mais pleno, sem todavia deixar a totalidade se decompor em meras particularidades [Besonderheiten] e singularidades casuais.”
(Hegel 2017, p.172-173)

Temos a mais sincrônica expressão de forma e conteúdo dos momentos da arquitetura, na qual a intuição claramente apreende o Espírito, dirigindo o humano a interioridade, ao infinito Absoluto; seja ao participar das atividades dentro do templo ou as outras artes mais aptas ao Espirito, quando este está em seu interior, seja contemplando a bela forma sensível do templo, a qual transmite à intuição a Verdade. Na arquitetura romântica é possível simultaneamente apreciar “(...) o que é peculiarmente conforme a fins ao culto cristão, bem como a concordância da configuração arquitetônica com o espírito interior do cristianismo” (Hegel 2017, p.172). Somos capazes de absorver, através dessa exteriorização sensível, o universal e o particular, o infinito e o finito; vemos o objeto artístico como um fim em si e para si; vemos o infinito no finito, que nos retorna ao infinito; vemos a adequação da Forma ao Conteúdo; o Ideal; a Verdade. Vemos o Belo.  

Conclusão

Para Hegel, a arquitetura sempre será ‘defasada’ por sua limitação enquanto aparentada à matéria. Não encontraremos, por exemplo, arquitetura que borra os limites entre a arte e a filosofia, como o faz a poesia de Goethe. Pelo mesmo motivo ela não consegue revelar o Absoluto em sua mais potente Forma: o finito constringe o infinito. Mas não é por isso que ela deixa de ser importante ou te ter um lugar essencial na filosofia de Hegel. A religião é o meio excelente a entrar em contato com a interioridade, com o Espirito, o Absoluto; e, principalmente, a religião católica, se distingue por ser a religião da subjetividade. Apesar de ser possível entrar em contemplação religiosa como individualidade, o templo é o local por excelência onde isso ocorre. E o templo é arquitetura. Pode-se dizer que a Arte da início a religião, já que a primeira dá início a subjetivação do Homem, e que, quando a religião já estabelece sua superioridade como forma de contemplar o Absoluto, é a arte, por meio da arquitetura que a catalisa: ela provém o espaço, mesmo que esse seja apenas adorno, onde a comunidade coletivamente atinge sua mais alta vocação do Espirito; provém o local onde o Homem consegue, mesmo que momentaneamente, se reconciliar com o  absoluto. o Belo templo, a Bela arquitetura, é morada sensível do Espírito. Fica então a inquietação. Se, para Hegel, é próprio da Filosofia ser reescrita de modo a compreender o momento atual do Espírito e suas manifestações, o que, hoje, seria a Bela arquitetura? Tem o templo, a catedral, ainda a primazia de morada material do Espírito? Ou terá esse migrado à outro invólucro? É possível compreender a Beleza como exteriorização da Verdade nesse mundo pós-moderno, que tem uma tendência a rejeitar o Conceito, a Ideia? É o belo ainda o Belo? A Bela arquitetura certamente ainda existe; como compreendê-la parece uma tarefa digna às inquietações do Espírito.


Bibliografia

HAN, Byung-Chul. A salvação do belo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019
HEGEL, G.W.F. A Arquitetura. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2017.
HEGEL, G.W.F. Cursos de Estética I. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001.
STANFORD Encyclopedia of Philosophy. George Wilhelm Friedrich Hegel. Stanford, 9 de janeiro de 2020. Disponível em: < https://plato.stanford.edu/entries/hegel/>. Acesso em 16     de janeiro de 2021.
SUASSUNA, Ariano. Iniciação à Estética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018.
TOLLE, Oliver. Apresentação. In: HEGEL, G.W.F. A Arquitetura. São Paulo: Editora da        Universidade de São Paulo, 2017. p.13-59.


[1] “(...) realidade última que podemos conhecer através dos processos do pensamento” – tradução minha.
A Bela Arquitetura em Hegel (2020)
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A Bela Arquitetura em Hegel (2020)

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