Eu diria que o momento em que comecei a desenhar certo por linhas tortas, ou ao menos que o caminho tortuoso parecia chegar em algum lugar, se deu quando descobri duas coisas, talvez até no mesmo dia, já não me recordo. A primeira foi a existência de canetas nanquim descartáveis com as quais eu poderia replicar estéticas de - lusofonias à parte - “pen & ink” de maneira mais casual e barata; a segunda coisa, ou coisas, foram as gravuras Gustave Doré (1832-83) e suas dinâmicas e dramáticas representações de demônios, monstros e visões fantásticas.
Até aquele ponto eu basicamente copiava a lápis minhas figuras, personagens e animais favoritos, tentando replicar com a maior fidelidade possível suas características e proporções num processo de risca, apaga e borra que deixava as pontas dos meus dedos tão acinzentadas quando o grafite na ponta do lápis. As canetas nanquim, em suas marcações permanentes, me compeliram a ser mais espontâneo e igualmente não rabiscar de maneira tão efêmero como eu fazia nas margens, paginas, e seções inteiras dos cadernos escolares.
Todavia, um princípio da minha produção artística como um todo já estava ali posto e certamente é um dos principais motivos do apelo que a gravura tem pra mim. Como supostamente disse um contemporâneo de Doré, Degas: “Se eu pudesse ter seguido meu próprio caminho, teria me confinado ao preto e branco”. Para bem ou para mal, não há jovem contemporâneo que não siga seu próprio caminho.
O efeito que as gravuras de Doré tiveram em mim fora tal qual o que as de Dürer (1471-1528) tiveram a história da arte, instigando-me, mais do que qualquer coisa, a não reter-me somente a um elemento, destacado, flutuante em um fundo branco, mas a compor minhas próprias cenas e utilizar de todo espaço do quadro para expor narrativas e efeitos estéticos que dialogam representação e imaginação.
Confesso, há certo engessamento nesses primeiros desenhos, talvez pela maneira como tomei de alicerce a perspectiva, composição geométrica e uso dos traços para dispor profundidade ao invés de dinamismo. Algo que, outra confissão, ainda não consegui livrar-me completamente por tendência a querer mapear o caminho ao invés de deixar-me levar, à la “dérive” de Debord.
É válido ressaltar, se já não ficou claro, que o que chamo aqui de gravura, não diz respeito ao ato de gravar, na madeira, no metal, na pedra ou no material que for, senão o papel. Quando falo gravura, me refiro a ao estilo advindo de técnicas de gravação nos citados materiais, tal qual como técnicas gráficas que se aplicam a estes, como a hachura ou cross-hatching, que possuem uma inquestionável qualidade escultural que lhes difere de outras formas desenho, mesmo que em nenhum dos casos expostos aqui eu tenha me atrevido a produzir tais imagens num senso mais tradicional.
Todavia uma das maiores contribuições técnicas que praticar a hachura trouxe a minha produção fora o domínio da luz e fabricação dos contrastes entre claros e escuros, muito pela maneira cumulativa em que a técnica opera, o sobrepor de camadas de linhas sobre camadas de linhas, tendo de trabalhar com apenas dois pigmentos para criar contraste, textura, profundidade e forma. Os trabalhos de Edward Hopper e Käthe Kollwitz, cada qual em seu estilo bastante distinto, mas bastante inclinado ao contraste marcado entre o preto e o branco, vem a cabeça como fortes referências atualmente.
Em algum momento as serializações que tanto associam a gravura ao mercado editorial desde os primórdios de ambos começaram a me interessar pela faceta similar a reprodutibilidade técnica que é a base destas. Creio que tenha alguma relação ao certo teor de colecionismo que esse replicar semelhantes tem, e as subsequentes listagens e catalogações que tem apelo a mim. Concidentemente ou não, hachura é, afinal de contas, um acumulo, por vezes bastante organizado, de riscos e linhas.
Talvez haja também uma sequela das pseudo-serializações que eu já fazia quando mero infante inocente. Dias inteiros trançando e copiando as ilustrações e fotos em minhas enciclopédias de zoologia.
Quando pequeno, eu queria ser biólogo, depois zoólogo e mais tarde documentarista da vida selvagem. Não sei dizer com qual dessas áreas ainda tenho chances de me embrenhar algum dia, meu interesse não diminuiu por nenhuma delas, mas creio que me aventurar no âmbito das ilustrações científicas talvez seja mais plausível. É curioso o paradoxo entre a dificuldade em abdicar de um realismo estético tendo como objeto artístico meus mais fantasiados interesses infantis.
Ainda que muitas das bases que estabeleci com a gravura venham a informar estéticas gerais da minha produção e a maneira como eu penso uma imagem atualmente, raríssimas são as ocasiões em que rabisco de maneira mais tradicional hoje em dia, repetitividade tracejando e tracejando por horas a fio como fazia. Inclusive, a essa alturas qualquer resquício de tinta em minha velhas canetas devem ter secado.
Desenhos e pinturas digitais tomam a maior parte das minhas horas criando imagens atualmente, ainda assim, gravuras, gravuristas e toda a maneira de se pensar tais imagens, claramente permanecem como minhas principais influências artísticas. Me refiro às incríveis imagens produzidas por Rembrandt, Elizabeth Catlett, Renina Katz, Evandro Carlos Jardim, Anne Desmet e minhas favoritas, os amaldiçoados pesadelos de Goya. Tanto me inspirando quanto me instigando a aprender todas as xilo, lito, calco e variantes e começar a de fato gravar imagens.