Victor Zanini's profile

GRAVURAS, HACHURAS E OUTRAS TORTURAS

Capa e contracapa de um livro ilustrado, ainda não publicado. Estilo e personagens baseados nas criações de Pieter Bruegel, o Velho.
Eu diria que o momento em que comecei a desenhar certo por linhas tortas, ou ao menos que o caminho tortuoso parecia chegar em algum lugar, se deu quando descobri duas coisas, talvez até no mesmo dia, já não me recordo. A primeira foi a existência de canetas nanquim descartáveis com as quais eu poderia replicar estéticas de - lusofonias à parte - “pen & ink” de maneira mais casual e barata; a segunda coisa, ou coisas, foram as gravuras Gustave Doré (1832-83) e suas dinâmicas e dramáticas representações de demônios, monstros e visões fantásticas.
As duas imagens foram sobrepostas e editados digitalmente para compor a capa no cabeçalho da página.
Até aquele ponto eu basicamente copiava a lápis minhas figuras, personagens e animais favoritos, tentando replicar com a maior fidelidade possível suas características e proporções num processo de risca, apaga e borra que deixava as pontas dos meus dedos tão acinzentadas quando o grafite na ponta do lápis. As canetas nanquim, em suas marcações permanentes, me compeliram a ser mais espontâneo e igualmente não rabiscar de maneira tão efêmero como eu fazia nas margens, paginas, e seções inteiras dos cadernos escolares.
Alguns desenhos mais antigos num estilo que, mais do que hachura, se resume ao simples acumulo de riscos sem muita atenção a forma das linhas.
Todavia, um princípio da minha produção artística como um todo já estava ali posto e certamente é um dos principais motivos do apelo que a gravura tem pra mim. Como supostamente disse um contemporâneo de Doré, Degas: “Se eu pudesse ter seguido meu próprio caminho, teria me confinado ao preto e branco”. Para bem ou para mal, não há jovem contemporâneo que não siga seu próprio caminho.
A imagem na esquerda surgiu de uma passagem de 'O Desvio' ou 'La Déviation', de Jean “Moebius” Giraud (1973), onde um gigante desnudo vislumbra o horizonte em plano visto de costas. O senso de grandeza, ou pequeneza, advindo das gerações de estruturas arquitetônicas, tem base nos retratos de paisagem de David Roberts,  principalmente suas visões do Egito. A imagem na direita foi Inspirada pela experiência de ler 'Do Inferno', história em quadrinhos de Alan Moore e Eddie Campbell, narrando e ficcionalizado, muito do que eu tentei fazer na imagem, o contexto dos assassinatos que culminaram na criação do Jack o Estripador, em 1888.
​​​​​​​O efeito que as gravuras de Doré tiveram em mim fora tal qual o que as de Dürer (1471-1528) tiveram a história da arte, instigando-me, mais do que qualquer coisa, a não reter-me somente a um elemento, destacado, flutuante em um fundo branco, mas a compor minhas próprias cenas e utilizar de todo espaço do quadro para expor narrativas e efeitos estéticos que dialogam representação e imaginação.
Há uma serie de empecilhos em se trabalhar desta maneira, mas para quadros mais elaborados eu sempre costumo compor e calcular tudo preliminarmente via software antes de por o desenho final do papel. Hoje, todavia, é raro que eu me dedique tanto a essa etapa como nestes dois quadros. Textos sobre os processos de ambas ilustrações aqui e aqui.
Confesso, há certo engessamento nesses primeiros desenhos, talvez pela maneira como tomei de alicerce a perspectiva, composição geométrica e uso dos traços para dispor profundidade ao invés de dinamismo. Algo que, outra confissão, ainda não consegui livrar-me completamente por tendência a querer mapear o caminho ao invés de deixar-me levar, à la “dérive” de Debord.
É válido ressaltar, se já não ficou claro, que o que chamo aqui de gravura, não diz respeito ao ato de gravar, na madeira, no metal, na pedra ou no material que for, senão o papel. Quando falo gravura, me refiro a ao estilo advindo de técnicas de gravação nos citados materiais, tal qual como técnicas gráficas que se aplicam a estes, como a hachura ou cross-hatching, que possuem uma inquestionável qualidade escultural que lhes difere de outras formas desenho, mesmo que em nenhum dos casos expostos aqui eu tenha me atrevido a produzir tais imagens num senso mais tradicional.
Todavia uma das maiores contribuições técnicas que praticar a hachura trouxe a minha produção fora o domínio da luz e fabricação dos contrastes entre claros e escuros, muito pela maneira cumulativa em que a técnica opera, o sobrepor de camadas de linhas sobre camadas de linhas, tendo de trabalhar com apenas dois pigmentos para criar contraste, textura, profundidade e forma. Os trabalhos de Edward Hopper e Käthe Kollwitz, cada qual em seu estilo bastante distinto, mas bastante inclinado ao contraste marcado entre o preto e o branco, vem a cabeça como fortes referências atualmente.
Um breve texto sobre Nick Cave pode ser lido aqui.
Em algum momento as serializações que tanto associam a gravura ao mercado editorial desde os primórdios de ambos começaram a me interessar pela faceta similar a reprodutibilidade técnica que é a base destas. Creio que tenha alguma relação ao certo teor de colecionismo que esse replicar semelhantes tem, e as subsequentes listagens e catalogações que tem apelo a mim. Concidentemente ou não, hachura é, afinal de contas, um acumulo, por vezes bastante organizado, de riscos e linhas.
Coruja da espécie Bubo Virginianus, natural das Américas, mais conhecido como corujão ou mocho orelhudo, apesar do par de penugens em sua cabeça não ser nada além de um par de penugens. Como demais corujas, o Bubo Virginianus é capaz de rotacionar sua cabeça quase que totalmente ao contrario, mas além da rotação, corujas fazem outros movimentos peculiares com a cabeça na tentativa de melhorar sua percepção de profundidade, e é esse o provável caso para a pose da moça aqui.
Talvez haja também uma sequela das pseudo-serializações que eu já fazia quando mero infante inocente. Dias inteiros trançando e copiando as ilustrações e fotos em minhas enciclopédias de zoologia.
Quando pequeno, eu queria ser biólogo, depois zoólogo e mais tarde documentarista da vida selvagem. Não sei dizer com qual dessas áreas ainda tenho chances de me embrenhar algum dia, meu interesse não diminuiu por nenhuma delas, mas creio que me aventurar no âmbito das ilustrações científicas talvez seja mais plausível. É curioso o paradoxo entre a dificuldade em abdicar de um realismo estético tendo como objeto artístico meus mais fantasiados interesses infantis.
Um texto sobre este T-Rex pode ser lido aqui, sobre outros dinossauros acá, e sobre essa ossada de baleia azul neste outro lugar.
Ainda que muitas das bases que estabeleci com a gravura venham a informar estéticas gerais da minha produção e a maneira como eu penso uma imagem atualmente, raríssimas são as ocasiões em que rabisco de maneira mais tradicional hoje em dia, repetitividade tracejando e tracejando por horas a fio como fazia. Inclusive, a essa alturas qualquer resquício de tinta em minha velhas canetas devem ter secado.
Desenhos e pinturas digitais tomam a maior parte das minhas horas criando imagens atualmente, ainda assim, gravuras, gravuristas e toda a maneira de se pensar tais imagens, claramente permanecem como minhas principais influências artísticas. Me refiro às incríveis imagens produzidas por Rembrandt, Elizabeth Catlett, Renina Katz, Evandro Carlos Jardim, Anne Desmet e minhas favoritas, os amaldiçoados pesadelos de Goya. Tanto me inspirando quanto me instigando a aprender todas as xilo, lito, calco e variantes e começar a de fato gravar imagens.
Alguns quadros da minha série de tiras baseadas em episódios vividos, causos ouvidos e imaginários ocorridos. Podem ser lidas no instagram.
Muitíssimo obrigado por despender tempo lendo tais baboseiras.
Mais desenhos no Twitter, e noutros lugares neste link.
GRAVURAS, HACHURAS E OUTRAS TORTURAS
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