Por dentro da UTI 
Enfermagem por amor numa unidade de terapia intensiva 
Numa noite fria de final de outono, especialmente tranquila, a auxiliar de enfermagem Maria, 50 anos, se senta em toda sua plenitude no sofá, boceja de cansaço após mais um turno no hospital, o qual trabalha há mais de 20 anos. Seu olhar carrega o peso de ter visto e feito muito, sua voz a seriedade de alguém que lida com vidas enfermas por tantos anos numa unidade de terapia intensiva pediátrica (UTI): “Eu olho para trás e vejo que o tempo passou muito rápido, apesar de ter sofrido muito, principalmente quando era novata”.  
Trabalhar 15 anos em uma UTI pediátrica é para poucos, as crianças morrendo, os pais chorando, a correria na tentativa de salvar vidas tão jovens, tudo isso se tornou quase insuportável para Maria quando após 5 anos trabalhados na unidade teve sua primeira e única filha, devido ao receio tanto de ter contato com doenças infecciosas, quanto por ver a cada dia situações de saúde extremas, muitas vezes causadas por acidentes domésticos. 
Maria cansou de ver crianças com grande parte do corpo queimado, amputações por complicações de meningite e vítimas de quedas bruscas. “Teve certa vez que o pai deu um tiro na mãe da criança, porque a mãe acabou se distraindo e a criança engoliu o produto corrosivo, tivemos que infiltrar sonda e ela ficou muito tempo sem falar”, afirma Maria com tristeza nos olhos escuros e atormentados. 
Na correria da unidade de terapia intensiva pediátrica, a correria é absurda. De um lado crianças fazendo o máximo para sobreviver, do outro algumas que sequer conseguem lutar pela vida, mas para a auxiliar de enfermagem, seu trabalho é dar o máximo para que estas crianças sobrevivam.  
Há 20 anos, de pé em meio ao corredor branco, ouvindo os bips das máquinas conectadas às crianças, Maria enfrenta a tarefa de realizar sua primeira intubação, enquanto realiza o procedimento, ela sente como se estivesse sendo intubada junto à criança: “É muita responsabilidade lidar com a vida, ainda mais em UTI que por si só já é invasiva” 
Mas a pergunta que sempre esteve com Maria em todos o seu tempo na enfermagem é: “E se fosse comigo?”. Em inúmeras ocasiões ela se pegou pensando nisso, tinha que se controlar, caso contrário não aguentaria, ter a vida profissional invadindo a sua vida pessoal, por não conseguir se afastar das histórias, por se apegar. “É horrível e doloroso, mas a enfermagem é um dom e uma missão, você acaba fazendo disso a sua vida”.  
Apesar de estar no meio de tanta desgraça e dificuldades ainda há a parte boa, a de ver seus pacientes se recuperando, a tão esperada alta hospitalar, “A gente vibra pelas crianças que saem da UTI, mesmo que depois percamos o contato, no final para mim o hospital é vida e aprendizado até hoje”. 

Coletânea Perfis
Published:

Owner

Coletânea Perfis

Published:

Creative Fields