flashes in the sky of the memory
antes do mundo éramos todos bicho-gente
um planeta-comum para viver
e falávamos o mesmo idioma
humano, paca, anta, jaguaretê
antes do mundo existir
meu tio era sucuri
minha tia taóka
meu avô urubu-rei
minha avó poraquê
meu irmão era samaúma
minha irmã tauari
minha prima mandioca
meu primo buriti
a civilização branca
quebrou o ciclo que meu povo protegeu
pouco a pouco eu vi meu mundo ruir
hoje chamo atenção ao céu
onde as grandes árvores-mágicas
seguram histórias antigas
de quando elas alimentavam
as gente-bicho do mundo
eu, você, eles, nós
o tempo das nossas avós
não mais em pedras escrevo estas histórias-ancestrais
com uma máquina-branca que aperta a luz e cria um foco
eu escrevo histórias do meu povo na selva de pedra urbana
e lembro da minha avó-gente
e lembro da minha avó-bicho
as duas revelo nos arranha-céus
pedindo aos brancos: olhem para o alto
onde ainda não alcançaram com seus concretos
olhem para os galhos das árvores-mágicas
que alimentam meu povo
desde quando o mundo ainda não existia
enquanto jogo o canhão de laser
que desenha histórias-quase-esquecidas
no meu fone de ouvido toca
reflex in the sky
warn you you're gonna die
assim como nas minhas veias cabe
o sangue da minha avó-jaguar
e da minha avó-humana
entre meus petróglifos modernos
cabe também black sabbath
Petroglifos pra um antigo-futuro.
Os conhecimentos dos povos do Rio Negro, incluindo o povo a qual pertenço, estão gravados em rochas e acidentes geográficos ao longo do nosso território. São conhecimentos que contam a nossa cosmogonia, a narrativa de como o universo, o planeta e as humanidades foram criados. Além da oralidade, conhecemos nossa História através do que nossos antepassados deixaram escritos, por meios de signos ao longo dos tempos.
O acesso a tecnologias direcionadas a instrumentalização deste recurso narrativo possibilita apresentar de forma natural as entidades cosmogônicas aos centros urbanos, como São Paulo, transportando neste futuro o que foi perdido ao longo do caminho.
Os petroglifos saem de sua casa amazônica e chegam à urbanidade, visionando o que podemos nos tornar se esquecermos que somos parte da natureza e não donos da natureza. Ao mesmo tempo vêm contar a humanidade urbana o que eles esqueceram, e que talvez por algum momento seria bom reaprender sobre estas e outras humanidades.
No primeiro olhar, estas tecnologias podem parecer totalmente anti-indígenas ou não-indígenas, mas se olharem de onde estou, verão que já algum tempo tecnologias fazem parte do dia-a-dia da maioria das comunidades indígenas do Brasil, sejam por aliados brancos ou já utilizadas por elas próprias.
Tecnologias e novas mídias são um recurso importante para a defesa do nosso território, da nossa cultura e da nossa vida. É impossível hoje proteger nossas vidas sem conhecer sobre novas tecnologias, sejam de geoprocessamento, mídias digitais ou transmissão de dados, pois se ficarmos sem estes conhecimentos, seremos eliminados por agentes externos que não pouparão usar tecnologias e conhecimentos para nos cercear. Mesmo os povos que pouco se interessam ou desconhecem sobre estas ferramentas, hoje são protegidas por aliados que as fazem bom uso.
Um mural ou uma projeção usando canhões a laser no meio da cidade tem a intensão de quebrar as várias camadas de cimento e concreto que foram construídas em cima de memórias. De certa maneira, todo esse concreto e ferro, soterraram memórias antigas. É como se estivéssemos raspando camada, após camada até chegar no que um dia já foi natural. Pensando não como a fixação de uma nova camada, mas como um revelar de uma camada que estava soterrada, para reaparecem coisas que já havíamos esquecidos ou achávamos que estavam esquecidas.
Um petroglifo desenhado com laser no concreto da cidade é como uma cirurgia do globo ocular, ao mesmo tempo que queima, revela imagens que estavam turvas pela colonização que pouco a pouco foi tomando conta de nossas pupilas. É o reaparecimento de uma meta-ancestralidade dentro da matemática urbana colonial.
Imagens: Projeção de petroglifos com canhão de laser, em Brasilia, 2020. Por conta da ação "me deixa ser selvagem" e parceria com Paulinho Fluxus.