Anna Castelo's profile

Perfeita Sem Defeitos?

Perfeita Sem Defeitos?
 
A comparação está tão intrinsecamente enraizada em mim quanto o ato de respirar. Não existe nada que eu faça sem pensar que “fulana conseguiria pensar em uma saída melhor”, ou “ciclana com certeza faria isso em menos tempo”. Quando conversei com a minha psicóloga sobre isso, ela me fez uma pergunta interessante: como surgiu esse sentimento? E no mesmo instante, o início da minha adolescência piscou em garrafais e brilhantes letras vermelhas em minha mente.
 
Desde que me entendo por gente, eu consumo televisão ao lado dos meus pais. Não preciso de muito esforço pra imaginar nós três sentados em um sofá assistindo aos roteiros piegas de Emanoel Carlos, por exemplo. Porém, precisaria fazer um pouco mais de esforço para conseguir recordar quantas das protagonistas dessas mesmas novelas eram mulheres gordas, ou nordestinas que oferecessem mais que o seu sotaque forçado, ou negras, ou que não fossem simplesmente altas, lindas, com longos e brilhantes cabelos e com carreiras bem-sucedidas. Quantas Helenas fugiram desse padrão? Se você acompanha, você com certeza irá falar: a Taís Araújo era negra, e eu vou te responder: ela interpretava uma modelo linda, rica e bem sucedida.
 
Você pode me dizer que eu estou forçando a barra falando apenas de protagonistas, então, tente se lembrar de alguma personagem gorda que tivesse mais de três minutos de cena? Com uma história de fundo, com uma família, com algo que a desse profundidade? É difícil, não é? Porque essas personagens não são reais. Elas pertencem a um mundo onde o sol brilha sempre, e quando chove, é apenas para compôr um cenário perfeito para um beijo apaixonado. E isso pode parecer óbvio, mas não era para uma criança de onze anos que consumiu esse tipo de mídia a vida toda. Eu associava os cenários (fictícios, aliás) de cidades reais e acreditava que aquilo era, de fato, a realidade. Mais que isso: uma meta. Se eu não fosse como aquelas mulheres, como as protagonistas das novelas, que estampavam capas de revista, eu não conseguiria alguém, eu não encontraria o amor e estaria fadada a uma vida solitária e, consequentemente, triste.
 
E mesmo que eu não consuma mais novelas com tanta frequência, a perfeição obrigatória ainda está estampada na minha cara. Não temos mais revistas, mas temos as redes sociais. O objetivo das adolescentes não é mais como o meu, de encontrar um alguém, mas sim ser alguém inatingível. Não seguimos pessoas reais porque queremos fugir da nossa. Nós não queremos ver a cara limpa, inchada e sem maquiagem de uma mulher qualquer no Instagram porque isso é o que vemos no espelho todo dia. Nós não queremos ver surtos de ansiedade, crises de choro, não queremos ouvir sobre a depressão das mulheres chamadas blogueiras porque nós não queremos nos ver nelas e uma parte disso, por medo. Se aquela mulher que acorda cedo, medita, malha, faz pilates, tem uma casa impecável, um marido incrível, uma pele macia, uma carreira bem-sucedida consegue fazer tudo isso mesmo com ansiedade, qual vai ser a nossa desculpa?
 
A perfeição do outro se tornou o nosso porto seguro. “Mas fulano só consegue porque é perfeito”. “Ah, mas tendo o dinheiro de ciclano, até eu conseguiria”. Porque, tão nativo do ser humano quanto a comparação, é a hipocrisia. E enquanto procuramos desculpas para não sermos perfeitos, nós acabamos esquecendo que aquela pessoa nunca será perfeita. E que a perfeição sufoca. Fingir a perfeição sufoca. Inflingir a perfeição sufoca. Forçar a perfeição sufoca. Machuca. Mata. Mulheres morrem em mesas de cirurgias buscando por essa perfeição, e os casos noticiados sequer são a ponta do iceberg. Você, mulher: quantas vezes você pensou em recorrer a métodos milagrosos, remédios emagrecedores, chás que prometiam o corpo ideal em tempo recorde, dietas e exercícios da moda, quantas vezes você pensou em fazer isso para reafirmar o seu ser feminino? Porque você não seria uma mulher desejada se não comprasse uma certa roupa da vitrine, se não possuísse o cabelo da moda. E se você não fosse uma mulher desejada, você não conquistaria um marido tão fantástico, nem mesmo a família de um comercial de margarina, ou a vida ideal, como a daquela blogueira.
 
A perfeição é uma farsa. Musas pertencem aos museus, não ao Instagram. Mulheres irretocáveis estão expostas em quadros no Louvre, não na tela de um celular. Perfeita sem defeitos não é deveria ser um elogio, porque a perfeição é tediosa, é tóxica. E não, eu não estou dizendo que desinstalar suas redes sociais, apagar seus perfis e queimar seu telefone é a melhor saída. Mas porque você não segue mulheres reais? Se a comparação é inevitável, que pelo menos, você consiga enxergar que todos, mesmo as influenciadoras, possuem inseguranças, possuem medos, possuem defeitos. Eu não posso mudar meu passado. Não posso dizer para a Anna de doze anos o quão incrível ela era. Mostrar o quão bela pode ser a realidade me pouparia alguns erros e traumas. E por isso mesmo, ainda que eu encontrasse uma máquina do tempo, eu não voltaria. Porque a minha perfeição está nas minhas cicatrizes. Suas estrias e rugas, seus olhos cansados, suas roupas antigas, seu cabelo que não possui um corte há tempos, tudo em você são parágrafos da sua história. E nenhum livro valeria a pena sem aquele clímax aos quarenta e cinco do segundo tempo, que vira a vida da protagonista ao avesso e mostra pra ela que a vida do avesso também pode ser linda.
 
Perfeita Sem Defeitos?
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Perfeita Sem Defeitos?

Crônica escrita de maneira livre.

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