Lídia ou O Outono ou Conversamos pelo caminho
Óleo sobre cartão 21 cm x 28,5 cm
 Então um dia vi um rapaz dos seus treze anos de idade um rapaz forte bem constituído e confortavelmente vestido sentado à beira da água, ao lado dele estava uma mulher que evidentemente não era sua mãe mas uma parente e ali estavam os dois sentados. Pelo rosto dele corriam grandes lágrimas. O que é, perguntei eu à mulher, oh disse ela um desgosto, mas há de passar. Ficou mal nos exames, mas há de passar-lhe. E ali estava ela com um ar perfeitamente impessoal ali sentada e era de facto um desgosto mas como ela dizia, o desgosto passa.

- Gertrude Stein, Paris França

       Se Kandinsky definia a reta como um ponto arrastado ao longo de uma folha, Lídia ripostava que uma linha reta era uma chatice.
       Caminhar era o seu gesto de ordem. Estava feliz, caminhava. Triste (raras vezes) caminhava. Fazia sol, caminhava. Chovia, caminhava, qual velhinha abrigada debaixo do seu lenço. Queria fazer tempo, refletir, sentia uma urgência procrastinadora, caminhava. Mas lentamente, ao ritmo do pensamento, segundo dizia. Concretamente, andava permanentemente como se passeasse por Paris.
       Ao contrário da Sofia que mantinha junto à mesinha de cabeceira uma série de folhas para apontar eventuais epifanias noturnas, Lídia fazia questão de pensar tudo o que tinha a pensar ao longo do dia, para não ter com que se desassossegar de noite. Depois era só sonhar.
       Entristecia-se perante uma certa falta de memória, mal que só ela atribuía a si própria. Teimava em tirar fotografias e fazer pequenos vídeos desconexos dizendo:
       - É para me lembrar depois, se não as coisas passam por mim e eu esqueço-me delas.
       Então tirava fotografias a tudo, menos à paisagem. Se fosse visitar um monumento, filmava o lajeado do chão. No percurso até lá a calçada, e dizia em tom aforístico:
        - A vida não é cinematográfica!
        Tirava fotografias muito de esguelha. Uma recordação do mar, por exemplo, dava a sensação que ele se entornava para um lado. Judite dissera-lhe uma vez:
        - Lídia, tens a linha do horizonte torta.

        Na verdade, ela associava memórias de uma forma muito meticulosa, lembrava-se de muitos detalhes aparentemente sem importância porque no seu entender todos os dias mereciam ser assinalados. Encadeava a sua existência dando valor a cada coisa, com uma saudade inquieta.  Cada data era pretexto, ocasião, objeto embebido em potencial nostálgico.
        - Que dia é hoje? – perguntava insistentemente, para não perder o fio ao tempo.
        Mas equivocava-se desde que tinha deixado de escrever a lição na escola:
        - Ora hoje é dia… dia 20 de Outubro!
        - Hoje é dia 11 – suspirava Sofia.


        Se Sofia lhe dizia:
        Amanhã apanho o autocarro à mesma hora que tu.
        - Está bem – respondia e negociava perante os seguintes termos – mas não vais a ler!

        E à hora de almoço, depois da aula de desenho, ao lado de Judite que também gostava de ler, a trama perpetuava-se:
        - Não leias! Conversa comigo.
        Mas se se vissem mesmo a braços com a falta de assunto e Judite a relembrasse que silêncio também era tema de conversa, Lídia admitia a derrota, resignava-se e puxava do bolso uma revista com jogos de sudoku. Ficavam para ali as duas a dar ares de sapiência pelos seus gestos datados. Uma porque tinha por hábito ler num estabelecimento de ensino onde eram raros os alunos que tinham folheado um livro desde que entraram para o secundário. A outra porque não se vê ninguém a jogar sudoku [analógico, vá] antes de completar oitenta primaveras.

        À hora de almoço, puxavam sempre duas cadeiras para se sentarem no pátio à sombra. Um dia, vendo que ninguém utilizava as cadeiras que restavam aqui e ali junto do edifício da escola, Lídia arrastou mais uma e disse:
        - Dá para pôr as mochilas… ou para esticar as pernas – olhou para a terceira cadeira vazia, pensou melhor e concluiu – Este é o amigo que nos falta! para formar um movimento artístico!

        Nos intervalos da rotina escabrosa que as consumia, entretinham-se a passear. Com um desdém mal disfarçado havia quem lhes apontasse:
        - Vocês passam a vida no Chiado.
        E não deixava de ser verdade. O Chiado era o Tiffany’s daquela amizade. Às vezes tamanho tédio, quase mortas no deserto, e o Chiado ali tão perto.
        Vendo bem, os planos com a Judite pautavam-se por estados de espírito muito inconstantes, como o clima:
        - Vês! Se calhar vai ficar nublado!
        - Para quê? Para condizer com a tua gabardine e com o teu estado de espírito.
        - Com a gabardine pelo menos – respondeu a pessoa mais solarenga que Judite conhecia.

       Em certa ida ao cinema (faz um mês, lembraria Lídia!) desenrolou-se o seguinte:
       - Não, não vamos ver esse filme. Vai exigir muito de nós a esta hora. Estamos cansadas, vamos é ver um filmezinho de sicrano que há de ser olha! leve, leve, sem história! Bonito! Autênticos quadros em movimento – dizia a Judite.
        Conversaram, passearam, fizeram tempo até ao filme. Pelo meio entraram numa sapataria. Bailado habitual: opinavam, apontavam, não compravam nada, saíam.
        - Gosto de ver que temos o mesmo sentido crítico a ver ténis que temos a ver museus – sentenciou Lídia.
        - Já viste que no Porto dizem sapatilhas.
        - Sa-pa-ti-lhas. O trabalho que isso não dá!
        Fez-se mais tempo pelo centro comercial, viu-se o filme:
         - Que filme péssimo!
         - Não acredito que estivemos a debater problemas de natureza artística em frente da secção dos tapetes para agora acabar o dia a ver isto… Até o nome dos personagens era insipiente – lamentou Judite. 
         - E agora vamos ver outro!
          Arregalaram muito os olhos. E disseram em simultâneo:
          - Podemos!
          - Eles só veem os bilhetes à entrada – disse Lídia – agora é que vamos ver os filmes todos!
Mas não se armaram em Robin dos Bosques nesse dia, nem nos que se seguiram. Faltou-lhes sempre aquele ímpeto infrator, a vontade de esticar a corda retesada pelo eterno ‘e se’ de serem apanhadas. Passados uns tempos Judite justificou a falta de iniciativa, ironicamente:
          - Imagina teres de explicar isto numa entrevista de emprego ‘Ah, sabe, eu tenho cadastro, porque no controlo dos bilhetes do cinema são incompetentes.’

          Quando veio a etapa seguinte dos estudos, os caminhos da Lídia e da Judite concentraram-se em duas localizações díspares no mapa. Distância que não fazia diferença que se visse, e em conversa verificava-se: o tempo não envelhecia a amizade.
           - Ó Judite – dizia ao telefone – gosto mesmo de falar contigo. Tu dizes as coisas como elas são. 
           Mas era ela que tinha sempre as palavras de ordem, as seguintes, foram dirigidas à Sofia:
           - A culpa não tem razão de ser. As pessoas fazem parte da vida uma das outras nas horas devidas.

           Era uma pessoa presente, parece-me a síntese adequada. Estava. Ajudava. Contribuía. Preenchia.
           No primeiro dia na faculdade, aproximou-se da porta, olhou para a fachada amarela e disse de si para consigo ‘Meu caro Vlaminck, também quero incendiar a Escola de Belas Artes com meus vermelhos e azuis’.  Entrou.
Lídia
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