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O Subúrbio e a arte | ARTICLE

Na periferia de Lisboa, há um bairro problemático desde a sua origem: a Quinta do Mocho. Fundado por africanos descendentes da colonização portuguesa, que durou até 1975, e que rumaram em massa para Portugal atrás de uma vida melhor.
Como era provável, cruzar o oceano salgado não cicatriza anos de exploração étnica e humanitária que toda boa colônia sofre.

Rapidamente, a pobreza e a ilegalidade migratória resultaram num recinto de violência e tráfico de
drogas, onde nem a polícia ousava intervir. Pronto, assim nasce uma favela numa das mais seguras capitais europeias.
Eis que em 2014, não a polícia, mas artistas foram convidados pela prefeitura a dar cor às paredes
desbotadas de um bairro menos valioso que uma foto da Torre de Belém. Era a alquimia vital na
transformação da vida de um povo rico em cultura, e sedento pelo colo da nação que sempre se
apresentou como mãe.
O Bairro i o Mundo foi o projeto inicial que agora deu lugar ao Loures Arte Pública, perpetuando o
foco em promover a integração social através de mensagens pertinentes anti-segregação.
Das pinturas de 10 metros às peças de teatro, dos workshops de dança aos debates com gente do
mundo todo: a Quinta do Mocho entrou no ilustre circuito da vida normal, onde os moradores
passaram a ter acesso à educação, encontros, arte e, principalmente, acesso à igualdade. Hoje, já
são mais de 100 obras, centenas de visitantes e a Quinta do Mocho se tornou a maior galeria de arte urbana da Europa, com peças de artistas conceituados como Bordallo II, Vhils e a angolana Moami.
No fim de junho, quem apareceu por lá foi o presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa,
numa visita carinhosa aos moradores recentemente desalojados por um incêndio.
Outros bairros semelhantes passando pelo mesmo processo de recuperação humana. Mas é na
Quinta do Mocho onde podem ter uma visita guiada com os moradores e ainda almoçar num
restaurante cabo-verdiano do bairro. Procurem pela Casa da Cultura de Sacavém e pelos Guias do
Mocho. Até o dia 3 de agosto, estará por lá uma exposição temporária: a Expo Mocho. Grandes
convidados e já há até fila de espera para novas pinturas. O conceito de vitrine é pouco, a quinta
virou um imenso museu a céu e à gente aberta.
Como disse um amigo meu morador do bairro: “as marcas de tiro da minha casa foram cobertas por arte e agora as pessoas nos enxergam de outra forma”.
É gostoso passear ali, ver gente interessante metade alegria no rosto, metade saudade de casa. Um bairro repleto de crianças envolvidas em atividades artísticas, o que é bom, porque é da periferia que vem o equilíbrio da balança demográfica num país velho. A beleza da arte é promover encontros com significado, e isso é o catalisador para extinção da pobreza subjetiva, derivada da carência. Como diria Fernando Pessoa, ser pobre e vadio é ser isolado na alma. Qualidade de vida não seria a redução do abismo empático com o outro? Progresso não seria demolir as fronteiras invisíveis por vezes intransponíveis?
A arte une, o amor consagra.
E se a tinta, que se apaga, muda uma vida. Quem dirá, muito mais.
Texto publicado no maior jornal de Belém - PA (Brasil).
Caderno Troppo, que é consumido pela elite paraense. 
2020
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