— Mas você tem certeza disso, vó? — Perguntou a jovem que sentava ao lado da cama do hospital, com olheiras profundas, coluna torta. Ela segurava a mão da senhora com cuidado enquanto falava cada palavra devagar e com carinho de quem só estava ali por amor podia pronunciar.

— Sim, minha querida. — Respondeu a velhinha, deitada no leito, com várias máquinas ao seu redor que transmitiam seus batimentos cardíacos, além de uma sonda que entrava no seu nariz e ia até seu estômago. Ela suspirou, sentindo este pequeno ato doer seu peito e garganta. — Já vivi tanto tempo. É hora de doar minha vida aos jovens.

Assim que concluiu sua sentença, viu sua neta soltar uma lágrima. A gota rolou pela face rechonchuda da mulher, pingando em suas vestes.

— Oh, olhe para você, querida. — Disse a idosa, analisando o rosto da sua companhia. — Está tão cansada. Deve estar dormindo aqui há muito. — Ela quis esticar sua mão e limpar as lágrimas de sua querida, mas sabia que seu corpo não aguentaria. — Está trabalhando em seus quadros, querida? Sabe que adoro eles. Não pare para olhar minha morte. Não é entediante?

— Minha arte não é mais importante que momentos ao seu lado, qualquer que seja, vó.
 — Declarou a neta, apertando carinhosamente a mão de seu familiar. — Não vou parar depois que você morrer, sabe disso. — Soltou um sorriso fraco.

— Espero que sim, querida. — E respirou fundo, diversas vezes, tendo o olhar de preocupação mais afundado na sua neta. — Vá chamar a médica. Estou cansada… — Seu corpo pedia tanto esforço que nem chegava a colocar ponto final em suas frases.

A neta suspirou, soltando mais lágrimas. Mas assentiu e foi chamar a doutora. Era uma pessoa gentil, com seu rabo de cavalo preso, vestindo um orgulhoso jaleco branco. A médica olhou com simpatia e solidariedade para a mulher que estava ali há semanas. Sem dizer nada, apertou vários botões na máquina. Em seguida, abriu a cortina que separava aquele quarto, deixando a mostra uma garota de onze anos adormecida, ligada a tubos de respiração.

A doutora conectou um dos fios na máquina que ligava ao da idosa e apertou um último botão. Era a máquina revolucionária: que trocava a vitalidade de uma pessoa para outra. Curvou-se para a senhora, mesmo que esta estivesse de olhos fechados, esperando um descanso; e para a mulher que chorava baixinho segurando a mão de sua avó.

A mulher de branco se encostou na mesa ali perto e observou a cena. Viu as máquinas de batimento cardíaco se modificarem; os da idosa estavam se apagando enquanto os da menina moviam-se melhor. Olhou a respiração da idosa ir cessando e não precisou verificar o pulso para saber que estava morta pois sua acompanhante explodira em lágrimas.

Mas mesmo assim, confirmou; em seguida, verificou a pequena menina ao lado, que tinha seus sinais ótimos agora. Assim que terminou seu procedimento médico, virou-se para a mulher, colocando uma mão em seu ombro, afagando.

— Eu sou realmente grata a você e sua avó. — Disse ela com lágrimas nos olhos. Ela era tão chorona que simplesmente chorava ao ver outros chorando. Sua profissão a fazia chorar todos os dias, mas sabia que era seu trabalho. — Vocês estão ajudando muito a medicina e o mundo.

— Eu só queria ela de volta… — Choramingou a mulher, que soluçava alto.

— Esta é a vida, querida. — Acalentou a médica. — Tenho certeza de que vocês viveram bem e tiveram bons momentos. Chore o que tiver que chorar, porque você a amava, então chore até onde quiser. Mas depois, sorria ao se lembrar de quão bom suas vidas foram. Pode demorar um pouco mas tenho certeza de que você voltará a sorrir.

A mulher a olhou com os olhos esbugalhados.

— Muito obrigada. — Agradeceu enquanto a abraçava e chorava em seu colo. A médica chorou junto também enquanto sorria ao ver que estava ajudando. Depois de alguns minutos, a mulher se levantou. — Muito Obrigada. — Disse mais uma vez, dessa vez calmamente e dirigiu-se a porta, saindo daquele ambiente.

A mulher caminhou por aqueles corredores com cheiro de desinfetante até seu carro, com olhos inchados e vermelhos. As pessoas lhe davam olhares de compaixão e jovens médicos e médicas curvavam para si, alguns murmurando "obrigado, obrigada."

Antes que chegasse às portas de vidro da entrada, uma mãe esbaforida agarra seu pulso, com a respiração rápida pela corrida. Agora que a mulher percebera que que aquele som contínuo era o som de passos.

— Espere! — Falou a mulher enquanto recuperava o fôlego. Seus olhos também estavam inchados e vermelhos. — Eu queria te dizer que… — Engasgou-se, mas tentou continuar. — Que…eu…só, muito obrigada. — Disse juntando suas mãos, e olhando de perto, viu que naquele olhar, tinha um brilho de viver e da mais profunda gratidão. — Você salvou minha filha. Eu não acreditava que alguém seria capaz disso. Eu sou realmente muito grata por você e sua avó. Se tiver qualquer coisa, qualquer coisa que eu puder fazer, para retribuir tanta gentileza, me diga que eu com certeza farei.

A jovem pintora então associou: aquela era a mãe da menina desacordada ao lado de sua mãe.

Então, enxugando as novas lágrimas em seu rosto, olhou com um sorriso tremido e sincero nos lábios e disse:

— Qualquer dia apareça para um suco na minha casa.

E saiu do hospital mais leve.

~~~~~~~~~~

A pintora, sentada em um banquinho de madeira com apoio nas costas, balançava seu pincel pelo ar, sem perceber que estava acertando seu rosto e o lambuzando todo; encarava seu quadro, um branco que estava ali por semanas, desde a morte de sua avó.
Suspirou, frustada e exausta emocionalmente. Depois que saira do hospital, correra para seu estúdio, querendo tirar todos aqueles sentimentos dentro de si e por na tela, se sentir melhor, mas tremia ao segurar um pincel e sua mente ficava em branco. Lembrava do sorriso de sua vó e desabava em lágrimas, até seu corpo ficar tão exausto e ela desistir e ir para cama.

Estava cansada de não fazer nada, mas aquela tristeza e apatia bloqueava seu lazer. Estava presa.

Até que tocaram a campainha da sua casa.

De início ela não quis atender. Seu rosto deveria estar péssimo. Mas cansada de ficar presa naquele espiral mental, decidiu fazer um enorme esforço e se dirigiu até a porta de sua casa. A abriu sem lembrar de se perguntar quem era.

— Você tem tinta no rosto!

Falou a menina de onze anos que vestia um macacão e estava suja de terra, nos braços e rosto. Ela segurava dois picolés de chocolate e lambia o seu enquanto encarava a pintora com seus olhos grandes.

— Você… — Murmurou a mulher, vendo como aquela criança tinha cor em seu rosto e vida no corpo, longe daquela cama de hospital. A surpresa foi tanta que de início ela apenas ficou ali parada. Quando saiu de seu transe, graças a menina lhe estender o picolé, deixou um espaço para ela passar.

— Bonita sua casa, tia. — Corria a garota, olhando todos os cantos, com sua mão lambuzada de sorvete. — É enorme!

— Obrigada. — Disse a pintora, enquanto lambia o picolé que lhe foi dado. Se surpreendeu com o sabor. Havia adorado. Há quanto tempo não comia um sorvete? Estava tão presa assim dentro de casa que esquecera até disto?

— VOCÊ É PINTORA? QUE LEGAL!! — Gritou a garotinha, que olhava para todos os quadros com grandes olhos esbugalhados que percorriam sem parar todo o estúdio. — Isso é incrível! Como você faz isso?!

Apontou para um quadro onde pintara a médica que cuidara de sua avó. A mulher sorriu enquanto admirava sua arte e explicou.

— Muitos anos de dedicação e amor ao que faço. — Disse, pensando que provavelmente era assim que aquela doutora se sentia também. Escreveu em um papel, melando-o de chocolate, que visitaria o hospital levando um presentinho para agradecer por tudo que ela havia feito. Estava com um leve sorriso no rosto agora e seus lábios não estavam mais curvados para baixo.

— Você é muito habilidosa, tia. — Declarou a garota enquanto terminava de comer seu picolé e lambia os dedos agora, um por um. — E aquele quadro branco? O quê você vai pintar nele?

A pintora sorriu.

— Acho que já tenho uma ideia. Mas conte-me sobre você. O que fez ontem, querida?
A menina sorriu e sentou-se ao seu lado, contando que havia ido às compras com a mãe e comido hambúrguer com batatas fritas; que queria um cachorrinho para passear com ele pela praça, que era muito bonita; que o nome provavelmente seria Katniss, por que assistira Jogos Vorazes e adorava aquela mulher;

E enquanto a mulher escutava as histórias da jovem garotinha, ela molhava seu pincel nas tintas e ia esboçando. Riu quando ouviu que a garotinha mordera uma estrela de natal achando que surgiriam novas estrelinhas ali dentro; coloriu e encheu de cores quentes quando sentia animação correr em suas veia. Sorriu ao lembrar de sua avó lhe ensinando a plantar e colher. Gargalhou quando a menina contava suas aventuras correndo pela calçada com um galho na mão.

Quando terminou, enxugou o suor da testa, melando-a de tinta. Mas de tão admirando seu trabalho estava que nem percebera mais uma vez. A garotinha ao seu lado, de seus onze anos, olhava admirada para o quadro.

— Esta é sua vó? — Perguntou.

No quadro, estava uma idosa sorrindo segurando uma criança de onze anos nos braços, com a ternura de uma avó.

— E esta é você. — Concluiu, com satisfação no peito, enquanto se afastava para absorver todos os detalhes.

— Gostaria de a ter conhecido. — Falou a garota, que imitava a mais velha e se afastava e se aproximava, observando as texturas.

— Não se preocupe. Você a conheceu.

A menina sorriu.

— Ela era incrível. — Declarou sorrindo, mostrando os buracos em sua boca, onde havia caído seus dentes de leite. De repente, a artista percebeu que teria muitos mais quadros para pintar.
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