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O paraíso destruido

LAS CASAS E A CONQUISTA DA AMÉRICA 

Quando começamos a etapa estudantil de nossas vidas, nos é apresentado, nos primeiros anos da escola, a história do grande processo de conquista das Américas, somos postos frente à bravura, à astúcia e à inteligência dos europeus. Colocam-nos maravilhosas lentes eurocêntricas que distorcem os outros lados dessa trágica e longuíssima história, impedindo dessa forma que questionamos as ações que foram tomadas pelos conquistadores naquela época. Mas, como nenhum relato é totalmente imparcial, há quem se sensibilize e, mais importante, quem exponha as outras partes deste enorme quebra-cabeça. 
Frei Bartolomeu de las Casas é uma dessas figuras que se dedicaram a narrar essas partes obscurecidas da história em seu livro O Paraíso Destruído, que foi escrito por volta de 1550. Nele conta as atrocidades vividas pelos ameríndios por conta do processo de conquista que os espanhóis impuseram a eles.  Ao executarem tais barbaridades, os ibéricos tomaram à força mulheres, crianças e homens adultos para si, a fim de matá-los como forma de alerta, por vezes, aos demais ou no pior dos casos para servi-los como escravos.
Movidos pela crença de sua superioridade, como povo destinado a levar aos nativos o conhecimento de um Deus uno e verdadeiro, além da busca por acúmulo de metais preciosos e outras riquezas, os castelhanos saíram mundo afora a fim de cumprir esses objetivos. Depararam-se com várias províncias muitos povoadas e ricas que já tinham seus costumes culturais e suas próprias crenças. Folclore esse que pode ter agido contra os próprios nativos, visto que quando os espanhóis chegavam àquelas terras, eram recebidos como deuses nas diferentes regiões. 
Ao chegarem e serem calorosamente recebidos, os espanhóis aproveitavam-se das boas intenções dos nativos e de sua ingenuidade, causando-lhes medo a fim de conseguir o tão cobiçado ouro que poderia existir naquelas terras do novo mundo. Muitas vezes, para conseguir o que desejavam, eles sequestravam o chefe da província e ameaçavam matar ele e seu povo caso não conseguissem essas beldades. Dessa forma, muitos originários caíram pela espada ibérica e tantos outros foram condenados à escravidão. Mas, como os conquistadores conseguiram pôr abaixo tantas províncias altamente povoadas? 
Contrastando com o ideal comumente ensinado na escola, a genialidade dos europeus não se deu ao brilhantismo natural desse povo, pois eles, assim como vários outros povos da eurásia, foram beneficiados com a circulação de produtos e conhecimento proporcionados pelas transações econômicas que favoreceram os habitantes da Europa, como a ciência da navegação e confecção de armas mais eficientes. Além do fator mencionado, a geografia da Eurásia também contribuiu para a conquista dos povos por meio de uma agricultura mais produtiva conquistada pelo usufruto dos animais nas plantações e, consequentemente, pelo fortalecimento imunológico dessas pessoas.  Isso tudo criou um cenário de conquistas legítimas, considerando que de acordo com Bartolomeu: “Os espanhóis nunca tiveram nenhuma guerra justa contra os índios. Todas foram diabólicas e muito injustas, mais do que as de qualquer tirano que exista no mundo”, pois os nativos andavam apenas com as partes vergonhosas cobertas, não possuíam nenhum armamento fora seus arcos e flechas e lanças, nem em quesito biológico, defesas contra as doenças trazidas pelos ibéricos. Sendo dessa forma dizimados tanto pelo aço quanto pelos germes estrangeiros. Essas ações amedrontadoras são fruto de uma dita banalização do mal, como elucidado por Hannah Arendt, em seu livro Julgamento de Eichmann, no qual humanos conseguem fazer grandes atrocidades devido a não crítica de ordens de superiores, como também deixam de refletir sobre ações ditas desumanas.
Apesar da guerra injusta, é um equívoco pensar que os nativos assumiram apenas um papel passivo durante toda a trajetória da conquista. No capítulo 14 do livro de las Casas em que os espanhóis sequestram Don Alonso – o chefe do país; vemos uma reviravolta explícita dos nativos contra os religiosos que apesar de serem inocentes na ocasião, segundo o autor, foram tomados como traidores e massacrados pelo povo. Além desse episódio específico, Frei Bartolomeu também cita que “os índios que estão em guerra, vendo o tratamento que se dá aos índios que estão em paz, preferem morrer duma só vez a suportar várias mortes sob o jugo dos espanhóis” - capítulo 12, p. 82, mostrando dessa forma que os originários se envolveram em guerras para tentar proteger sua terra e povo contra as ações desumanas desses invasores. Ademais, podemos perceber, por meio de um estudo mais detalhado dos relatos históricos que os ameríndios utilizaram de outras táticas para protegerem-se de todo o genocídio e escravidão que vai desde adotar uma dissimulação cristã ao fingirem-se convertidos até auxiliar os europeus nas conquistas de povos nativos rivais. 
A igreja, ao perceber que o modo como os índios eram tratados era inversamente proporcional a aceitação e rendimento catequético, usou de sua influência para amenizar os maus tratos que esses sofriam, alegando dessa maneira que “os índios são detentores de alma e por isso não podem ser escravizados”, mas sem a mão de obra nativa que proporcionou grandes riquezas aos colonizadores, quem seria responsável por dar a eles tamanho lucro? Entre os séculos XVI e XIX, muitas embarcações trazendo africanos chegaram à costa brasileira e dali eram exportados para as outras províncias. Como o sistema de plantations tornou-se muito lucrativo, os ibéricos precisavam de muita mão de obra para compor esse duro processo feito em suas colônias. Cabe ressaltar que a escravidão atlântica se diferencia das demais formas de escravidão que outrora foram usadas na Grécia, por exemplo; uma vez que essa prática proporcionava a compra e venda de escravos, não oferecia ascensão social e era hereditária, tornando-se muito mais vantajosa para os senhores de escravos. 
Assim como na conquista espanhola das províncias, o conhecimento adquirido pelos portugueses através das relações comerciais e o tráfego de conhecimento foi demasiado importante para uma comercialização negreira mais rápida e eficiente, visto que com o conhecimento da direção dos ventos na navegação tornou-se possível dinamizar o transporte de africanos do Congo e Angola até o Brasil. A diáspora africana, causada pelo tráfico negreiro tomou proporções inimagináveis, tanto pela maneira como foi realizada quanto pelo tipo de apoio que recebeu no âmbito social. Esse sistema de serventia, como mencionado anteriormente, divergia das outras formas de escravidão praticadas ao longo da história por ser a primeira de caráter racial a receber grande apoio da igreja que usou de seu discurso para justificar que esse caminho era um rumo natural da existência já que, segundo ela “o negro não possui alma e por isso é passível de escravidão” - essa ideologia conferiu ao africano um caráter coisificado, fazendo dele apenas uma ferramenta para ser usada nas plantações e em diversas outras atividades. 
Com a crescente catequização dos índios e a escravidão negra deveras lucrativa, tornou-se possível, cada vez mais, a consolidação dos impérios marítimos europeus em detrimento das beldades latinas e africanas tangíveis ou não. Esse mecanismo, além de dizimar diversas culturas e crenças que já haviam naquelas províncias que foram maculadas pelo jugo eurocêntrico, deixou marcas que se estenderam por diversas instâncias da vida humana. Pode-se exemplificar as práticas segregacionistas efetuadas pelos considerados “sangues puros” que aprovaram séries de diretrizes para obstaculizar a ocupação de cargos públicos por nativos, seus descendentes e aqueles que eram fruto da miscigenação do branco europeu com nativos e/ou africanos. Efeitos colaterais que foram sentidos por toda a história humana e que, infelizmente ainda hoje, na contemporaneidade, são sofridos pelos descendentes (que muitas vezes não sabem a procedência de sua própria linhagem) daqueles que conseguiram sobreviver às inimagináveis atrocidades senhoriais.   
Atualmente, alguns traços desse passado tenebroso ainda assombram a sociedade em que vivemos. Manchas essas que se manifestam de diversas formas, como a objetificação da mulher advinda de uma sociedade patriarcal e o racismo decorrido do processo de coisificação do africano e mistificação pejorativa de sua cultura. Tais consequências são tratadas diariamente por tudo o mundo. Estão na letra de músicas, retratadas em produções cinematográficas, bradadas a plenos pulmões em manifestações a favor das vidas negras, em discursos feitos especialmente para conscientizar a parte da sociedade que não sofre esses efeitos por conta de sua descendência e por se encontrarem dentro dos parâmetros “aceitáveis” da comunidade. 
Tratando-se da objetificação da mulher, vemos que ela nasce de uma concepção patriarcal, a qual refere-se a uma forma originária de dominação que consiste na “possibilidade de impor ao comportamento de terceiros a vontade própria” (Weber, 1991, p.187). Estudos sociológicos destacam que na sociedade brasileira, a trajetória do patriarcado colonial traz a predominância da autoridade do pai sobre os outros membros da família, o que significava ser responsável por impor autoridade ao estabelecer parâmetros de comportamento e aplicar punições caso esses não sejam cumpridos – que poderiam chegar à morte, em alguns casos. O poder patriarcal dava direito de dominação sobre o corpo da mulher, ao homem – visto que mulheres da elite precisavam manter-se puras e castas até o casamento e após ele, ser um modelo de virtude e submissão. Já nas classes mais baixas da sociedade, era comum encontrar mães solteiras, vítimas da exploração sexual e doméstica. Del Priore (1993) sustenta que a imagem da mulher elitizada se opunha à da mulher periférica que geralmente era mulata ou índia. Sabe-se que na época colonial, era comum portugueses manterem relações sexuais com as nativas ou escravas, visto que nesse caso eram consideradas objetos sexuais. Ainda hoje, há casos em que mulheres se veem obrigadas a manter relações sexuais com seus parceiros apenas para satisfaze-los. Outra forma de objetificação da mulher é observada nos casos de feminicídio, nos quais pode ser desencadeado pela violência doméstica ou pela discriminação da condição da mulher – quando o crime se manifesta pela misoginia ou objetificação da mulher. O grupo Mulamba usa de suas canções para mostrar os sentimentos e situações que as mulheres passam na sociedade - o medo, o julgamento e a falta de empatia e insensibilidade são apenas alguns exemplos. Neste trabalho escolhemos a música P.U.T.A que retrata a tensão e o medo sentido pelas mulheres durante uma simples caminhada até a casa ou o trabalho, sozinhas. A seguir, um pequeno trecho que evidencia as situações anteriormente mencionadas: 

Ontem desci no ponto ao meio dia
Contramão me parecia
Na cabeça a mesma reza
Deus que não seja hoje o meu dia
Faço a prece e o passo aperta
Meu corpo é minha pressa
Ouviu-se um grito agudo engolido no centro da cidade
E na periferia? Quantas? Quem?
O sangue derramado e o corpo no chão
Guria…
Por ser só mais uma guria
Quando a noite virar dia
Nem vai dar manchete (nem vai dar manchete)
[...]
Amanhã a covardia vai ser só mais uma que mede, mete e insulta

A objetificação são traços do racismo, uma ferida social brasileira. Mesmo depois de anos após a abolição da escravatura, o cidadão negro mantém-se sendo submetido as piores condições de desigualdade, escolaridade, moradia, saneamento básico e no mercado de trabalho.  
Essas condições que essa grande parcela da população ainda é exposta, escancaram como, essa sendo, a maior população carcerária brasileira, consequentemente a que mais é vítima de morte em operações policiais. Agrega-se também ao fato de a maioria dos encarcerados não receberem ao menos julgamento, estando em prisão provisória. Esse fato remete a minissérie “Olhos que condenam”, exposta na plataforma Netflix, ao qual, baseada em fatos reais, narra a história de cinco jovens –quatro negros e um latino- julgados e presos injustamente. A narrativa expõe a opressão, violência, humilhação, o preconceito e como o sistema policial, judiciário e a mídia corroboram para essa punição injusta, exaltando ao fato de eles serem culpados por serem jovens e negros.  
A animalização e indiferença como eles são tratados desde o primeiro contato com a polícia e a mídia, demonstra todo esse racismo estrutural e social já instaurado na sociedade. Marcas dessa minissérie representam o que hoje é vivido no Brasil e no nosso sistema carcerário, -a quarta maior população carcerária do mundo composta por 61,6% autodeclarados negros- onde muitos são obrigados a confessar um crime que não haviam cometido, em um país onde se prende mais pessoas negras e essas recebem punições mais severas e tratamentos mais duros do que as pessoas não negras, são julgadas e tem suas vidas destruídas, -remetendo aos tratamentos sofridos na época da escravidão e que até hoje ainda não foram abolidos-, baseados na mídia e nas autoridades cegas de um país desenvolvido mas pouco estruturado socialmente. 

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