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Transtorno compulsivo: quando comprar vira doença?

Transtorno compulsivo: quando comprar vira doença?
Reportagem por Bianca Costa, Ingrid Souza, Raiane Araujo e Sabrina Nascimento
Ela é uma garota comum, que trabalha, encontra seus amigos, tem relacionamentos e até inimizades. Porém, uma coisa a define mais do que tudo isso: sua compulsão por compras. Seu cartão de crédito bloqueado, as ligações de cobranças no telefone e um valor de dívidas a perder de vista. Isso resume seu dia a dia, afetando diretamente todos os outros pontos.

Essa é uma breve descrição sobre Becky Bloom, a protagonista do filme que leva seu nome. O longa, que estreou em 2009, conta a história da jovem compulsiva que, além de não admitir seu transtorno, causa problemas a seus familiares, amigos e até seu amado parceiro. Porém, ao contrário de muitas produções “hollywoodianas”, esta é uma história comum na vida de muitos brasileiros.

Segundo dados de agosto de 2021 do Confederação Nacional do Comércio, Bens, Serviços e Turismo (CNC), 72% da população nacional está em situação de endividamento, o que soma mais de 62 milhões de pessoas. A falta de consciência financeira e as reduções na renda durante a pandemia de Covid-19 são as principais vilãs desta história.

Porém, dentre estes dados, é preciso compreender que existe outro grupo de pessoas. Elas, em sua maioria, não perderam seus empregos, tendo como motivo da inadimplência um desejo insaciável por compras, que faz com que seu dia a dia seja repleto de sacolas de loja e boletos a pagar.

É o caso de R., uma jovem que lida com seu desejo por compras há algum tempo. “Antes eu comprava por comprar, ainda mais se estivesse na promoção. Eu nem pensava se a roupa ou acessório iriam combinar com o restante do meu guarda-roupa.”, alega. Para ela, havia um sentido naquelas compras, sendo impossível sair de uma loja sem levar algo. “Não consigo sair de uma loja sem, pelo menos, um blusa, por exemplo.”, afirma.
Para pessoas com vícios, o hábito pode ser mais difícil de abandonar do que a dependência em si. O mesmo vale para o consumo. Segundo R., o costume de andar com sacolas é um dos maiores prazeres.

“Outra coisa que eu acho super estranho é a minha necessidade de andar com as sacolas das lojas. Mesmo que não sejam minhas, simplesmente pelo status de pensar que estão pensando que estou cheia de sacolas porque gastei dinheiro.”
Foto: Unsplash, 2021
Segundo o livro “Making Habits, Breaking Habits: Why We Do Things, Why We Don’t and How to Make Any Change Stick”, escrito pelo psicólogo inglês Jeremy Dean, o problema dos hábitos é que eles agem em um impulso inconsciente. Mesmo que o desejo de mudar seja forte, ele, muitas vezes, não é suficiente para suprir os anseios da nossa mente. É preciso, então, uma causa grande, uma motivação intensa que faça com que a pessoa consumista deseje, de fato, mudar de vida.

No caso de R., ela alega que seu consumo foi reduzido por conta do nascimento do seu filho. Para ela, a necessidade de trocar as grifes de moda por lojas infantis serviu como um escape de compras, desta vez mais controladas, com um fim mais importante: seu filho.

“Eu canalizava as minhas vontades comprando berço, kit de cama até fralda para o bebê. Ficava brava com meu esposo quando ele escolhia, por exemplo, um macacão sem me mostrar. Eu queria ter o prazer de olhar e ajudar a escolher, mesmo que ele que finalizasse a compra no site.”

Porém, há casos graves onde nem o desejo de mudança é suficiente, partindo para problemas clínicos.

Quando as compras se tornam uma compulsão​​​​​​​
Ao ser desmascarada durante o filme, Becky Bloom abre seu coração a seu parceiro e fala “Quando eu compro o mundo fica melhor. O mundo é melhor. E depois deixa de ser. E aí eu compro outra vez”. Esta é uma típica ação de pessoas com Transtorno de Consumo Compulsivo (TCC).

O TCC acomete cerca de 5% da população, conforme dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), sendo uma doença que precisa ser tratada em consultórios psicológicos e psiquiátricos.

Uma dessas pessoas é A., uma jovem que sofre de TCC há alguns anos. Acompanhando o transtorno com psicóloga, hoje ela tem consciência de que a doença é gerada a partir de gatilhos emocionais, que a fazem perder seu controle. Para ela, a recorrência das crises é um ciclo, onde há alegrias e tristezas. “Compro para amenizar a tristeza, mas fico triste por gastar dinheiro. Aí compro para amenizar a tristeza, e fico triste. Enfim, um ciclo”.

O medo do julgamento é um gatilho que faz com que compulsivos sofram em silêncio, sem conseguir pedir ajuda. É o caso de A., que alega que, na quarentena, seu consumo teve que ser controlado devido ao medo da reação das outras pessoas. “Quando eu comprava online na pandemia, as coisas chegavam na minha casa e minha mãe via as caixas. Isso para mim era uma humilhação”, afirma.

Com a reabertura do comércio, estas crises podem se tornar mais constantes. Ao citar o retorno pós-lockdown, A. desabafa:

“Na rua isso não acontece. Ninguém sabe (das compras), então compro com menos culpa, mesmo que ela venha depois”

Porém, segundo a neuropsicóloga e especialista em Transtornos Cognitivos Comportamentais Elaine Di Sarno, houve um aumento considerável nos diagnósticos de consumo compulsivo em 2020. Um dos motivos, segundo Sarno, foi o isolamento social imposto pela pandemia de Covid-19, já que as pessoas encontravam-se em casa, muitas vezes sozinhas, distantes das rotinas habituais.

O descontrole da situação, a falta de afeto físico e o sofrimento emocional são algumas das principais causas para o agravamento de casos de compulsão, por ser um “tapa-buracos afetivo”, segundo ela.

Estes casos, conforme a especialista afirma, são semelhantes a diagnósticos mais conhecidos, como o alcoolismo, a dependência química, o Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) e o Transtorno Alimentar (TA).

Este dado é realidade na vida de A., que, após conseguir começar seu tratamento psicológico, consegue notar que há uma substituição das compulsões. “A minha compulsão por compra/gasto vem da compulsão alimentar. Eu substitui uma pela outra basicamente.”, afirma.

Porém, o que especialistas ainda não conseguem medir são os reflexos no pós-pandemia. Com a flexibilização das regras de distanciamento social e a reabertura dos comércios, as pessoas com transtorno compulsivo podem ter o chamado efeito rebote, quando um sintoma surge mesmo que controlado anteriormente, porém com mais força.
Foto: Unsplash, 2021
É o caso de N., que alega ter controlado suas compras durante a pandemia porém, com a vida retornando ao normal, seus gastos aparecem com mais força. “Quando eu fiquei em casa, eu quase não comprava, mas era porque eu tinha um objetivo no final do ano. Então me policiei ao máximo para gastar uma quantia fixa por mês”.

N. diz que foi após uma situação traumática que seus episódios de compulsão retornaram.

“Eu gastei todo meu dinheiro em uma noite, até o vale-refeição, sabendo que não podia. […] Falo que vou economizar, mas, quando vejo, estou em uma festa e começo a passar o cartão como se eu fosse milionária”

Os sinais de um TCC
Para Sarno, este diagnóstico é complexo e tende a ser confundido com uma tristeza ou o ato comum do consumismo, presente na vida de quase todas as pessoas. “Cada caso é um caso, e precisa de análise e tempo”, diz.

Porém, quando questionada sobre sintomas comuns que podem ser notados, ela afirma que há três indícios que, se vistos juntos, devem ser monitorados e compartilhados com um profissional de saúde. O primeiro é o gasto em cartão de crédito muito acima do valor possível. Aqui, entra o endividamento constante e a dificuldade de ter o “nome limpo”.

A presença de muitos itens embalados, lacrados ou com etiquetas em casa também deve ser um alerta. Pessoas compulsivas tendem a comprar e nunca usar a peça, deixando-a em alguma arara, prateleira ou mesmo em um depósito. Há casos de pessoas que precisam comprar móveis organizadores para guardar estes bens, pois já não cabem na mobília existente.

O sentimento de culpa após a realização da compra é o último dos sinais que deve ser cuidado. Segundo Sarro, ele é quem costuma reiniciar o ciclo compulsivo.
Entre A. e N. este sentimento é comum. Ambas alegam que, após os episódios de compulsão, o sentimento ruim é presente todas as vezes, gerando mais tristeza e, assim, brechas para mais gastos.

Para estes casos, além da terapia e acompanhamento com psiquiatra, a especialista indica a busca por grupos de apoio para pessoas com TOC. Neles, são tratados, coletivamente, diversos casos de transtornos compulsivos.

Para conferir mais sobre o tema, confira abaixo o podcast gravado com a psicóloga clínica Marina Rosa. O tema é a relação da compulsão consumista e o uso do digital.
Efeitos na saúde financeira
Com o emocional abalado, pessoas com tendências compulsivas podem descontar nas compras os seus sentimentos ruins — como frustração, angustia, raiva, etc. Além de afetar sua saúde mental, o controle financeiro tende a se perder, gerando mais problemas.

Segundo a contadora e especialista em finanças Liliane Zanoncini, o estopim dos problemas pode ser causado por gatilhos sentimentais descontados nas compras. “É nessa questão que entra a parte prejudicial. A pessoa não está comprando porque precisa de algo, ela compra para se sentir bem. O problema é que, depois que faz a compra e o correio entrega a mercadoria, aquela sensação de euforia acaba, e ela precisa fazer uma nova compra para poder se sentir bem de novo”.

Para Zanoncini, a pandemia chegou fomentando problemas já existentes e que, com o tensionamento dos sentimentos humanos, acabam perdendo o controle mais rapidamente. “As pessoas pensam ‘a pandemia chegou, vai que eu morro amanhã. Vai que o amanhã não chega’. Mas o amanhã chega, né?! A maioria pensa ‘e se eu morrer amanhã’, mas não pensam ‘e se eu não morrer amanhã.’”, comenta.

O problema atual, conforme diz a especialista, está no sentimento de fim de mundo, onde as pessoas com pouco ou nenhum controle financeiro olham a crise mundial, preocupam-se com os valores guardados e decidem que aquele é o melhor momento para gastar tudo o que têm.

Para se aprofundar no assunto economia e consumo, confira nossa reportagem abaixo. Nela, o assunto é abordado mais profundamente, com mais entrevistas.
Como lidar com os gatilhos externos
Diversos eventos comerciais são populares no Brasil e no mundo. Dia das mães, dos pais, dos namorados, Páscoa, Natal e muito mais. Não são poucas as datas existentes onde o comércio se movimenta com descontos, promoções e propostas tentadoras.

Porém, há alguns anos, outro movimento internacional se estabeleceu no país: a Black Friday. Desde sua primeira edição no Brasil, em 2010, o famoso evento estadunidense reúne as melhores ofertas do ano em uma sexta-feira após o Dia de Ação de Graças. Seu objetivo é gerar promoções e fazer uma movimentação inicial para manter o comércio fomentado até o Natal.

Aqui no Brasil, esta ação acaba ocorrendo durante todo o mês de novembro, com as chamadas “Black Week” ou “Black Month”, opções tentadoras para pessoas compulsivas.
Foto: Unsplash, 2021
Segundo Zanoncini, o mercado comercial usa uma ferramenta chamada “marketing de escassez”, o qual conta com uma ideia de urgência para vender mais. Sua característica é simples: são divulgadas diversas promoções com slogans como “apenas hoje”, para queimar estoque” e afins. “Muitas pessoas, nesse impulso, acabam comprando e, depois que chega, nem sempre é algo que ela quer ou que vai usar.”, diz ela.

Porém, o problema não está no evento em si, mas no descontrole. A proposta, quando bem aproveitada, pode ser útil na hora de conquistar bons descontos e excelentes formas de pagamento, que resultam em uma economia significativa. Para isso, a especialista dá a dica: tenha uma organização prévia.

“Não chegue na última semana de novembro para ver o que está em promoção e comprar parcelado por todo o próximo ano”, afirma. A dica é estudar e conhecer os produtos desejados, procurando por aqueles que costuma comprar durante os outros 11 meses do ano. “Por exemplo, meu filho sempre usa essa fralda X. Na Black Friday, eu consigo saber o preço delas e também sei se aquele anúncio da é desconto mesmo ou enganação.”, indica.

Outra dica da especialista é evitar as tentações. Segundo ela, se a pessoa sabe da sua situação emocional, o ideal é passar longe dos sites e comércios que estarão com promoções. Desta forma, você consegue evitar a “espiadinha perigosa”, como a economista chama as visitas aos portais e lojas por curiosidade.

Porém, se a tentação de compra for grande, aproveite com sabedoria. “O ideal, para economizar, é fazer uma lista do que precisa, do que usa, de como você pode poupar. Com base nessa lista, use buscadores com histórico de preços para saber o histórico para ver quanto é o preço mais baixo, para comparar durante as promoções e fazer um bom negócio”, conclui.
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