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Resultados de um Devaneio

“Vocês estão aqui para pegar aqueles arquivos e caírem fora. Todos entendidos?”
            Isso foi tudo que aquela brutamontes nos disse antes de nos despachar para a missão em um bairro de gente da alta sociedade, onde a competição estava sendo sediada. As ruas eram coloridas, os postes decorados, as fachadas das casas tão floridas quanto das lojas e uma mistura aromática de perfumes caros e doces requintados pairava no ar. E as pessoas. Todas muito bem-vestidas com cores, adornos e maquiagens extravagantes. O tanto de informação que passava diante dos olhos era de dar dor de cabeça, o que me fazia pensar: “será que eles vivem bem aqui sem uma quantidade razoável de dipirona?”
          Quem nos contratou deve estar realmente muito interessado no que tem naquele hard-drive, porque é uma boa distância do bar onde perambulamos até aqui. E o preço? Disse a Genoveva que nos pagaria 2 mil bateladas para cada quando terminado o serviço. Praticamente ganhamos na loteria! E só precisaríamos dar dez porcento do valor para o povinho que vamos contratar para nos ajudar a entrar no tal prédio onde o pacote se encontra. Local interessante, sabe? São setenta e cindo andares bem distribuídos, ele é bem largo na base onde ocorrem as competições esportivas, mas os desfiles de marcas chiques ficam mais ao topo. E é para lá que vamos.
            Quando chegamos nos arredores, nossa primeira missão era achar a entrada para os esgotos para encontrar com os Sewers, o que demorou menos do que esperávamos. O beco onde estava a porta era bastante óbvio: no meio de toda aquelas cores, cheiros e sabores, tinha um corredor maldito, escuro e gosmento para onde todos sabiam que ia parar seus dejetos, mas preferiam ignorar esse fato. Não era mesmo de sua conta se suas necessidades iam de fato para algum lugar ou se só poluíam alguma outra região, o importante era que sua casa cheirava a rosas e estava sempre arrumada. Passamos pela porta e eu já agradecia por ter tido a brilhante ideia de vir para cá com galochas ou estaríamos sentindo o lodo até por entre os dedos.
           A gratidão também veio quando eles nos deram máscaras com filtros para conseguir respirar com mais facilidade ali embaixo. “Pessoas de fora dificilmente conseguem lidar com o ar aqui embaixo” foi o que disseram e eu não posso negar que tinham razão. A operação começou e passamos por muitos corredores que mais pareciam labirintos que se formavam embaixo da alta estrutura até chegarmos numa pequena porta que nos avisava em uma pequena placa gravada: Elevador de Serviço.
            - Era essa a ideia de vocês? A gente não se parece nada com uma dupla de zeladores.
            - Não esquenta. Vocês vão subir pro andar trinta e quatro, caminhar sorrateiramente até a lavanderia e furtar uns trajes de zeladores. Provavelmente vão achar um carrinho de equipamentos no meio do caminho. E então, o que me dizem?
            - Acho que não temos outra escolha, C. É uma merda, realmente, mas vai ser o jeito.
            - Foi de propósito, né?
            - A “merda”? Juro que não.
            - Tá. A gente vai fazer isso, vai ser entrar e sair. Certo?
            - Certo.
            E partimos para dentro do elevador que era acolchoado pelas paredes com um veludo vermelho vinho desgastado e um cheiro de mofo, como se permanecesse fechado por longos períodos. Um sino dispara nos avisando que chegamos ao andar desejado e saímos daquele quadradinho em busca de informações ao redor. Uma placa disfarçada pelas muitas decorações nos indicava a direção que seguir o corredor até chegar na lavanderia que, por sorte, estava vazia de funcionários, mas cheia de trabalho. As máquinas batiam as roupas ferozmente observando as pilhas do lado de fora que esperavam sua vez para serem devidamente limpas e foi desses montes que encontramos dois conjuntos de zelador que nos serviram bem. Os sujeitos estavam certos, até um carrinho com balde e esfregão tinha sido deixado para trás. E assim seguimos.
            Pela quantidade de segurança do lado de fora, achamos que o trabalho seria bem mais trabalhoso do que realmente foi. Bem no fim, para a nossa surpresa, nossa maior dificuldade foi caminhar pelos corredores arredondados que mais pareciam túneis de minhoca pelos andares até encontrarmos as escadas, porque o elevador só vai até o andar cinquenta e nove. “Quem foi o imbecil que esqueceu de colocar um jeito mais confortável de subir do que escadas sendo que são mais de vinte andares ainda acima?” me perguntava arfando, sentindo o suor descendo as têmporas por debaixo do boné de faxina. Havia sim pessoas dentro do prédio, mas elas não se atreviam chegar perto da gente, principalmente pelo cheiro. E quando encontrávamos guardas, dávamos uma corrida mais apertada gritando: “Emergência no banheiro do setor à frente! Com licença!” e eles nos abriam passagem confusos, mas sem nos perseguir depois com perguntas que queríamos evitar.
            Jurávamos que não demoraria tanto, mas acho que, gloriosamente, duas horas depois subindo e andando por aí até encontrar a sala de segurança com os arquivos, chegamos ao nosso destino. E lá estava. A sala trancada por um conjunto de códigos para dificultar o acesso de quem não tivesse um cartão. Mas nós não somos idiotas. Ora, fomos contratados exatamente para isso e estávamos sim muito bem-preparados. Há dois andares atrás, C me ajudou a encenar um momento que tropecei no carpete felpudo e alto com bolinhas amarelas onde derrubei meus óculos (falsos) e fingi procurá-los naquele mar de pelos perto de alguns seguranças que conversavam distraídos. Foi um feito. Eles se abaixaram para ajudar e eu “acidentalmente” passei minha mão na bunda de um deles.
           Veja, eu e C acabamos nos comprometendo a fazer as coisas mais vergonhosas para completar nosso trabalho, mas às vezes vale a pena, eu garanto. E dessa vez não foi diferente. Eu me desculpei em seguida, me virando para outro setor de bolinhas do carpete logo depois de conseguir furtar o cartão do cinto do guarda e esperei alguns momentos antes de gritar “achei!” e me levantar com os óculos na cara pendendo para um lado. Agradecemos a ajuda e continuamos nosso caminho justificado por uma sequência de vasos entupidos no banheiro do andar debaixo. Foi assim que obtivemos sucesso na hora de destrancar a porta da segurança. Sentei-me na cadeira em frente às câmeras e fiquei vigiando qualquer movimento estranho enquanto C procurava o que viemos pegar.
              A parte mais rápida do trabalho, devo confessar, com suas habilidades, C encontrou o arquivo em menos de três minutos. Disse que não merece tanto crédito assim, porque o documento havia sido salvo em caixas altas “CAMPEÃO SECRETO DO TORNEIO DE AMANHÃ A TARDE_NÃO MEXER”, mas achei bobagem, dou-lhe todo crédito que merece, pois eu não sei nem digitar num teclado usando outros dedos além dos indicadores. Com o arquivo finalmente gravado, corremos nosso caminho inverso, mais uma empreitada de longas duas horas até chegarmos na saída. Os Sewers nos informaram o número de sua caixa postal para enviarmos o pagamento e nos ajudaram a chegar até os limites do bairro onde a grande Genoveva nos esperava roncando dentro da van de braços cruzados.
            Alguns toques na janela do motorista a fazem abrir os olhos devagar se assustando com o barulho que ela mesma produz. Nos posicionamos dentro do carro e ela começa a dirigir para longe.
            - Vocês demoraram.
            - Você nem faz ideia.
            - O lugar era enorme, um labirinto.
            - ...Vocês estão fedendo.
            - É, bom, pegamos ajuda dos Sewers.
            - E andamos por quase cinco horas dentro daquele prédio fechado maldito.
            - Foi um inferno. Mas conseguimos o que o cliente queria.
            - Ótimo, ao menos isso.
            Quando chegamos ao centro dos mercenários, fomos direto para a cabine onde o cliente nos esperava com um notebook ligado na VPN. Era um carinha magrelo e bastante agitado com roupas curtas que balançava a perna freneticamente. Ele levantou quando nos viu e já estendeu as mãos em busca do HD para plugá-lo na entrada USB e verificar os arquivos. Era um documento Word malfeito que dizia “Top 10 vencedores do campeonato” e seguia do décimo lugar até o primeiro. Todos nos ajeitamos ao seu redor curiosos para entender o que tanto o afligia. Quando a primeira imagem apareceu na tela, tive um surto que só crescia ao surgir das seguintes. Um surto de fofura. O dono do filhote ganhador do segundo lugar do campeonato de filhotes mais fofos da cidade nos contratou para aliviar a ansiedade que o matava sobre o resultado. Mas o primeiro lugar me deu uma dor no peito que me fez desmaiar e eu vi o mundo ao meu redor escurecendo aos poucos enquanto ouvia os xingos e choros do carinha frustrado de ter perdido o grande prêmio. 
          Quando abri os olhos, estava com o corpo esticado na cama, a cabeça posta de mal jeito no travesseiro, o fone de ouvido tocando uma música suave enquanto meu celular vibrava na minha mão impaciente, reproduzindo um vídeo de filhotes fofinhos fazendo palhaçadas. Fiz força para levantar-me, ajeitei os óculos tortos no rosto e caminhei até a cozinha para comer alguma coisa.
 
           “Caramba... Eu cochilei.”
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