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Entrevista | Quem agressor ama... inocente lhe parece!

QUEM AGRESSOR AMA
INOCENTE LHE PARECE
A violência doméstica inclui qualquer tipo de abuso físico, sexual, psicológico, emocional ou económico, praticado por um cônjuge ou namorado, como bater, estrangular, pontapear, acorrentar, morder, arremessar objetos, privação monetária, controlo de comportamentos, abusos sexuais, perseguição, ofensas verbais, entre outros.

Podemos identificar três fases: primeiro ocorre um aumento de tensão, gerado pelo stress quotidiano, geralmente acompanhado por injúrias e/ou ameaças, depois dá-se o ataque, durante o qual o agressor maltrata a vítima, e, por fim, a chamada “lua-de-mel”, caracterizada por pedidos de desculpa e promessas de que nunca mais se irá repetir.

Contudo, o ciclo repete-se, geralmente com maior frequência e intensidade, podendo demorar meses ou até anos, culminando ou não em homicídio.

Como saber se é vítima?

É vítima de violência doméstica se tem receio do seu companheiro, das suas reações face a opiniões díspares, se sente os seus sentimentos ignorados, se é ridicularizada perante outras pessoas, se foi agredida ou ameaçada, independentemente do seu status social, idade, nacionalidade, cultura e ideologias.

É também vítima se é alvo de ciúmes excessivos, se é forçada a ter relações sexuais, se lhe são pedidas justificações para tudo o que faz ou se precisa de autorização para realizar as suas ações quotidianas.

Como reagir?

Cada mulher tem a sua forma de reagir, dependendo do tipo de abuso, do tipo de relação e da personalidade de cada um. Contudo, a violência doméstica não deve nunca passar impune.

Não se isole, não se anule, não se deixe dominar. Reaja, lute e denuncie. Jamais se culpabilize e, da mesma forma, não tente desculpar o agressor. Nada justifica o desrespeito por outra pessoa. A integridade é um direito humano.

“Quanto mais me bates mais eu gosto de ti”, reza o provérbio português. Não é verdade. A vítima não é masoquista: apresenta uma baixa autoestima e medo. Noutras vezes, já se encontra tão traumatizada e deprimida que não consegue reagir. Nesses momentos, precisa de pedir ajuda: aos familiares, aos amigos, à polícia ou a outras entidades, como a APAV.

Hoje, porque Portugal está de luto pelas 13 mulheres que faleceram vítimas de violência doméstica, desde o princípio do ano, entrevistámos Esmeralda, que nos contou, na primeira pessoa, a sua experiência de vida.

- Esmeralda, fale-nos da sua relação com o Alfredo. Como o conheceu?

Conheci o Alfredo na faculdade. Estudámos medicina. Não foi amor à primeira vista, pois havia qualquer coisa no olhar dele que me deixava desconfortável. Depois de muita insistência, começámos a sair. Reparei que ele bebia demais. Começava cedo. Quando ganhei mais confiança, fiz-lhe esse reparo e ele começou a reduzir. Percebi também que tinha perante mim uma pessoa mazelada pela vida, apesar da tenra idade.

Meses depois, oficializámos o namoro. Havia entre nós algo diferente. Uma tensão, um fogo, muita partilha e união. O Alfredo tinha alguns ciúmes, ora de amigos que me telefonavam, ora de pessoas que eu já conhecia há muito e me falavam na rua. Desconfiava de mensagens que recebia e de sítios que frequentava. Afastei-me, inconscientemente e aos poucos, de tudo o que era o meu passado e entreguei-me, de corpo e alma, à nossa relação.

Não me importava porque não me sentia sozinha, até à nossa primeira grande discussão, seguida de muitas outras, cada vez mais intensas e descontroladas. Os insultos iam desde os mais corriqueiros aos mais ofensivos, proferidos em tom de voz elevado. As discussões terminavam, geralmente, cada um para seu lado, depois de disputas acesas, pois não morávamos juntos. Eu rebaixava-me, justificava-me, fazia de tudo para me mostrar de confiança: só tinha olhos para ele e não o queria perder.

Atingimos alguns auges. Num deles, estava na casa do Alfredo e ele começou a partir objetos e a atirar cadeiras pelo ar. Numa outra situação, bateu nele próprio. Numa outra, chegou a apertar-me o pescoço. Terminei algumas vezes o namoro, mas acabava por voltar. Estaria eu viciada? Seria amor ou doença?

Passada a nossa mais longa separação, de quase um ano, durante a qual nos envolvemos com outras pessoas, os nossos caminhos voltaram a cruzar-se e percebemos que não sentíamos por mais ninguém aquilo que sentíamos um pelo outro. Casámos.

Os primeiros dois anos foram espetaculares. Tínhamos amadurecido, crescido, aprendido. Depois, engravidei e nasceu a Raquel. No período das cólicas, mal nos deixava dormir. Chorava muito. Reparei que o Alfredo começou a chegar cada vez mais tarde a casa, umas vezes de mau humor, noutras vezes indiferente. Não pegava na filha e pouco falava comigo.

Numa certa noite, fiquei à espera dele até às 3 da manhã. Claro que fiquei aborrecida e perguntei-lhe por onde tinha andado. A resposta foi uma bofetada. Uma bofetada violenta, que me calou. No dia a seguir, ainda tinha marcados os dedos. Pediu-me desculpa, depois de sóbrio. Chorou, explicou que andava exausto, que não sabia como lidar connosco, que estava frustrado com o trabalho. Enfim, perdoei-lhe.

Para meu infortúnio, uns meses após esse episódio, fiquei desempregada. Não tinha direito a subsídio e cheguei a um ponto em que o dinheiro na minha conta começou a escassear. Fiquei completamente dependente do Alfredo, que me dava um género de mesada para me alimentar e para a bebé.

Queria pedir ajuda à família, mas tinha vergonha. Afinal, para todos os efeitos, eu era médica. Suportei uma situação de insultos, agressões cada vez mais violentas, abandono, fome e até obrigada fui a ter relações com ele enquanto estava bêbado.

Odiava-o e odiava-me por continuar a permitir aquilo. Nas noites em que ele não vinha para casa, não dormia, pois tinha receio de que regressasse para me agredir. Nas noites em que ele vinha para casa, não dormia, pois passava horas a sofrer flagelações. As manhãs, independentemente do que se tinha passado de madrugada, eram geralmente usadas para pedidos de desculpa e olhares de arrependimento. Eu sentia-me baralhada, magoada e imponente, porém não tinha dúvidas de que tinha de agir, não só por mim, mas também pela minha filha, que já começava a perceber o clima familiar. Foi então que pedi o divórcio.

- Como reagiu o seu marido ao seu pedido?

Num primeiro momento, anestesiado. Mais uma noite perdida na rua. Conseguia sentir o cheiro a álcool. Não havia altura ideal para fazer o comunicado. Só conseguia vê-lo de manhã, antes de ir trabalhar, e muito depois das doze badaladas. Larguei a "bomba" e fui-me deitar. Ele ficou no sofá, com um copo de whiskey na mão. Adormeci de tanto chorar. Cansada de viver. Desesperada.

Custa-me falar disto ainda… faço de tudo para não viajar para as memórias que tenho daquele episódio, mas partilho-o para que outras mulheres possam agir antes de se tornarem num cliché, como eu.

Acordei com uma dor horrível no rosto. Uma sensação de ardor e dormência. Embalada pelo sono, abri os olhos e senti outra dor profunda, e outra, e outra. Estava a ser esfaqueada. Sentia o sangue quente a escorrer-me pela face, misturado com as lágrimas. Nem gritar conseguia. Estava em transe.

No meio daquele turbilhão de emoções, lembrei-me de que tinha uma lima em cima da mesa. Foi a minha sorte. Consegui alcançá-la e espeitei-a com toda a força na perna do Alfredo. Assim que ele cedeu, empurrei-o, levantei-me e tranquei-o no quarto. Parecia que estava num filme, literalmente, mas pelos vistos os filmes inspiram-se na realidade.
Pequei na Raquel e olhei para o espelho. Estava desfigurada. Contudo, não foi isso que me travou. Saí porta fora e corri pela rua. Não tinha telefone, não podia bater à porta de ninguém, apenas precisava de fugir, daquela casa, do meu casamento, daquela vida e da pessoa fraca em que me transformei com o passar dos anos.

Felizmente, a esquadra da polícia era mais ou menos perto. Consegui pedir socorro.

- O que aconteceu depois dessa noite?

Depois disso… tive de me render e contar à minha família. Ficaram escandalizados. Mudei-me para casa da minha mãe, até hoje. Não consigo estar sozinha. Morro de medo. Aliás, ainda vivo atormentada por aquelas imagens. Todas as noites tenho pesadelos horríveis. O Alfredo foi preso e espero que lá permaneça para sempre!

Tenho feito terapia, tenho tentado recompor-me e o meu objetivo é, daqui a uns meses, ir viver para fora. Levar a minha filha e recomeçar. Podia ter morrido, mas não morri e, por isso, sinto-me grata. Grata por poder ver a Raquel crescer. Apenas sinto uma culpa enorme de a ter sujeitado a tanto. Apesar de muito nova, estou certa de que se apercebeu de muitas coisas…

- Que conselho deixa a outras mulheres que passam pela mesma situação?

O meu conselho é que ouçam sempre o coração e sigam os seus instintos. No fundo, eu sabia que aquela pessoa, que por tanto já me tinha feito passar enquanto namorávamos, nunca iria trazer-me nada mais do que sofrimento.

Não tenham vergonha de pedir ajuda, não tenham medo de se sentirem sozinhas. Pior do que a solidão é estar com alguém que não nos ama, não nos estima, que nos rebaixa e nos agride. É estar horas a fio sozinha em casa, com medo de um sujeito que pode, a qualquer momento, entrar pela porta e invadir o vosso espaço pessoal. Isso, sim, é estar abandonado.

Se não tiverem família nem amigos, existem diversas entidades prontas a prestar auxílio, a um telefonema de distância. Arrisquem, libertem-se, ajam, mas nunca coloquem em risco a vossa vida nem a vida das pessoas que amam.
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