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Texto acadêmico - Dignidade Humana


O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana encontra-se presente em tudo onde se manifeste a essência do ser humano e, desta maneira, vinculado ao principal postulado do constitucionalismo moderno, os chamados direitos fundamentais da pessoa humana.

Em meio a um mar de tantas exclusões materializadas na sociedade brasileira, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e sua concretização ainda se configuram como um sonho distante numa sociedade tão pluralista como é a sociedade brasileira. O princípio, evidentemente, não possui a força mágica de assegurar o devido respeito e proteção à tão famosa e esperada “dignidade”, uma vez que o legislativo e o executivo ainda caminham a passos lentos na efetivação dos direitos fundamentais elencados na Constituição Federal de 1988. Resta, desta forma, a esperança de uma possível efetivação destes direitos por intermédio dos órgãos jurisdicionais.

Mas, o que vem a ser, primeiramente, “principio”?
Para Eduardo CAMBI, “no Direito, os princípios podem ser vistos como stardards juridicamente vinculantes baseados na ‘idéia de direito’ ou nas exigências de ‘justiça’. Portanto, os princípios jurídicos condensam os valores mais relevantes para se dizer o que o Direito é e para que se destina”.[1]

Os princípios devem ser os norteadores do intérprete, a fonte primeira onde o operador do Direito vai buscar as respostas para as questões que necessita elucidar.

A palavra “princípio” pode ter sentidos diversos como, por exemplo, começo ou início. Na Constituição Federal, não é este o sentido que se aplica.

De acordo com José Afonso da Silva, “princípio aí exprime a noção de ‘mandamento nuclear de um sistema”.[2]
Foi justamente a partir da Segunda Guerra Mundial que se iniciou, a nível mundial, um processo de transformação na ciência do direito, pois antes, tudo girava em torno da norma positivada, e hoje, esta cede espaço aos valores.

Foi justamente devido ao apego cego às normas o fato contribuinte para que se fundamentassem todas as atrocidades cometidas pelos regimes totalitários, especialmente o nazismo e o fascismo.

A consciência de que o apego exagerado à norma era prejudicial levou o direito a repensar o positivismo jurídico. Não houve um retorno às doutrinas do direito natural, mas tão somente uma reformulação do direito positivo clássico. Valores foram inseridos no direito positivo.

Os princípios passaram a ser reconhecidos como detentores de conteúdo valorativo, sendo reconhecidos vários deles, como o princípio da dignidade da pessoa humana, da igualdade, da solidariedade, da legalidade, da democracia, funcionando como eixos centrais para a construção das normas jurídicas, sendo obrigatória a observância daqueles para a formulação das normas. O direito constitucional foi o que mais se transformou com a noção dos princípios como norteadores da norma jurídica.
 

Para que uma norma jurídica venha a existir, é necessário que a sociedade atribua valor a determinado objeto e o tutele com mecanismos eficazes passíveis de atingir, potencialmente, o grau máximo de violência legítima contra o transgressor dos limites socialmente impostos.

Primeiramente, porém, cabe aqui ressaltar a necessidade de não confundir “princípio” com “valor”.
Os princípios fundamentais que nortearam as normas e que se encontram elencadas dentro de Constituição escrita representam determinados valores transcendentais ao ordenamento jurídico-positivo do Estado. Isto é, os princípios se configuram como elementos metajurídicos que visam regular o direito positivo.

Os valores, em breve síntese, são o substrato dos princípios, aqueles bens gerais que uma determinada sociedade escolheu salvaguardar, proteger, tutelar. Todas as sociedades possuem bens de caráter subjetivo que desejam proteger e respeitar, não sendo estes bens imutáveis, mas em constante transformação e valoração, uma vez que a própria sociedade se encontra em contínua mutação.

Eduardo CAMBI desdobra, com precisão, a distinção entre princípios e valores:
“Porém, os princípios não se confundem com os valores, pois: i) o princípio tem um grau de concretização maior que os valores, possuindo um início de previsão e de conseqüências jurídicas; ii) os princípios estão dotados de sentido deontológico (a deontologia é a parte da filosofia em que se estudam os fundamentos e os sistemas de moral), enquanto que os valores estão dotados de sentido teleológico (a teleologia é o conjunto de especulações aplicadas à noção de finalidade, de causa final); iii) os princípios obrigam os seus destinatários igualmente, sem exceção, a cumprirem as expectativas generalizadas de comportamento, enquanto que os valores devem ser compreendidos como sendo preferências intersubjetivamente compartidas; expressam o caráter preferencial de bens pelos quais se considera, em coletividades específicas, que vale a pena lutar e que são adquiridos ou realizados por ações distintas a objetivos ou finalidades. Por esta razão, os valores são bens atrativos e os princípios, normas em potencial”.[3]

Ou seja, enquanto os valores se configuram como bens atrativos para um determinado grupo social que sente a necessidade de salvaguarda-los, os princípios agregam estes valores, revestindo-os de validade jurídica por meio de uma constituição. Os valores, como foi o dito, são o substrato para os princípios e ambos, conjuntamente, se transformam no eixo motriz, a espinha dorsal do ordenamento jurídico vigente.

Não se pretende, aqui, abordar com maior profundidade a diferenciação entre princípios e regras jurídicas, mas, sinteticamente, é possível afirmar que os princípios possuem um maior grau de abstração do que as regras[4], sendo estas as concretizadoras dos princípios e, por conseguinte, dos valores.

O Direito se expressa por meio de normas. As normas se expressam por meio de regras ou princípios. As normas podem conter cláusulas gerais.

As regras buscam disciplinar uma determinada situação e, quando esta situação se manifesta, a norma tem incidência, mas quando não ocorre, não há incidência. Quando duas regras colidem, temos um “conflito” de regras. Diante do caso concreto, uma só será aplicável, pois uma afasta a aplicação da outra. O conflito entre regras deve ser resolvido pelos meios clássicos de interpretação: a lei especial derroga a lei geral, a lei posterior afasta a anterior, por exemplo.

Já os princípios são as diretrizes gerais de um ordenamento jurídico. Tem incidência muito mais ampla do que o das regras. Entre princípios é possível que exista colisão, mas não conflito. Quando colidem, não se excluem. Sempre podem ter incidência em casos concretos, às vezes, concomitantemente dois ou mais deles.

Os princípios existem para serem interpretados de modo que esta interpretação deva servir sempre para resguardar os valores embasadores do princípio.

Com relação às chamadas cláusulas gerais, cumpre ressaltar que o Código Civil de 1916 detinha feição nitidamente individualista, reflexo da concepção político-filosófica que passou a vigorar após a Revolução Francesa, onde o homem foi colocado no centro do mundo e capaz, com a sua vontade e a sua razão, de ordená-lo. Consagrou-se a primazia da vontade e submeteu os contratantes ao que constava do acordo, devendo este ser interpretado de acordo com a intenção das partes.

Ruy Rosado de AGUIAR JÚNIOR destaca a quase ausência absoluta de cláusulas gerais no Código Civil de 1916, o que significou, na prática, "o afastamento da possibilidade de aplicação judicializada dos contratos de acordo com uma preocupação de realizar a justiça material".[5] Assim, a justiça era o exato cumprimento das cláusulas do contrato.

Adotando-se um sistema fechado, o legislador veio a desprezar os usos e costumes locais, oferecendo privilégio à regra constante na lei, o que demonstrou a arrogância do legislador, que se julgava suficiente para tudo prever e regular.
Os princípios que vieram a nortear o direito contratual adotados pelo Código Civil de 1916 foram: 1) princípio da liberdade contratual; 2) obrigatoriedade do contrato (pacta sunt servanda); 3) relatividade dos efeitos contratuais.
Assim, os princípios acima descritos representavam, a um só tempo, que as partes eram livres para convencionar o que quisessem e como quisessem, desde que fossem respeitados os limites de ordem pública. Além disso, o contrato tinha força de lei e seus efeitos não podiam beneficiar nem prejudicar terceiros.

Estes princípios, com o passar do tempo, já não estavam mais hábeis a tratar dos contratos com toda a plenitude, tornando-se necessário contextualizá-los de acordo com as novas relações sociais, políticas e econômicas ocorridas durante o período de vigência do Código Civil de 1916. Era preciso flexibilizar a premissa da autonomia da vontade e o da obrigatoriedade dos contratos por meio de mecanismos de combate à desigualdade substancial entre as partes e exigir uma forma mais participativa do Estado, bem como de reconhecer a projeção externa dos efeitos dos contratos sobre os interesses de terceiros[6].

Com o advento do Código Civil de 2002, uma nova roupagem foi apresentada, atualizando-o.

O juiz João HORA NETO comenta que o Código Civil de 2002, de acordo com a doutrina é considerado o Código do Juiz, do Magistrado:

“(...) haja vista que contém inúmeras cláusulas abertas, isto é, normas de conteúdo impreciso, vago e indeterminado, impondo ao Estado-Juiz uma maior liberdade para a solução da novel casuística, inclusive facultando o uso de conceitos metajurídicos na aplicação da norma ao caso concreto - o que representa, a meu juízo, um avanço estupendo, na medida em que abre o sistema jurídico civil ao mundo moderno, diante da mutabilidade do Direito, inserido numa sociedade plural, massificada e complexa”.[7]

O atual Código Civil adotou o modelo de cláusulas gerais como técnica legislativa, “o que vêm a ser normas jurídicas legisladas, incorporadoras de um princípio ético orientador do juiz na solução do caso concreto, autorizando-o a que estabeleça, de acordo com aquele princípio, a conduta que deveria ter sido adotada no caso”[8].

Nesse contexto, Ruy Rosado de AGUIAR JÚNIOR observa que "do emprego da cláusula geral decorre o abandono do princípio da tipicidade e fica reforçado o poder revisionista do Juiz, a exigir uma magistratura preparada para o desempenho da função, que também deve estar atenta, mais do que antes, aos usos e costumes locais". [9]

De acordo com Judith MARTINS-COSTA, a vantagem das cláusulas gerais “é exatamente a mobilidade proporcionada pela intencional imprecisão dos termos da fattispecie que contém, pelo que é afastado o risco do imobilismo porquanto é utilizado em grau mínimo o princípio da tipicidade”.[10]

Neste sentido, a principal função das cláusulas gerais é a de permitir, num sistema jurídico de direito escrito e fundado na separação das funções estatais, a criação de normas jurídicas com alcance geral pelo juiz. Tal função, em última análise, permite que o código acompanhe a velocidade das mudanças sociais que ocorrem dia-a-dia em nosso país, mantendo-no sempre atualizado.

Os valores éticos são uma das principais vertentes orientandas do novo Código Civil. Não é possível deixar de reconhecer, em nossos DIAS, a exigência precípua dos valores éticos no ordenamento jurídico.

A opção por normas genéricas ou cláusulas gerais, sem a rigorosidade conceitual, visa possibilitar a criação de modelos jurídicos de interpretação pelos advogados e juízes e assim proporcionar a contínua atualização dos preceitos legais.
Enquanto que a legislação anterior ainda estava atrelada à idéia de deixar ao intérprete um espaço muito pequeno, passa-se a ter uma lei mais flexível e as cláusulas gerais constituem o novo e fecundo desafio para a jurisprudência feita por advogados e juízes.

As cláusulas gerais contêm termos ou expressões de textura aberta, dotados de plasticidade, as quais fornecem um significado inicial a ser complementado pelo intérprete, levando em conta as circunstâncias do caso concreto. A norma em abstrato não contém integralmente os elementos de sua aplicação. Ao lidar com locuções como ordem pública, interesse social e boa fé, dentre outras cláusulas gerais, o intérprete precisa fazer a valoração de fatores objetivos e subjetivos presentes na realidade fática, de modo a definir o sentido e o alcance da norma. Como a solução não se encontra integralmente no enunciado normativo, sua função não poderá limitar-se à revelação do que lá se contém; ele terá de ir além, integrando o comando normativo com a sua própria avaliação.[11]

Além disso, têm função de integração dos diferentes princípios e direitos adotados em nossa sociedade pluralista, consistindo na possibilidade do juiz aplicar a lei com ampla liberdade axiológica, ponderando os interesses em conflito no caso concreto.

Conforme explica Cármen Lúcia Antunes ROCHA:
“Se a liberdade (especialmente a individual) marcou o primeiro momento histórico moderno da conquista dos direitos fundamentais (dominando a própria concepção dos direitos de primeira geração) e a igualdade jurídica fecundou a segunda etapa (direitos de segunda geração), coube ao terceiro mote da trilogia revolucionária setecentista, refeito e rebatizado, assinalar a conquista dos direitos denominados de 'terceira geração': a solidariedade social juridicamente concebida e exigida colore o constitucionalismo e tinge com novas tintas o princípio da dignidade humana. Agora, não mais apenas o homem e o Estado, ou o homem e o outro, mas, principalmente, o homem com o outro. Como direitos fundamentais da solidariedade social constitucionalmente positivada foram reconhecidos o direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente saudável, à informação e comunicação e ao patrimônio comum da humanidade.” (grifo da autora)[13]

A partir do momento em que o trabalhador contribuiu para a construção de um sistema de seguridade, em respeito ao princípio da solidariedade social (art. 3o, I, CF), é mais que legítima sue expectativa de que, diante de adversidades, seja garantida a manutenção de seu padrão de vida e das pessoas que com ele convivem.

Sendo o princípio da solidariedade social uma norma com sentido aberto, compete ao intérprete ou magistrado oferecer-lhe a completude. O próprio princípio fundamental da dignidade da pessoa humana tem sentido aberto, cabendo ao magistrado apresentar o conteúdo que lhe cabe diante dos casos concretos.

A um Estado que se diz democrático não está facultado deliberar sobre a orientação sexual de seus cidadãos e assim assegurar quais direitos sociais lhes cabem.

Neste sentido, importante a lição de John RAWLS:
"(...) numa sociedade justa as liberdades da cidadania igual são consideradas invioláveis; os direitos assegurados por justiça não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo de Interesses sociais. (...) as instituições são justas quando não se fazem distinções arbitrárias entre as pessoas na atribuição de direitos e deveres básicos e quando as regras determinam um equilíbrio adequado entre reivindicações concorrentes das vantagens da vida social".[16]
No Código Civil de 2002, a família é colocada como instrumento de proteção da dignidade humana, devendo ser esse entendimento utilizado para a leitura de todos os institutos típicos do direito de família.

Com a abertura do sistema de direito privado a valores constitucionais e metajurídicos informadores do sistema, haverá a garantia de eficácia do princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, é necessária a adoção de “cláusulas gerais”, como a constante no Código Civil vigente.
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