Não a conheci, mas parece que convivi com ela ao longo dos anos. A Lina marcou uma presença forte na vida da minha mãe e, inevitavelmente, na minha. Para mim, a Lina representou a heroína em regime de exclusividade e restrição de uma pequena parcela do mundo, pois das histórias dos pequenos grandes heróis não reza a lenda, não costuma correr muita tinta nem tão pouco se lhes perpetua a memória em registo cinematográfico. No caso da Lina, tal seria efetivamente impossível: poucas palavras para além das sagradas poderiam descrevê-la e a sua aura era demasiado grande e livre para caber dentro de um filme. Para além disso, nada do que fosse passível de comercialização seria concebível no conceito de sacrifício missionário e de valorização do trabalho enquanto meio de edificação espiritual refletidos em todas as ações da Lina. 

«A Lina não pertencia a este mundo» era a descrição mais curta e mais vasta que dela fazia a minha mãe. A mim, custava-me a entender e soava-me a justificação eufemística fabricada para ludibriar a minha perspicácia precoce. No entanto, fingia perceber o alcance imaterial das suas palavras e pedia que me repetisse a «história da Lina» de quando em quando, para me ir convencendo da ordem lógica e natural das coisas e aceitando a morte apenas como a meta do mundo físico… Troquei muitas vezes a violência crónica do lobo mau e o cinismo pungente do “felizes para sempre” para ouvir a versão lírica e comovente desse acontecimento simultaneamente trágico e redentor. 

De cada vez que a minha mãe me relatava os acontecimentos, eu sentia que ela se esquecia mais que eu era a sua interlocutora e o cuidado em nivelar a linguagem era menor. Assim, eu ia sabendo cada vez mais pormenores.  A Lina tinha abraçado uma missão superior àquela para que se tinha proposto na Fonte Boa, em Moçambique, pelos Leigos para o Desenvolvimento. Movida pela fé e pela coragem da Filha que cumpre os desígnios do Pai, em nome do Amor maior, partiu para ser mais feliz … e foi. Nisto acreditou sempre a minha mãe, mesmo quando se engasgava de saudades, de incompreensão e da culpa de não se ter despedido. Só na última vez que me contou de uma mensagem de parabéns que, apesar de todas as dificuldades de comunicação, a Lina lhe havia enviado em junho, percebi que já se perdoara, como se finalmente chegasse o relatório da entrega da sua resposta. A nossa ida a Aguiar da Beira para visitar a família da Lina, os lugares cheios da Lina e a sua “morada” no cemitério onde reinava a paz dos anjos, constituiu, para mim, um salto na minha maturidade espiritual. Ali vi a minha mãe abraçá-la, falar-lhe e cantar-lhe e senti a força vibrante da resposta. Foi nesse momento que a reconheci. “A Lina também te conheceu, filha, carregou-te no colo e foi dela que recebeste a primeira Oração”, confirmou-me a minha mãe.
Depois dessa visita, fizemos ainda um périplo por Coimbra, onde a Lina e a minha mãe se conheceram. Visitámos as janelas da casa que as acolheu, as ruas até à Universidade por onde passavam a pé, a Igreja que recebia a Lina quase todos os dias, o Instituto Justiça e Paz onde estudavam, os recantos das confidências, risos, experiências e orações partilhadas. Ainda hoje, quando aí passo, me comovo e ouço a minha mãe a contar-me da Lina. Do mesmo modo que nos comovemos todos quando celebramos a 25 de dezembro o dia que Deus escolheu para te trazer ao mundo e, assim, passámos a valorizar o Natal noutra dimensão.
 O tempo passa e nós acumulamos memórias, mas há espíritos que perduram e se mantêm ao de cima, mostrando-nos o sentido imaterial da Vida, o único que Ela devia ter.

Obrigada Lina, pela Luz, pela Clarividência, pelo Verbo!
LINA
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LINA

Homenagem à minha amiga Lina, a sua coragem e o seu espirito de missão

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