Miguel Patrão's profile

Entrevista ao Professor João Fernandes

|Grande Entrevista a João Fernandes
 
 
 
 “O Universo coloca-nos todos os dias perguntas novas.”
 
 
 
Natural de Arcos de Valdevez, João Manuel de Morais Barros Fernandes sempre se interessou pelas “ciências do céu”. Com 48 anos é actualmente professor auxiliar do Departamento de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra e director do Observatório Geofísico e Astronómico da Universidade de Coimbra.
Depois da licenciatura em Matemática e Física, ramo de Astronomia, na Universidade do Porto, seguiu para doutoramento, em França, onde se dedicou ao estudo da evolução das estrelas. Já publicou cerca de 70 trabalhos de investigação e foi ainda responsável em Portugal pelo ano internacional da astronomia em 2009.
Nesta entrevista o professor aborda alguns pontos da sua vida e explica diversos temas de cariz científico da actualidade, havendo também ainda algum espaço para uma opinião sobre o Jornalismo Cientifico em Portugal. Acérrimo defensor do ensino da ciência, que considera fazer de nós “melhores pessoas”, dedica grande parte do seu tempo a palestras e sessões de divulgação, especialmente aos mais novos.
 
 
 
 
 
Miguel Patrão- Quando é que despertou o seu interesse pela astronomia?
João Fernandes- Houve dois momentos. O interesse pela astronomia tenho desde que me conheço, agora querer fazer da astronomia profissão, isso foi tarde. Há miúdos que querem ser astrónomos desde pequeninos, eu não queria. Gostava de astronomia, coleccionava artigos de jornal relacionados com astronomia mas não era aquilo que queria fazer na minha vida. Até ao meu 10º ano estava a encaminhar o meu futuro para a engenharia mas, depois, tudo mudou e decidi que queria ser astrónomo.
 
MP- O que o fez mudar de ideias?
JF- Foi a frequência na disciplina de filosofia. Quando andei no secundário raramente se falava de astronomia, excepto naquela disciplina. Era abordada a história das ciências e, nesse âmbito, figuras como Copérnico, Galileu ou Newton são absolutamente incontornáveis. O professor na altura, ou porque ele próprio gostava de astronomia ou porque os programas o obrigavam, passou algum tempo a falar de astronomia e isso despertou-me o interesse.
 
MP- Teve alguma fonte de inspiração ou personagem que o levou a seguir esta carreira?
JF- Há uma figura que é incontornável, eu diria à escala planetária, que é a figura de Carl Sagan. Foi um cientista em primeiro lugar e depois um divulgador de ciência que criou uma série chamada “Cosmos”. Esta série marcou indelevelmente uma geração pelo interesse não só na astronomia, mas pela ciência em geral.
 
MP- Depois de tirar a licenciatura de Física e Matemática Aplicada, ramo de Astronomia, no Porto, seguiu para o doutoramento em França. Porque não continuou os estudos em Portugal?
JF- Hoje em dia é possível que, se alguém quiser encontrar um orientador em Portugal para fazer o doutoramento em astronomia, o consegue fazer com enorme facilidade. Naquela altura não era assim. Havia muito pouca gente a trabalhar e a fazer investigação em astronomia e, portanto, o estrangeiro apresentava-se como uma opção natural.
 
MP- Que temas estudou no doutoramento?
JF- No doutoramento estudei essencialmente a evolução das estrelas. Saber como é que as estrelas nascem, como é que elas evoluem e como é que elas morrem, em particular as do tipo do sol.
 
MP- No que consistia este estudo?
JF- Quando olhamos para o universo, temos de ter consciência que estamos a olhar para um objecto que tem qualquer coisa como 14 mil milhões de anos. Ora é impossível para nós, seres humanos, seguir a vida de uma estrela desde que ela nasça até que ela morre. Uma estrela como o sol vive 10 mil milhões de anos. Portanto a única maneira de poder estudar a forma como o sol vai ser no futuro e como ele foi no passado é estudar as outras estrelas, algumas que estão a nascer e outras que já estão a morrer. Além disto, há também um outro factor a ter em conta. Ao estudar estrelas do tipo do sol há sempre esperança de um dia se poder encontrar planetas, em torno dessas estrelas, que tenham vida.
 
MP- Acredita que essa vida possa existir?
JF- Acho que é altamente provável. Podemos fazer uma conta muito rápida. Se existem centenas de milhares de galáxias, e que cada uma terá números de estrelas a rondar os 10 a 100 mil milhões, por que carga de água é que só aqui na terra é que apareceram formas a que chamamos vida? E até pode ser vida completamente diferente da nossa, mas a primeira tendência é tentar encontrar vestígios daquilo que já se conhece. Se um dia for encontrado algum planeta que tenha oxigénio, água e metano, é altamente provável que tenha vida tal como a que nós conhecemos.
 
MP- Qual seria a importância de uma descoberta neste campo?
JF- Acho que teria muito mais importância cultural do que propriamente do ponto de vista científico. Do ponto de vista científico seria uma grande descoberta, mas a percepção que o homem passaria a ter de que não estava verdadeiramente sozinho no universo podia mudar a forma que nós temos de viver. Uma coisa é eu viver com uma dúvida. Talvez haja. Outra coisa é ter a certeza de que existe.
 
MP- Porque não considera tão importante no contexto científico?
JF- Cientificamente vai ser só mais uma descoberta, não é estruturante. Será estruturante se um dia se perceber como é que o Universo nasceu. Isso é, eu diria, de prémio nobel. A descoberta de vida fora da terra, creio que não será. É uma descoberta importante, mas não é uma descoberta que mude a ciência.
 
MP- Depois do seu doutoramento veio para Coimbra onde é, actualmente, director do Observatório Geofísico e Astronómico da Universidade de Coimbra. Que tipo de trabalho é desenvolvido lá?
JF- O Observatório é um centro de observação que estuda essencialmente assuntos relacionados com o sistema solar. Depois há também um apoio às aulas. Não muitas, mas algumas aulas são lá leccionadas. O Observatório faz ainda divulgação científica e abre as suas portas sempre que há eventos astronómicos ou actividades como, por exemplo, eclipses.
 
MP- Que importância têm essas actividades para a comunidade?      
JF- Muita, porque uma instituição científica portuguesa, na forma como a temos constituída, deve fazer três coisas. Deve ensinar, deve fazer investigação e deve transmitir ao público aquilo que faz numa linguagem necessariamente mais fácil. É importante que um Observatório Astronómico dedique uma parte do seu tempo a mostrar às pessoas o trabalho que anda a fazer, porque elas podem não perceber para que é que aquilo serve. Não pode ser sempre, mas de vez em quando.
 
MP- Participa regularmente em palestras e sessões de divulgação. Considera importante o ensino e a divulgação da astronomia ao público?
JF- Considero importante o ensino da ciência, seja ela qual for. A ciência faz de nós melhores pessoas, melhores cidadãos. Isto porque a ciência traz atrás de si primeiro a curiosidade e depois a pergunta. E até para a nossa vida privada é importante questionarmo-nos e não assumir as coisas como adquiridas e dadas. A ciência obriga a fazer perguntas.
 
MP- Numa recente entrevista refere que a única vez que se recusou a um debate foi com um astrólogo, mas que depois se arrependeu. Porquê?
JF- Recusei porque não tinha nada para dizer ao senhor. A astronomia e a astrologia não são duas visões diferentes do mundo. A astronomia é ciência e a astrologia não, foi por isso que recusei. Só que depois arrependi-me porque há uma coisa que eu acho que um astrónomo pode dizer sobre a astrologia, que é justamente que a astrologia não é uma ciência. A astrologia é de alguma maneira uma fé, não tem cientificamente base nenhuma e isso um cientista pode dizer. Aliás, há cientistas que já se deram ao trabalho de provar que as previsões astrológicas não têm qualquer validade. O que acontece é que a astrologia, por vezes, passa uma ideia de ciência.
 
MP- De que modo a Astrologia consegue passar por ciência?
JF- Em primeiro lugar porque lida com termos semelhantes. Os astrólogos falam de planetas, constelações, estrelas, etc… Portanto, tudo isto remete para uma linguagem, que parece científica. Depois acho que a comunicação social também tem alguma culpa. Frequentemente os horóscopos aparecem na mesma página onde está o tempo, as previsões meteorológicas, as marés e o nascer e o por do sol. Colocar isso tudo na mesma página pode induzir o leitor de que toda aquela informação tem a mesma credibilidade, e não tem.
 
MP- Porque acha que o jornalismo não tem a preocupação de fazer esta distinção?
JF- Porque o jornalismo científico em Portugal ainda não está bem desenvolvido. Melhorou muito nos últimos 20 anos. E há vários esforços que têm sido feitos não só nas colunas de ciência que há em alguns jornais, como nos ditos de referência, como também na rádio, para que continue a melhorar. Pontualmente vai também havendo alguns programas televisivos. Sei que a sociedade portuguesa de astronomia está fazer um conjunto de 12 episódios sobre a astronomia em Portugal, que irá passar na RTP brevemente. O que quero dizer com isto é que há uma preocupação, mas há também ainda coisas para melhorar.
 
MP- Como poderá melhorar?
JF- Penso que irá acompanhando o ritmo do país. Há quarenta anos, a ciência não tinha a pujança em Portugal que tem hoje. De facto tudo cresceu e a ciência cresceu também, bem como a percepção que as pessoas têm dela. A facilidade de acesso à informação científica é cada vez mais elevada e mais fácil e por isso acredito que o jornalismo científico siga este caminho e continue a melhorar.
 
MP- Figurou em quase todos os órgãos de comunicação social, o lançamento da missão espacial Gaia, sucessora da missão Hipparcos e onde participam cientistas portugueses. Considera um marco importante para a ciência portuguesa?
JF- Sem dúvida. Eu diria que a astronomia é um bom exemplo de como a ciência tem evoluído em Portugal. Há uns anos atrás houve um relatório do observatório para as ciências e tecnologias, que refere que as ciências do espaço foram as que mais cresceram entre 2004 e 2008. Houve de facto um crescimento em todas as áreas científicas nos últimos anos, mas a astronomia foi aquela que mais se desenvolveu. Claro que a astronomia hoje em dia se debate com os mesmos problemas que a ciência em geral, que são as faltas de financiamento. Mas tem uma projecção como provavelmente nunca teve. Nunca houve tantos astrónomos portugueses envolvidos em tantos projectos internacionais como hoje.
 
MP- As missões, Hipparcos e Gaia, têm como objectivo mapear os astros. No que é que isso consiste?
JF- Consiste no estudo das estrelas para determinação das suas posições e distâncias. Estas particularidades são mais importantes do que aquilo que podemos imaginar e não apenas para astrónomos. Hoje em dia determinamos as coordenadas de um ponto através do sistema chamado GPS. Estes aparelhos, no entanto, para serem calibrados precisam de pontos de referência que estejam parados. Ora no Universo nada está parado, mas as estrelas, por estarem tão longe, podem-se considerar paradas. Estas duas missões vão construir catálogos de estrelas que permitem composições muito bem conhecidas e que irão depois ser usados para calibrar aparelhos com GPS. São uma espécie de marcos geodésicos mas no céu.
 
MP- Estas missões são um exemplo da característica intemporal do homem em olhar para o céu. Porque acha que sempre o fez?
JF- Eu diria que foi por várias razões. Primeiro por uma razão prática, o homem encontrou sempre no céu uma regularidade que lhe permitiu montar calendários, criar relógios. Este exercício prático manteve-se por exemplo na era dos descobrimentos. A navegação em alto mar, antes de haver o GPS, era feita usando as estrelas. Depois eu diria que é quase obrigatório, quer dizer, porque é que o homem não há-de olhar para as estrelas? Se ele tem olhos, porque não os levanta e tenta perceber o que vê? Mesmo que tenha ideias completamente erradas. A tentativa de compreensão é um facto quase natural.
 
MP- Actualmente já se considera a hipótese de colocar um ser humano em Marte. Porquê a escolha deste planeta do sistema solar e não outro?
JF- Marte, apesar de ser mais pequeno que a Terra, seria o planeta colonizável do sistema solar, por excelência. Isto porque ainda se encontra dentro da zona de habitabilidade. Sobretudo tem um clima que seria ameno, ao contrário de, por exemplo Mercúrio, que não tem atmosfera sendo quentíssimo na parte virada ao sol e gelado na outra.
 
MP- Esta viagem já se considera viável?
JF- Ainda não. Não há tecnologia neste momento para por o Homem em Marte, em condições de segurança. Porque não basta pôr. O problema da Lua foi o mesmo, fazer a viagem até a Lua era fácil, o problema era trazer a pessoa de volta. Além disso é preciso considerar as questões humanas que estão ligadas. Porque uma coisa é uma viagem que demora dias e outra é uma viagem que demora dois anos. Se calhar no espaço de um contentor.
 
MP- Consegue estimar quando esta poderá ter lugar?
JF- Quando houver verdadeiro interesse em ir. A viagem a Marte só vai interessar quando o Homem tiver capacidade de colocar em Marte algo que possa receber outros homens e mulheres. Terá interesse quando for mais um local onde o Homem, mais do que ir e vir, possa estar. Na minha opinião pessoal, hoje em dia essa viagem não se justifica pela bandeira. É demasiado onerosa e arriscada.
 
MP- Considera que o espaço continua a ser a derradeira fronteira do ser humano, a última fronteira para ser ultrapassada?
JF- Nem sei se alguma vez será. Para isso seria preciso em primeiro lugar conhecer a forma deste objecto a que chamamos Universo, e ninguém sabe qual é. Portanto, não sei se será uma fronteira que alguma vez se possa realmente ultrapassar na totalidade. Podemos é ver as coisas de outra forma. O Universo coloca-nos todos os dias perguntas novas. Temos é que ir respondendo a esses novos desafios à nossa inteligência. Logo, é uma forma de estar permanentemente com os neurónios a trabalhar, porque não há outra maneira de o fazer. 
Entrevista ao Professor João Fernandes
Published:

Entrevista ao Professor João Fernandes

Entrevista ao Professor João Fernandes, atual diretor do Observatório Astronómico de Coimbra

Published: