Era dia de festa no reino de Oyó. Xangô convidara toda a corte do Orum para festejar com ele sua última conquista: as terras de para-lá-das-montanhas. Havia muita cerveja, oti, vinho tinto e vinho de palma. A mesa estava farta de amalá, e o ipadê já fora dado a Exu como primícias do ilê. Este, que chegou antes de todo o mundo, comeu e bebeu e abriu as portas para o restante dos convidados, agora dançava com a espirituosa Oxum.
Muito contente com a chegada dos convidados, Xangô tomou a palavra de abertura das cerimônias para anunciar o banquete, o qual ele mal conseguia esperar para dar início, quando começou a chover. Uma chuva bem fraquinha, que foi se tornando um toró pesado. Estranho era que o sol continuava resplandecente, brilhando até mais que antes, de modo que um lindo arco-íris formou-se à vista.
O grande rei desconcertou-se, já que os jogos haviam predito que o tempo estaria firme e as condições de festas eram propícias. O Orixá ficou furioso quando viu que pela porta principal começava a entrar a água da chuva, trazendo consigo o barro e sujando todo o chão que fora preparado para a dança. Foi até Oxalufã, que tivera seu trono erguido para não contaminar suas vestes funfun, e pediu que ele parasse a chuva para que seguissem com as festividades.
O velho Orixá balançou a cabeça e disse que nada poderia fazer com essa chuva, uma vez que não eram suas águas. Já desesperado, Xangô chamou Orunmilá de canto e perguntou-lhe o que estava acontecendo. Este nem se deu ao trabalho de jogar as sementes, apenas disse ao rei que contasse quantos convidados havia, e este assim o fez. Com espanto, percebeu-se de que não havia convidado todo o Orum: faltava a sagrada família de Daomé.
Rapidamente, o rei ordenou que fossem buscar Nanã, Obaluayê, Oxumarê e Ewá. Enquanto não chegavam, ele mesmo preparou seus lugares em destaques de honra, como forma de trazer justiça à falha que ele cometera à família da Mãe Antiga. A comitiva Vodun chegou depois de longa espera de chuva e sol, e os Orixás já estavam entediados.
Primeiro entraram Oxumarê e Ewá, radiantes e belíssimas, chamando a atenção de todo o salão. Xangô os cumprimentou com seu pedido de desculpas e os conduziu à mesa. Após um tempo, bem lentamente, chegaram à porta Nanã e Obaluayê. Xangô pegou Nanã pelo braço, levou a seu trono e ajoelhou-se perante ela, pedindo perdão pela falha. Obaluayê, fora de foco, foi-se para uma parte reservada do ilê.
A chuva parou, o arco-íris entrou no salão e envolveu Oxumarê e Ewá, deixando-as ainda mais resplandecentes. O barro secou, mas por nada nesse mundo desgrudava do chão. Não totalmente satisfeito, porém conformado, Xangô continuou de onde havia parado, dessa vez sem pomposidade e com aspecto desapontado. Abriu-se o banquete, do qual o rei apenas provou um bocado, tomando o último gole de vinho tinto que havia.
Após a comida, os tantãs retumbaram e Xangô puxou a dança. Os Orixás bebiam e riam. Esquecido, Obaluayê permanecia imóvel. Três pares de olhos o observavam com interesse. De um lado, Exu e Ogum, tramando uma para atazanar o Vodun, do outro, Oyá, indagando-se sobre o mistério daquele ser encoberto de palha. Ela viu quando os dois Odés começaram a perseguir Obaluayê, tentando puxar sua roupa.
Quando todos perceberam o que estava acontecendo, caíram na gargalhada e incentivaram a perseguição. Em certo ponto, Obaluayê encontrava-se no meio de uma grande roda, girando de um lado para o outro, tentando impedir que lhe descobrissem as palhas. Quando já as mãos de Xangô tocavam sua roupa, uma ventania precedida de raio varreu todos para longe, a palha voou para o telhado, o barro seco sumiu e começou a chover pipoca.
Ao centro do salão, dançando, encontravam-se Oyá e um jovem da cor do sol, tão lindo que era impossível de ser olhado. Os tambores pararam, fez-se silêncio, Oyá retirou-se do meio do ilê e foi apreciar a dança de Obaluayê junto aos outros. Após tempos de silêncio, os tantãs retomaram seu ritmo e o Olubajé prosseguiu. Os Orixás, com vergonha, ajoelharam-se e pediram perdão ao filho de Nanã, que, humildemente, aceitou as desculpas e pediu vinho para se recuperar da dança.
Nesse momento, Xangô pôs-se a chorar. Por três vezes o rei de Oyó havia se mostrado displicente em relação ao rei da terra. Primeiro deixara de convidá-lo para sua festa, depois deixara que caçoassem dele e, por fim, acabara com sua bebida favorita sem deixar sua parte reservada. Nesse momento, Oyá surgiu com uma jarra de barro e ofereceu-a a Obaluayê. Dentro da jarra havia o melhor vinho tinto que seus ventos buscaram pelo mundo.
Desde esse dia, Xangô, em sinal de justiça e respeito, parou de comer pipoca feita no dendê e de beber vinho tinto. E toda vez que Obaluayê faz festa, Xangô aparece, cumprimenta o Vodun e vai embora, em memória das três vezes em que foi relapso com o rei da terra. Esse gesto mostra que não há inimizade entre eles, e sim um respeito mútuo de quem deixa o passado para trás sem forçar aproximação.

Atotô Obaluayê

Kaô Kabecile


Vocabulário
oti: cachaça
amalá: comida de Xangô
ipadê: ritual de Exu
ilê: casa
Orixá: ancestral divinizado, tradição Yorubá
funfun: referente à cor branca, no caso a um grupo de Orixás que só vestem essa cor
Vodun: espírito ancestral, tradição Ewe-Fon
tantã: tipo de tambor
Odé: diz-se do Orixá de fora de casa

Texto originalmente publica em meu blog Ilê das Palavras a 7 de abril de 2020
Imagem: Couleur em Pixabay
Dança da Pipoca
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