Esse projeto foi criado por mim e pela Janaina Fernandes numa tentativa de trazer à luz o aspecto misógino da cristandade. Mulheres são minoria, são marginalizadas, são submissas e, mais importante, só são valorizadas por seu martírio e imenso sofrimento.
Nesse projeto, selecionamos 5 personagens bíblicas - e 1 extra, criada por nós - para que fossem representadas e vistas como mulheres reais, por mulheres reais.
As nossas Maria, Madalena, Babalon, Salomé e Verônica não serão apenas virgens, santas, esposas, mães, prostitutas, bruxas, entre outros rótulos propositalmente impostos em cada um desses nomes para a transmissão de uma mensagem.
Isso não nos conta nada sobre ser mulher.
Ser mulher é ser plural.
Que deixemos de admirar uma mulher por nunca ter sentido prazer! Que não resumamos mais a vida toda de uma mulher em apenas um segundo em que esta serviu a um homem! Que paremos de odiar mulheres por valorizarem o sexo, por amarem seus corpos, por recusarem o abuso!
1. Ecce Femina
Na história da arte, especialmente durante o Renascentismo, a cena bíblica denominada “Ecce Homo” foi amplamente retratada. Todo grande mestre possui a sua versão.
Trata-se do momento em que Pôncio Pilatos apresenta Cristo, já flagelado, amarrado e trajando a coroa de espinhos, perante uma multidão agressiva. Pilatos diz a frase “ecce homo” (“eis o homem!”) e lava as mãos, livrando-se de qualquer responsabilidade. (João 19:5).
Aqui temos a nossa “Ecce Femina”, a primeira das 6 personagens; uma mulher para representar todas, para simbolizar a trajetória feminina num mundo historicamente misógino.
Fomos expostas, feridas, abusadas, retiradas de nossos direitos, presas, deturpadas, podadas, mal-interpretadas e ironizadas por tempo demais.
Os papéis de gênero são tão violentos quanto a coroa de espinhos e a cruz.
Eis a mulher!
2. Maria

A virgem, a santa, a intocada. Aquela que subiu diretamente aos céus. Aquela a quem nenhum tipo de consentimento foi pedido.
Na cena bíblica “A Anunciação”, também amplamente retratada durante o Renascimento - atingindo seu auge, na minha opinião, com Leonardo Da Vinci -, Maria recebe a visita de um anjo.
Casada, mas ainda virgem, Maria é informada pelo anjo que foi escolhida por Deus para carregar seu filho (Lucas 1:26-38).
A frase utilizada pelo anjo é “não temas”. Os verbos estão no futuro do presente - já está definido. Há ainda um elogio para justificar a escolha divina e, também, para indicar que, caso não desejasse tal “dádiva”, Maria seria uma pecadora: “Salve, agraciada; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres.”. Ao longo da história, nota-se a tendência misógina de “informar” mulheres quando devem ou não se sentirem gratas e contentes.
Maria é informada de sua grande sorte, que só uma louca poderia recusar, e, sem muita escolha, tem sua vida alterada; toda a sua relevância agora está focada em sua virgindade.
A cristandade constrói a ideia da mulher ideal: virgem e obediente, ela não goza de direitos.
A cor branca foi escolhida por nós para representar a pureza imposta a Maria.
Nossa versão, portanto, buscou uma Anunciação diferente. Inspiradas nas esculturas sacras de Bernini, retratamos o que seria mais realista: a anunciação do êxtase de uma relação consensual.
3. Madalena

Baseadas na obra “Maria Madalena Penitente” (1578) de El Greco, construímos a nossa 3a personagem.
O azul do véu representa a monotonia e a depressão. As lágrimas e as pérolas representam, na arte renascentista, símbolos fortíssimos de Madalena: as primeiras representam a perda de Cristo e, as últimas, sua luxúria. Juntando os dois símbolos, temos o momento em que ela “chora sua personalidade fora”, nos ajudando a compor o cenário de uma Madalena que sofre ao abrir mão daquilo que é -- e das coisas que ama -- em função de um terceiro.

Maria Madalena é descrita na Bíblia como uma mulher rica (Lucas 8:2-3). A imagem de pecadora e prostituta, porém, surgiu um tempo depois, durante um sermão do Papa Gregório I, em 851 d.C.
Em sua fala, o religioso fundiu a imagem de Madalena com outras duas mulheres (Maria de Betânia, presente em Lucas 10:39, e a “mulher pecadora que lava os pés de Cristo”, presente em Lucas 7:36-50). Isso rapidamente se liga ao fato de Madalena ter posses, formando a imagem negativa de uma mulher tomada por pecado e luxúria, que necessita da dramática redenção durante a cena de sua penitência.
Assim como a Virgem, Madalena tem o significado de sua vida inteira alterado. Apenas os momentos em que serviu a um homem são válidos agora. Dessa maneira, a cristandade demonstra que a pessoa que Madalena era não é suficiente: a mulher deve passar pela penitência, deve dar tudo de si ao masculino, deve se redimir do grande pecado de ser ela mesma.
4. Salomé

Com propósito semelhante àquele de Oscar Wilde durante a criação de sua peça “Salomé” (1891), escolhemos dar um rosto à princesa.
No novo testamento, Salomé é apresentada apenas como a “filha de Herodias” durante a cena de sua famosa dança, que precede a decapitação de João Batista (Marcos 6:17-29). Salomé dança para o padrasto em sua festa de aniversário e, encantado, ele a concede um pedido. Ao perguntar para a mãe, esta a aconselha a pedir a cabeça de João Batista, de quem tinha raiva por haver interferido em seu segundo casamento, com o rei.
Salomé recebe um nome apenas no final do século V; até lá, é apenas a representação da tentação, dos perigos que a mulher oferece ao homem. Sua dança simboliza a suposta suscetibilidade feminina às tentações do diabo.
Para nós, isso não se aplica. Salomé era uma princesa, uma dançarina, uma moça insegura. Da mesma maneira que é escalada para dançar na festa do padrasto, é conduzida a reproduzir as palavras da mãe e condenar um homem à morte.
Escolhemos o roxo para simbolizar a realeza, contexto no qual Salomé nasceu e cresceu. O pigmento roxo, na época, era extremamente caro e somente os nobres tinham acesso aos tecidos dessa cor. Mas antes de ser parte de realeza, Salomé era mulher.
Por tempo demais a figura feminina desprovida de nome, motivação ou sequer simples descrição foi utilizada para representar o pecado e a suscetibilidade!
Por tempo demais colocou-se sangue em mãos femininas para simbolizar a suposta fragilidade e ignorância de nosso gênero!
5. Verônica
Segundo a Enciclopédia Católica (Vol. 15, 1912), o nome “Verônica” vem da junção das palavras “verdade” (em latim: vera) e “imagem” (em grego: eikon). Ainda no mesmo documento, temos que nossa 5ª personagem teria sido uma mulher piedosa que, ao oferecer seu véu a Cristo para que este pudesse limpar o rosto enquanto carregava a Cruz, recebeu a benção de um milagre.
Trata-se da história do “Véu de Verônica”. No entanto, não há qualquer menção a isso na Bíblia.
A primeira referência à história de Verônica aparece apenas em 1380. Com o tempo, a história se torna popular - tanto que também é uma das cenas mais representadas durante a Renascença.
Originalmente sem nome e sem descrição, Verônica vai sendo construída pela cristandade conforme o desejo de propagar a mensagem do altruísmo - especialmente feminino -, recompensado com o milagre.
Verônica passa a ser Santa Verônica. Seu nome, que etimologicamente resume o ponto alto de sua vida, seria, na verdade, uma profecia. O Véu de Verônica passa a ser uma relíquia. Mas quem é essa mulher? Como ela era? Existe algum relato que de fato confirme sua existência?
Com isso em mente, escolhemos para seu véu a cor preta - não apenas porque esta significa luto - e Verônica é representada de luto por seu Senhor, que parte -, mas também porque é a cor utilizada artisticamente para representar o mistério.
Mensagem devidamente propagada: a mulher que entrega ao homem aquilo que tem nas mãos é recompensada eternamente. A identidade de Verônica já não importa. Verônica possui nome, mas não face. Verônica é o símbolo da reverência obediente e isso basta.
6. Babalon

Para ela, há diversos nomes. “A Grande Mãe”, “Mulher Escarlate”, “Prostituta da Babilônia”, etc.
Cada um de seus nomes passa uma mensagem diferente. Babalon é plural.
Para a cristandade, ela é o símbolo da blasfêmia, da decadência e do pecado, conforme é apresentada em Apocalipse 17:3-9. Babalon é, ainda, a personificação da própria Babilônia.
Blasfêmia, decadência e pecado representados através de uma figura feminina... já ouviu essa história antes?
Para enfatizar ainda mais a depravação moral de Babalon, sua descrição é a seguinte: “uma mulher assentada sobre uma besta; (...) vestida de púrpura e de escarlate, e adornada com ouro, e pedras preciosas e pérolas; (...) na sua mão um cálice de ouro cheio das abominações e da imundícia da sua fornicação; (...) a mãe das prostituições e abominações da terra.”.
Fora da cristandade, porém, Babalon é a deusa da liberdade sexual feminina. Simboliza emancipação, maturidade, capacidade de tomar as próprias decisões. Babalon é livre, tem desejos, aprecia o prazer; Babalon é mulher.
Sua versão bíblica a apresenta como bruxa, prostituta e mãe de todo o mal; isso nos leva a concluir nosso projeto com um padrão que amarra todas as personagens: a cristandade busca representar, através de figuras femininas, tudo aquilo que é ou não indesejado, inaceitável e estritamente proibido.
Criam-se papéis de gênero.
unholy
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