Beatriz Bandolin's profile

Vale tudo para quebrar o tabu?

Texto produzido para o Blog Oriente-se e vencedor do prêmio Expocom Sul 2022 na categoria Produção em Jornalismo de Opinião.
Vale tudo para quebrar o tabu?
O retorno do grupo Talibã no Afeganistão pelas publicações da página Quebrando o Tabu​​​​​​​
Muito se fala na mídia sobre o atual momento que o Afeganistão enfrenta com a volta do Talibã ao poder, 20 anos depois da sua derrocada. No entanto, essa mesma mídia parece querer ocultar algumas questões importantes para o entendimento do grupo extremista. A página Quebrando o Tabu, por exemplo, tem como biografia no Instagram a frase ‘’por um mundo mais informado e menos careta’’, mas até que ponto as publicações – principalmente as com relação aos acontecimentos no Afeganistão – são informativas? Desde a retomada do grupo Talibã, em 16 de agosto, o Quebrando o Tabu publicou 65 posts no total, sendo apenas nove deles sobre os recentes ocorridos no território afegão. Desses nove, cinco apresentam contradições, superficialidades e informações incompletas.

Fazendo uma análise das postagens do Quebrando o Tabu sobre o retorno do grupo extremista, percebe-se, por exemplo, que não é muito mencionado o fato do Talibã ter surgido com o financiamento dos Estados Unidos da América. Das nove publicações que falam sobre o assunto, somente uma explicou a origem dos ultrarradicais afegãos e, ainda assim, a página deixou de expor que a maior potência mundial tem ligação direta com a criação e fortalecimento do Talibã.

ORIGENS DO TALIBÃ

Com a jornalista Ana Paula Padrão resumindo mais de 40 anos de história em um vídeo de 59 segundos, em uma publicação de 17 de agosto, o Quebrando o Tabu dá a entender que o Talibã se originou aleatoriamente entre os afegãos, e não faz menção ao país “modelo” de democracia e civilidade norte-americano. O grupo começou a se formar na década de 1980. Na época, os mujahedins, que eram jovens do próprio Afeganistão, lutavam contra a tomada do país pelos soviéticos. 

Como o mundo ainda estava polarizado pela Guerra Fria, os Estados Unidos incumbiram à CIA (Central Intelligence Agency) a função de treinar, armar e financiar os promissores jovens a lutarem contra o regime comunista que dominava o país. Com o sucesso do plano norte-americano, na década de 1990 os mujahedins tomaram o poder no Afeganistão, já com o nome de Talibã. Os integrantes são adeptos do islamismo sunita ultrarradical e o instauraram no país, assim que tomaram o poder.

De uma maneira simplista, a jornalista convocada pela página para falar do assunto, citou o fato do Talibã dar guarida aos terroristas da Al-Qaeda e disse que “foi por isso que os EUA entraram no Afeganistão, depois do atentado às Torres Gêmeas em 2001”, terminando o vídeo sem dar nenhuma parcela de culpa ao governo norte-americano na criação do grupo extremista, somente o exaltando por ter derrubado os ultrarradicais. 

Os conflitos do Talibã com os EUA começaram no início dos anos 2000, mas a relação dos dois, como já citado, vem desde a década de 1980. Em 2001, a rede terrorista Al-Qaeda, liderada por Bin Laden, dirigiu o ataque ao Word Trade Center, em Nova Iorque. Os terroristas pediram estadia no Afeganistão e ficaram sob a tutela do Talibã. O governo norte-americano, liderado pelo presidente republicano George Bush, pediu ao grupo que entregasse a Al-Qaeda ou, caso não o fizesse, iriam invadir o país. Como se negaram a entregar a rede terrorista, os EUA cumpriram a promessa e derrubaram o grupo do poder, estabelecendo uma política supostamente democrática no Afeganistão. 

BRIGA POLÍTICA

Sendo criado com o incentivo dos EUA a fim de combater o regime comunista, o Talibã é, muitas vezes, visto como sendo de extrema-direita. Entretanto, trata-se de um grupo fundamentalista religioso - islâmico, no caso -, tendo apenas o fato de ser um movimento extremista em comum com a tendência política. Com o retorno do grupo ao poder, a discussão sobre qual lado o Talibã pertence – direita ou esquerda – repercutiu nas redes sociais. Muitos meios de comunicação, ao invés de explicarem como o grupo funciona de fato, apenas confundiram ainda mais o público, trazendo conteúdos que contribuem para a ideia errônea de que o Talibã pertence à extrema-direita.

Foi o que ocorreu quando o Quebrando o Tabu postou, no dia 18 de agosto, uma imagem que compara as últimas decisões do Presidente da República do Brasil, Jair Bolsonaro (sem partido), com a agenda política divulgada pelo grupo após sua retomada ao poder. Na legenda da foto, apenas a insinuação de um aperto de mãos entre o grupo extremista e o presidente, sem maiores informações sobre a questão. No dia seguinte, a página também publicou um print de um tweet que diz que o Talibã é de extrema-direita, utilizando como prova para tal afirmação a mesma agenda política. Novamente, a legenda não traz nenhum dado.

 Nos comentários de ambas postagens, dois tipos de seguidores da página se destacam: aqueles que acreditam na publicação e aqueles que pedem maior responsabilidade do perfil, já sabendo que as informações não são 100% verdadeiras. Embora de fato haja semelhança entre a agenda política destacada e alguns dos posicionamentos de Bolsonaro, é insensato comparar um governo extremista com um governo de extrema-direita. Isto porque a maioria dos brasileiros (58%) reprova as declarações do presidente, como indica a última pesquisa PoderData, realizada de 2 a 4 de agosto. Sendo assim, a ausência de uma explicação mais detalhada incentiva comentários preconceituosos e a intolerância religiosa.

DIREITOS DAS MULHERES

A mídia ocidental - talvez por falta de interesse ou conhecimento - acaba tratando questões culturais e religiosas do Oriente Médio de forma rasa e generalista. A cobertura que está sendo feita sobre a volta dos radicais do Talibã ao poder deixa isso explícito. Um exemplo desse tipo de abordagem pode ser visto quando as roupas com as quais as mulheres islâmicas se vestem são apresentadas como opressoras, sem que nenhuma outra consideração seja feita.

É exatamente isso que pode ser observado na publicação feita pelo Quebrando o Tabu, no dia 16 de agosto, pelo Instagram. Com o título: “Afeganistão: por que as mulheres podem se f*d3r muito”, são apresentadas informações incompletas - em algumas partes, falsas - que levam a multiplicação de mais generalizações e preconceitos com uma religião que já é muito discriminada no ocidente.

Na segunda imagem do post, que leva o subtítulo “Mulheres antes do Talibã”, a página utiliza duas fotografias com mulheres da década de 70, na rua e sem nenhuma veste islâmica - com roupas mais “agradáveis” aos olhos do ocidente. Apesar de ambas serem apresentadas como fotos retratadas no Afeganistão, uma das fotos - a colorida - é de estudantes de uma universidade iraniana, em 1971.

A postagem continua e apresenta outro subtítulo, na quarta imagem: “Depois do Talibã”. A partir desse ponto, as fotos de mulheres vestidas com o padrão ocidental são trocadas por fotos de mulheres usando burcas e outras vestes, como o Icharb. A burca, que cobre a mulher da cabeça aos pés - inclusive os olhos - foi aderida pelo Talibã nos anos 90, mas não tem origem islâmica. Hoje, a burca é vista como um tipo de radicalização do Icharb - lenço que cobre a cabeça e deixa o rosto à mostra - e do Niqab, veste que cobre o corpo todo e deixa apenas os olhos de fora, comum em países mais extremistas, como a Arábia Saudita.

Não existe nenhum problema em dizer que o regime do Talibã é opressor - por que ele realmente é. A problemática está na forma rasa como as imagens e texto são apresentados aos seguidores. O post dá a entender que as vestimentas religiosas das mulheres islâmicas são o problema, principalmente ao dizer: “devem se vestir com restrições (burca ou similar)” sem explicar a origem da burca, por que seu uso é opressor e nem que, em situações mais tranquilas, o uso de véus ou roupas que cobrem mais o corpo pode ser uma escolha da mulher.

PROTESTOS

Em 19 de agosto, o Quebrando o Tabu publicou um vídeo em que um grupo de pessoas andam por uma rua em protesto, replicado como uma manifestação contra a tomada de poder do Talibã no Afeganistão. Na legenda da publicação se diz o seguinte: “Mulheres afegãs, num ato de muita coragem, protestando contra o Talibã. Sente a força e resistência dessas mulheres. Mulheres afegãs estão em luta, e o mundo deve lutar por elas também.  Nenhum retrocesso será tolerado.” A publicação, a princípio, se mostra rasa e sem muitas informações precisas sobre o lugar, data e contexto que o protesto foi realizado. O vídeo é curto e não é mencionado o que os manifestantes dizem, embora em outra mídia (Estado de Minas) é citado que as mulheres gritavam “Morte aos talibãs”.

O mesmo Estado de Minas publicou um dia depois, 20 de agosto, uma notícia em que se apresenta uma checagem de fatos sobre o vídeo em questão. Segundo o jornal, as mulheres estavam em Qom, no Irã, e não no Afeganistão. As imagens foram feitas na rua Enghelab e posteriormente analisadas através de fotos da internet nas quais se pode reconhecer alguns elementos, como os arbustos, a estátua e as lojas daquela rua. 

Algumas notícias publicadas sobre o Afeganistão se mostram totalmente desconexas com a realidade e sem um aprofundamento dos fatos. Quando se trata das informações através de mídias sociais, isso se torna mais evidente. Muitos seguidores do Quebrando o Tabu irão replicar o vídeo sem se perguntar a veracidade e seu contexto, formando um senso crítico através do que viu ali, apenas. De fato, muitas informações novas chegam, conforme se entende melhor o que está ocorrendo no país, mas algumas estão sendo tiradas de contexto e se desencontrando. É dever da página apurar os fatos e detalhar as informações em suas publicações, a fim de informar melhor seus seguidores.

ONDE ESTÁ O PROBLEMA?

Há dois pontos importantes que devemos considerar para a compreensão dessa problemática. O primeiro é o alto fluxo de publicações da página em contraste com o baixo número de postagens sobre o Afeganistão. Pelo Instagram não foi possível identificar uma programação entre as pautas levantadas e, considerando a gravidade da situação, é importante que exista uma abordagem que possibilite a compreensão geopolítica.  

O segundo ponto é a consequência gerada pela replicação de postagens errôneas. Por exemplo, se considerarmos somente as cinco publicações com algum tipo de erro ou ‘desinformação’, temos uma média de 283,8 mil curtidas para cada uma. O número é expressivo e preocupa, principalmente pela tendência maior de procura por mídias independentes nos últimos anos. Um levantamento feito pelo PoderData em outubro de 2020 apontou que 61% dos brasileiros têm algum nível de desconfiança em relação ao trabalho realizado pela imprensa e considera que as notícias publicadas nos veículos de comunicação não são completamente confiáveis.

A migração da procura de informações dos veículos tradicionais para a internet pode ser exemplificada, inclusive, pelo número de seguidores do Quebrando o Tabu: um total de 7,4 milhões. Entretanto, sua relevância não o impediu de, também, replicar informações não confiáveis. Como representante do ativismo social nesse contexto de mídias digitais, a página deve sim fazer apontamentos e levantar questionamentos, mas que eles sejam baseados na verdade dos fatos, estimulando o exercício do pensamento crítico como um processo permanente.

Texto por: Beatriz Bandolin, Bárbara Santos, Bruno Souza, Mateus Saraiva e Isabella Abrão
Vale tudo para quebrar o tabu?
Published:

Vale tudo para quebrar o tabu?

Published:

Creative Fields