Gota por Gota
Eu invejo aqueles cujo tempo passa mais rápido
Invejo aqueles que tem o sol estampado no rosto nas poucas horas da manhã e não sentem o frio abraço do inverno fora de hora
Invejo aqueles cujo berço de ouro lhes permite gozar dos prazeres do capital
Invejo aqueles cujas pernas funcionam sem perturbar o grande maquinista
Invejo as máquinas, que executam ordens sem o titubear de uma criança curiosa e indefesa
Invejo as crianças, cuja ignorância entorpece o saber das coisas belas, das que mais doem
Invejo a dor, que a toda hora está presente de corpo e alma
Invejo a alma, porque ela não olha o relógio
Invejo o relógio, cujo tempo passa sempre igual
Cujas noites não duram semanas e quando o sol dá as caras que não muda seu passo
Cujas madrugadas são ininterruptas, cujos lamentos não se vê e nem se escuta
Ou se cheira, ou se sente
Invejo aquela que não espera, que medita
Invejo aquele cuja consciência se cala nos mais profundos sonhos
Invejo o cavaleiro que derrota os grandes monstros
Invejo até seu escudeiro, que, mesmo na sua incapacidade de batalhar, não hesita diante do perigo
Invejo o padre, cuja inabalável fé impermeia os devaneios e incertezas dos prazeres mundanos
Mas não invejo a fé, pois há quem acredite em mim e há quem diga que não preciso invejar
Que já tenho tudo, que tenho fé, tenho inverno, tenho tempo
Mas já tive tempo demais
E a inveja que tenho é lenta demais
Corrói de pouco em pouco os pequenos momentos, os quais a memória não assistiu
Momentos cuja tristeza e solidão passam despercebidas pelos grandes espelhos da alma
E tornam-se carpas no fino riacho do tempo, cortando o vento por cima d’água
Sentindo a brisa molhada esgueirar-se entre suas guelras
Brevemente livre, seguindo o curso sem estar no controle de nada
Evitando o momento em que essa minúscula viagem se transforma em devaneio
Os respingos de água transbordam o pequeno riacho
Submerso, nada até nada chegar
Nada se sabe sobre a nascente, nada se sabe sobre o fim
Gota a gota o riacho se alarga, torna-se rio
De rio, torna-se lago
De lago, torna-se mar
E no horizonte só se enxergam respingos
Gota por Gota
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