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A linguística é mais ‘você’ do que ‘vossa mercê’

Ensaio argumentativo: 
A linguística é mais ‘você’ do que ‘vossa mercê’

Do ‘vossa mercê’ ao ‘você’ houve um salto significativo na linguagem do português brasileiro, este dado não é meramente estrutural, mas essencialmente social. A história da linguagem é a base para seu desenvolvimento, sem a sociolinguística a língua é apenas um conjunto de códigos usado para a comunicação, e se fosse assim os seres humanos poderiam apenas dançar para se comunicar, da mesma maneira que as abelhas fazem - conforme relatam estudos e pesquisas na área de ecologia.
Para apoiar o pensamento exposto nesse ensaio, algumas teorias e conceitos se fazem de fundamental importância para o discorrer do porquê a linguística deve andar junto com a história de sua gênese, em modo diacrônico e não apenas factual e sincrônico. Silva e Sousa (2017, p.264) dizem que “A mudança linguística não é autônoma, ela não engendra a si mesma, ela faz parte de um processo de interação social. ”, processo este que enfatiza a importância da sociedade como a engrenagem da transformação e evolução linguística.
Saussure e Meillet foram teóricos muito importantes para o debate do estudo da linguística diacrônica e sincrônica. Por um lado, tem-se Saussure que “[...]opõe linguística interna e linguística externa. ”, e também “[...]distingue abordagem sincrônica de abordagem diacrônica” (CALVET, 2002, p.15); já por outro lado consta Meillet que “busca explicar a estrutura pela história. [...] para ele não se chega a compreender os fatos da língua sem fazer referência à diacronia, à história. ” (CALVET, 2002, p.15). O pensamento de Meillet é o mais coerente perante a gênese da língua, não tem como separar o fato social de um sistema que abrange tudo, a língua é, me arrisco em dizer: um fato social sistêmico, ou seja, mesmo tendo sua história fundada em cada significante, não exclui o fato do sistema linguístico necessitar de sua constituição para explicar muito de seus significados. Silva e Sousa (2017, p.277) dizem algo que esclarece essa questão sendo “Por isso, toda mudança que ocorre suscita questões sobre a origem do movimento que a protagonizou; reconhecendo-se sua origem compreende-se a natureza das mudanças. ”, então se a língua traz mudanças - como a citada no início desse ensaio -, elas precisam ser estudadas não apenas em seu sistema, mas em seu fato social, juntos, para compreender o todo de sua variação.
Algo comum na sociedade é a variação linguística, que podemos encontrar nas diferentes regiões de todo o mundo. Podemos definir essa variação como Diglossia. Contudo, além disso, a diglossia está envolvida mais com as variedades de usabilidade do que do seu vocabulário em si. Posto isso, pode-se compreender que a variedade prestigiada é fortemente usada pela sociedade de classe alta, sendo a literatura dessa variação considerada como nobre e prestigiada; já a de variação inferior - que consta a maioria, porém aquém de coesão gramatical -, é adquirida naturalmente pela linguagem cotidiana. Essa linguagem que não é padronizada, que para muitos é considerada como “falar errado”, marca a história do país, que se comunica, em sua grande parte, através da cultura dessa língua histórica passada de geração em geração. Outro ponto para se levar em consideração a diacronia nos estudos linguísticos.
A possibilidade de haver uma língua que é totalmente pura, sem nenhuma interferência de línguas anteriores e antigas, não pode ser descartada. Todavia, essa língua ainda não foi encontrada, visto que todas as línguas obtêm algum baseamento de linguagens anteriores, até mesmo os significados usados para explicar a própria linguagem. Calvet (2002, p.68-69) diz que “Se os usos variam geograficamente, socialmente e historicamente, a norma espontânea varia da mesma maneira: não se têm as mesmas atitudes linguísticas na burguesia e na classe operária, em Londres ou na Escócia, hoje e cem anos atrás. ”. Sendo assim, não é só a norma espontânea e corriqueira que detém as variações dialéticas, a norma culta obtém isso do mesmo modo. O ‘vossa mercê’ é um exemplo extremamente antigo e válido para demonstrar essa evolução. Deixando claro que, o ‘você’ foi falado em sua maioria pela classe baixa. Outras derivações e abreviações de ‘vossa mercê’ - que antigamente era usada para o tratamento de reis e nobres-, estavam: vosmecê, vancê e você.
Na colonização, a língua portuguesa sofreu muitas mudanças para chegar hoje no português brasileiro, com a língua dos povos indígenas que já eram habitantes do Brasil na época houve muitas mudanças nessa língua, que hoje é variada em dialetos e diglossias. No português de Portugal o ‘você’ não é utilizado, pois o pronome de tratamento é considerado por muitos como uma forma ofensiva, o que é mais utilizado na língua de Portugal é o ‘tu’ no lugar do ‘você’. Com essas constatações, é visível a necessidade e preciosidade que se tem ao vincular os estudos do sistema linguístico às gêneses e histórias por trás das línguas.
De modo mais gramatical Silva e Sousa (2017, p.266) descrevem que
“Não se cria um signo linguístico para depois dar-lhe significado. Não existe significante sem significado na perspectiva de um signo linguístico, o que ocorre é que um “signo linguístico” sem significado se materializa no que se denomina sinal concreto do signo. O sinal é a materialização do signo, ele só ganha status de signo quando lhe é atribuído um significado, o qual é social[...]

Consequentemente a gramática da língua só tem cargo relevante se é posta lado a lado com a sociedade e seus falantes, caso contrário ela será apenas mais um conjunto bem sistematizado de códigos, o que não difere em muita coisa dos latidos dos cães ao se atracar, os sons podem ser diferentes de dor, raiva, ou vitória, mas se este não tem uma cultura ou uma significação por trás não é comunicação e muito menos uma língua válida.
Posto isto, a língua necessita de variação, de história e de um estudo diacrônico, não apenas pela história da língua ser interessante, ou incrível; mas pela consciência de que sem a história da língua, e o vínculo que esta tem com a sociedade, a língua não seria nada, bem como as mudanças gramaticais. A identidade individual e social caracteriza amplamente as mudanças linguísticas, é sobre a linguística ser a sociolinguística, não estando de modo algum divididas.



Referências
SILVA, Paulo Cesar Garré; SOUSA, Antonio Paulino de. Língua e Sociedade: influências mútuas no processo de construção sociocultural. Revista Educação e Emancipação, São Luís, v. 10, n. 3, p. 260-285, set/dez 2017.

CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola, 2002. 176 p.
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