Aves
Não nasci e cresci com esse dilema pesado. Ele não fez parte de mim até que eu
decidisse por colocá-lo como centro de meu destino. Na verdade, destino não é uma palavra que fazia parte do meu vocabulário. Ou fazia e eu não tinha percebido.
Aqui, agora mais sozinha do que nunca e em meu íntimo não tão desassossegado, olho sorrateiramente vez ou outra para aquelas criaturas que gozam de vida plena e pura liberdade. Me contrario novamente dizendo que nunca tive liberdade; não do tipo que me permite ser o que gostaria de ser; de fazer o que sempre tive vontade de fazer e não o que realmente fiz vendo pelo ângulo negativo das coisas, mas de fazer o que queria que fosse o meu destino, perfeitamente e tranquilamente traçado por mim.
O barulho seco e ondulado que as aves fazem ao traçar uma linha reta e direta rumo algum lugar distante almejado pelo bando, torna-me tão voltada para dentro de mim que posso até mesmo escutar esse barulho ecoando e se perpetuando em minhas células e membranas, espalhando gritos longínquos que não saem, que não escapam, que apenas se acasalam com medo do mundo e que tombam como se indefesos. Eu realmente não quero ser assim. Não mais.
Outro barulho, desta vez mais próximo e real, mesclado com ferrugem e aço, faz-me voltar sem qualquer ânimo para a sombra que está prestes a tocar a minha por sobre o escuro do meu vazio.
- Vamos lá, precisamos ir às aulas de teologia, se não estaremos atrasadas – me diz uma colega com um tom de voz manso e calmo, tão calmo que parece ter sido realmente domado por tudo o que o ambiente à nossa volta nos impõe diariamente — Você não quer sofrer uma repreensão, quer?
- Claro que não, mas eu já fui essa semana.
- E isso é o bastante, por acaso? — Ela retruca com uma expressão que parece indicar que ela iria puxar meu braço e me levar arrastada. Em todos os aspectos, Ângela parecia ter se tornado um ser tão camuflado quanto qualquer outro ali dentro. Após um suspiro cansado e já retornando minha atenção para as  aves afoitas no alto e infinito céu, eu começo a indagar com uma voz fraca que simbolizava minha silenciosa aflição.
- Minha relação com Deus é muito diferente da de vocês todas, mas acho que não conseguiria entender. 
- Não entendo mesmo... Não percebe que está agindo como uma tola ao não querer se integrar às  nossas comunidades? Essa é a nossa vida agora, não adianta querer se rebelar. 
- Eu não estou me rebelando! — Eu exclamo com a voz mais alterada, mas sem gritar. Sabia bem que gritos ali não eram permitidos e tampouco bem vistos, especialmente quando a palavra rebelião estava no meio. - Você acha que eu já não pensei em me rebelar várias vezes? Mas não o fiz. Eu já lhe disse e repito: minha relação com Deus é bem diferente da de vocês. Antes de tudo eu sou uma mulher e não um boneco de marionete que a sociedade move à vontade por meio dos fios; mesmo sabendo que essas participações em comunidade permitem que nossas penas sejam reduzidas de alguma maneira.
É a vez de Ângela soltar um suspiro, mas de resignação. Ela me fita fixamente por mais algum tempo com a sua bíblia firmemente e cuidadosamente posta debaixo do braço e logo em seguida volta sua atenção para os pássaros fugindo para outros ninhos, como eu fazia já há algum tempo.
- Você acha mesmo que essa sua admiração pelos pássaros lá fora vai ajudar de alguma forma? Isso só vai servir para te deixar ainda pior, lembrando o tempo todo de algo que provavelmente você não terá mais, ou ao menos que demorará a voltar a ter.
- Não se engane, Ângela. Nós nunca fomos livres, nem eu e nem você; não da maneira que gostaríamos. — Ao vê-la franzir o cenho, confusa e sem saber do que eu falava, procuro esclarecer melhor as coisas para ela. — Essa nossa vida atual é tão vazia quanto a que tínhamos lá fora. Tudo o que muda são as grades concretas, mas isso é só um detalhe. Mesmo assim, eu ainda preferia o que tinha antes, por que sabia que eu podia tentar mudar, mesmo que sem sucesso aparente. Aqui, o que posso fazer?
- Rezar. — Ela é enfática e categórica em suas palavras abençoadas.
Não a respondi de imediato, apesar de saber que no fundo ela estava certa. No entanto, não era para me integrar à comunidade dali que eu iria rezar, mas para que não fossemos esquecidas novamente pela sociedade, como sempre fomos, mesmo aparentemente livres. O objeto de minhas orações poderia ser meu enorme desejo de me unir àqueles sábios e astutos pássaros voando em várias direções.
Aves
Published:

Aves

Published: