Danos Colaterais
 
Encontros da Imagem – Braga 2011
 
Vejo portugueses de todas as idades cumprindo vidas pendulares entre a precariedade e os subúrbios. Vejo-os à espera nas paragens de autocarro, encostados a publicidades de vidas prósperas, vejo-os nos transportes, embalados pelo caminho. Pelas janelas passam os prédios inacabados dos arrabaldes, porque não há dinheiro para terminar o que se começou e isto não vai lá com sete palmos de terra. Há casas vazias onde vai brotando vegetação rasteira, insidiosa, indiferente aos mercados, crescendo por entre os esqueletos de betão de um sistema que ruiu. Há juros em alta. (...) Todas as vidas podem ser trocadas por números, reduzidas à urgência das contas, subjugadas ao grande esforço nacional que é cumprir metas. Depois sim, realizaremos os nossos sonhos. Viveremos dentro de possibilidades infinitas que nos acenam lá longe. Ultrapassaremos esta sensação que se nos cola à pele, de termos chegado cedo, uns anos antes de qualquer coisa, que a festa é só mais tarde, que isto ainda vai virar país. Enquanto esperamos, as gerações mais qualificadas que esta terra já formou emigram. (...) Os bancos têm lucros obscenos porque vivem acima das nossas possibilidades, indiferentes à espinha vergada de quem os sustenta, ignorando as madrugadas dos centros de emprego, feitas de filas contornando quarteirões. Todos os dias há um sentimento sem nome, entre a resignação e a esperança, que enche salas de espera, que preenche formulários, que se acumula em prateleiras, que aguarda trabalho. O desemprego come por dentro e cresce todos os dias, espalhando-se pelas fábricas em falência, pelos campos desertificados, pelas cidades moribundas. (...) Ter casa não é para todos, apesar da Constituição e da publicidade dizerem que sim. A dignidade tem um preço. A liberdade tem um preço. Há filhos por nascer aos quais será dito que o momento é de crise, que terão que expiar os erros passados e continuarão a pagar pelo país que não têm, tal como eu faço agora e outros fizeram antes de mim. Estou cansado desta vida. Não me chega o amor, quero os meus direitos. Há promessas de prosperidade por cumprir. Onde estão os antigos ministros? A política é a desilusão e o desinteresse do povo. Alguém colheu a riqueza que todos pagamos. Quero ver o país pelos olhos de quem ganhou com isto, em vez de olhar as velhas do meu bairro que às sete da tarde saem à rua e vão pilhar os caixotes do lixo do supermercado. Levam pão e levam fruta. Talvez seja porque metade dos idosos deste país vive no limiar de pobreza. (...) A televisão diz-me o que eu preciso de saber, os famosos também choram e isso é uma coisa bonita, os políticos tocam no coração do espectador com sincera abnegação, os concursos comovem-me, se dançar para a câmara pagam-me a conta da electricidade e, pelo menos hoje, posso dormir descansado. Amanhã logo veremos. É preciso manter a ordem. A Europa tem mil olhos. Dizem-me que o meu trabalho não chega. Que os meus impostos não chegam. A estabilidade não se discute. Se todos pensarem por mim serei mais forte. (...) Compra, paga, pede. Trabalha, cala, come. Tudo é maior que eu. Os meus sonhos podem esperar. O futuro há-de vir. É importante não fazer ondas. Que se lixe a liberdade. Eu hei-de aguentar não sair à rua a reclamar o que já foi meu, o que construí, o que faz parte de mim. Eu hei-de aguentar o que me exigem sem explicações. Eu hei-de aguentar tudo até ao dia em que não aguente mais.
 
 
Martim Ramos, 2011
Collateral damage
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Collateral damage

This project is about the current socio-economic situation in Portugal.

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