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Conto premiado * O grandfinale de um Steinway

O grandfinale de um Steinway 

O velho pianista sabia que chegara ao fim. As mãos eram um aglomerado de dedos nodosos, resultado doloroso de horas a fio de estudo e audições. As performances individuais, à sombra da solidão, já não extraiam o som polido e delicado das teclas do Steinway da sala de leitura. 

Houve época em que o toque era fino, da escola francesa, um deslize de dedo com suavidade sobre a tecla de modo a empurrá-la para tomar de si o som - razão de sua feitura. Passado. O som, agora, era outro; duro, staccato, rígido. Como testemunha silenciosa de sua derrocada artística havia apenas um pombo, que repousava no parapeito do lado de fora da janela. A ave costumava vir com mais frequência quando Arabesque, de Schumann, era executada. 

Mas não era uma interpretação sensível, humana, como as de Vladimir Horowitz ou de Wilhelm Kempff. Também não figurava entre as mais precisas e cartesianas, como a leitura impecável de Alexis Weissenberg. Era um resultado metamorfoseado, ora curioso, com tempos que se alternavam em contraponto àquilo que a partitura indicava. A música silenciava após uma sequência de imperfeições. 

Oras! Que instrumento ingrato é o piano. 

Um tirano que não se furta em exigir uma vida de dedicação em troca de algumas interpretações precisas e um apanhado de aplausos mais calorosos. Egoísta, castiga quem o deixa de lado por alguns dias ou os que simplesmente envelhecem e perdem o discernimento motor. Desafiá-lo, assim, pode soar humilhante. O instrumento que exalta a vida em 88 teclas se vale da queima do combustível humano. 

Noutro dia, uma manhã de sol se estendeu ao calor da confiança interna, motivo que o impulsionou a arriscar um de seus compositores preferidos. Ele se lembrou que seu auge artístico foi conquistado com as interpretações impecáveis da Balada nº1 em sol menor, Opus 23, de Chopin. À época, chegou a ser apontado como um rival natural de Zimerman, reconhecidamente um dos maiores intérpretes do polonês. Coisa de crítico entusiasta.

Quando a curva do sucesso virou, não passou muito para que fosse tragado pelo tempo e pelo ostracismo. Naquela manhã, percebeu que a sonoridade, tão cara a seus ouvidos, estava mais opaca, distante. Tentou, num rompante, uma execução de classe, à escola de Rubistein, o que lhe rendeu um resultado ainda pior. 

Há dias o pombo não o visitava. Sentiu, por um undécimo instante, fio de inveja do sucesso pop de Lang Lang e de sua ânsia jovial pelo holofote. Depois, caiu em si e retomou à ideia tradicionalista de que o jovem e virtuoso chinês não está a serviço do piano e da música, mas, sim, de sua própria imagem. 

Amuado, lembrou-se de Menandro Olinda, o pianista suicida de Incidente em Antares. Olinda, numa crise depressiva, deu ponto final à vida cortando os pulsos após ser vencido pela assombrosa Sonata Apassionata Opus 57 de Beethoven. Precisou de uma segunda chance – um post morten – para interpretá-la como manda o figurino. Só assim deu paz de espírito à sua alma penada. 

Não era o caso. Após se cansar de tantos insucessos, resolveu dar um basta à sua carreira. Mas sairia por cima, sem perder a imponência do mundo dos pianistas; uma classe das mais ególatras, dizia Villa Lobos. Foi noutra manhã, de um domingo de primavera, que o velho pianista sentou-se com pompa no banco de altura regulável. Aprumou-se. Arqueou levemente o corpo para frente, armando os braços e deixando em riste os dedos para o grandfinale. Estático, observou o piano com um hipnotismo romântico. Era um ar contemplativo, de admiração sincera em tom de despedida. 

Foram quatro minutos e trinta e três segundos de puro e extenuante silêncio, que invadiu o quarto e se alastrou para o restante da casa. Ao fim, desmontou a posição. Levantou-se e agradeceu ao vácuo com o tradicional garbo. A interpretação da obra de John Cage, 4´33´´, havia sido perfeita. A tampa do Steinway fora fechada com doçura. O pombo voou da janela. 

Nunca mais voltou.
Conto premiado * O grandfinale de um Steinway
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Conto premiado * O grandfinale de um Steinway

Texto classificado entre os dez melhores de mais de dois mil participantes, e publicado em livro da Olimpíada de Redação de Jundiaí, edição 2013.

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